- Folha de S. Paulo
Tal vigilância prévia é incompatível com a natureza das redes
Na sanha legiferante de sapecar uma lei que opere o milagre de varrer as fake news das terras brasileiras, os (as) parlamentares podem agravar a doença da desinformação que já está inoculada na democracia. No furor legifobético, embarcam em ideias tóxicas como se fossem soluções mágicas. Na pressa legifuribunda, sucumbem à tentação de exigir das plataformas sociais, como o Facebook, que passem a exercer sobre os conteúdos de suas páginas um controle estrito, como se essas plataformas fossem veículos jornalísticos.
Querem que as empresas armazenem o RG e o CPF de cada usuário, além do endereço certinho, para entregar às autoridades quando elas requisitassem. Querem que as empresas saibam, entre os bilhões de postagens diárias, quais carregam discursos interessados ou maliciosos e quais são meramente informativos. Querem que elas tracem a linha divisória entre a verdade e a mentira. Simples assim. A legifrenia se acha mais poderosa que Deus e produz mais maldades que o diabo.
É lógico que esse negócio vai dar errado. Pedir às plataformas que filtrem textos, áudios e imagens não apenas é algo que não se pode pretender, como é algo que não se deve impor. No mais, é algo que não vai adiantar.
Expliquemos. Não se pode pretender uma coisa dessas porque tal grau de vigilância prévia é incompatível com a natureza das redes. É mais ou menos como se um delegado de polícia quisesse, durante uma final de campeonato de futebol, no meio de uma torcida inflamada de dezenas de milhares de fanáticos batendo bumbo e pulando nas arquibancadas, gravar imediatamente o que grita cada torcedor, em cada segundo. A não ser que vivamos num pesadelo distópico, é inviável.
Se fosse viável, uma coisa dessas não deveria ser exigida. Se fosse exigida, não deveria ser cumprida. A violação prévia da privacidade chegaria a um grau que nem o cybergoverno chinês ousou profanar. E, ainda por cima, não resolveria nosso problema de desinformação. No dia seguinte, os gabinetes ilegais do ódio —que fabricam e distribuem fake news caluniosas financiados por dinheiros escusos— migrariam para provedores fora do controle das jurisdições brasileiras. O contrabando das notícias fraudulentas ficaria pior. A cloaca do submundo da internet engoliria o que ainda não engoliu.
Se o Congresso quer proteger a nação contra mentiras industrializadas, deve criar programas públicos para fomentar, estimular e financiar a imprensa livre. Só mais informação pode vencer a desinformação. No mais, não custa avisar: em países autoritários, como Hungria e Filipinas, leis criadas a pretexto de combater fake news são agora usadas para intimidar jornalistas.
Atribuindo tamanho poder de controle aos conglomerados privados, que são monopolistas da internet no mercado global, os legisladores vão hipertrofiar o poder dos facebooks da vida (e da morte). Se fizerem isso, criarão o totalitarismo privatizado.
Deveriam fazer o oposto disso: quebrar o monopólio desses grandes conglomerados, como defende a senadora americana Elizabeth Warren. A indústria da desinformação é apenas um parasita clandestino dentro dos conglomerados que monopolizaram as comunicações digitais. Os conglomerados intocáveis são o pior problema. As fake news são o subproblema. Salvar a democracia exige de nós combater o parasita (o que se faz com informação de qualidade) e os conglomerados (com regulação). Só assim a verdade dos fatos triunfará sobre a mentira do preconceito.
Antes de correr com legifilias megalôs, pensemos melhor.
*Eugênio Bucci, jornalista, professor da ECA-USP e autor de 'Existe Democracia sem Verdade Factual?' (ed. Estação das Letras e Cores)
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