- Folha de S. Paulo
Nos EUA, o racismo saiu dos códigos legais, mas não das consciências
Martin Luther King foi assassinado em abril de 1968. No rastro do tiro fatal, manifestações pacíficas e atos de vandalismo misturaram-se em dezenas de cidades. Richard Nixon venceu as eleições, seis meses depois, prometendo restabelecer a "lei e ordem". Trump inspira-se no roteiro de Nixon para matar King pela segunda vez.
A Lei dos Direitos Civis (1964), obra de King, inscreveu a igualdade dos cidadãos na letra da lei. Mas o racismo institucional sobreviveu à derrota, instalando-se principalmente na casamata do sistema judicial e policial. "Não consigo respirar": negros temem circular nas ruas, pois são alvos prioritários da brutalidade policial, e enfrentam tribunais que usam réguas diferentes para punir violações similares. George Floyd é a vítima mais recente de uma barbárie perene.
Nixon inaugurou os programas de preferências raciais no serviço público e nas universidades. As ações afirmativas, na linguagem de alguns, ou racismo reverso, na de outros, tornaram-se um programa bipartidário, adotado por democratas e republicanos, durante três décadas. Sob o manto delas, a cisão racial perdurou, como uma âncora que prende os EUA à areia grossa da "nação de colonos".
Os programas de preferências raciais tomaram o lugar de políticas universais de inclusão social. O conceito de nação única é o arcabouço do Estado de Bem-Estar edificado na Europa do pós-guerra. Os EUA nunca completaram essa tarefa histórica, esboçada com o New Deal, devido à persistência do conceito da "nação de colonos": uma nação branca e protestante rodeada por uma coleção de minorias (negros, latinos, asiáticos, indígenas). Na pandemia da Covid-19, a ausência de um sistema universal de saúde iluminou o fosso das desigualdades sociais, com seus nítidos recortes raciais.
A divisão da nação entre cidadãos de primeira e segunda classe assumiu novas formas após a supressão das leis de segregação racial. O racismo saiu dos códigos legais, mas não das consciências. As políticas de preferências raciais propiciaram a naturalização de um cínico intercâmbio: se você não é branco, terá caminhos especiais até a universidade, mas será tratado como marginal por policiais e juízes. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, da esquerda democrata, um arauto das preferências de raça e o chefe de uma polícia que ataca protestos pacíficos, personifica esse intercâmbio.
Depois de Obama, Trump. Sob a paisagem da desindustrialização e dos choques de renda sofridos pela baixa classe média, os ressentimentos gerados pelos programas de preferências raciais ajudaram a difundir a mensagem do populismo de direita entre os brancos.
"Make America Great Again" é o grito de um nacionalismo que promete restaurar a mítica idade de ouro da "nação de colonos". A onda de manifestações que sacode o país, um segundo movimento pelos direitos civis, representa o mais poderoso desafio à distopia trumpiana.
"O silêncio branco é violência", lia-se num cartaz erguido diante da Casa Branca. A cascata de protestos reúne brancos, negros, latinos e, notoriamente, jovens de todas as cores. Quando Trump ameaçou convocar o Exército para "dominar as ruas", definia os manifestantes antirracistas como o inimigo interno.
Do seu ponto de vista, o inimigo é a nação única pela qual os manifestantes apoiam um joelho no chão junto com policiais dispostos a romper o círculo de ferro da repressão.
"Esse país foi fundado pelo protesto", alertou Obama. "Cada expansão da liberdade foi conquistada por esforços que tornaram desconfortável o status quo."
No Brasil, os George Floyd são centenas. O último chama-se João Pedro, 14 anos. Morreu na sua casa, em São Gonçalo, cravada por 70 projéteis disparados por uma polícia que tem passaporte para assassinar. Sobram-nos cotas raciais, uma mão de tinta fresca no status quo. Faltam-nos protestos.
*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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