Os desafios da Política Sanitária no Brasil é reverter a triste e desoladora realidade de mais da metade da população não ter acesso ao saneamento básico, como um compromisso permanente do Estado, do mercado e de toda a sociedade brasileira.
Como construir esta nova perspectiva pós-pandemia?
A pandemia deu maior visibilidade à nossa tragédia social: são mais de 100 milhões de pessoas sem instalações sanitárias nas suas residências, demonstrando a ineficiência do atual sistema sanitário brasileiro, agravado com o isolamento social e a crise política vivida por todos nós.
Questões mais amplas e estratégicas são partes desta nossa reflexão: a situação das nossas bacias hidrográficas, a qualidade e os usos múltiplos da água para a geração de energia, a produção agrícola, industrial, residencial, o turismo e o lazer, fundamentais para a vida e a sustentabilidade econômica, social e ambiental brasileira e de uma parte significativa da população mundial, dependente das exportações nacionais de papel e celulose, de minérios e de alimentos.
Em relação à Política Sanitária em si, devemos vê-la como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). O saneamento básico no SUS é o caminho para uma melhoria efetiva da saúde e da qualidade de vida dos brasileiros. Esta concepção deve ser fundamento de uma nova Política Sanitária a ser construída no País.
O Município como foco da Política Sanitária
Os municípios devem ser o foco da Política e da Gestão Sanitária e das políticas públicas em geral. São nos municípios que as pessoas vivem e realizam suas vidas.
Atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios distribuídos pelos 26 estados da Federação (IBGE, 2014). Minas Gerais concentra o maior número deles (853), seguida de São Paulo (645). No outro extremo, os estados localizados na região norte são os que possuem o menor número, apesar da grande extensão territorial: Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). O mais populoso é São Paulo com mais de 11 milhões de pessoas e o de menor população é Borá, também em território paulista, com apenas 805 habitantes. A maioria dos nossos municípios enfrentam problemas de custeio e contam apenas com as cotas constitucionais.
Assim, a maioria das administrações municipais não conseguem atender às expectativas de suas populações, excluídas dos seus direitos básicos constitucionais, a saber: trabalho, moradia, segurança pública, saúde e educação. Portanto, a questão sanitária é parte integrante desta realidade.
Quais as razões dessa crise permanente dos municípios, incluindo a crise sanitária? Qual o papel dos governos, do mercado e da sociedade civil no enfrentamento desta crise?
A questão sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico devem ser avaliados considerando estas questões.
Devemos dimensionar os desafios de uma política pública sanitária, em cada município brasileiro, relacionando-a com a realidade econômica, social e ambiental regional e nacional.
A pandemia e a crise política vividas pelo Brasil não apontam caminhos para a melhoria da política de saneamento básico. As relações dos governos municipais com os estaduais e com o governo federal ficam muito a desejar.
Assim, há que se discutir a realidade sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico, associados às mudanças necessárias no caminho de um novo pacto político, econômico e social entre o governo federal e os dos estados e municípios.
Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente a essa realidade sanitária brasileira?
Há que se considerar que a maioria da população brasileira vive nas cidades. A vida social é predominantemente urbana. As cidades dão a tônica das regiões onde estão inseridas. Assim, a qualidade da Política Sanitária a ser construída será definida pelo pacto entre estes diversos atores políticos, econômicos e sociais em questão.
Quais seriam os desafios de uma Política Sanitária nesse contexto?
A Política Sanitária deve construir mecanismos de elaboração, participação e avaliação permanentes da cidadania, através de Planos, Programas e Projetos que venham a atender a demanda sanitária municipal, em sintonia com as outras políticas públicas municipais, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Portanto, deve-se discutir a questão sanitária como parte integrante da sustentabilidade do município de uma maneira mais ampla, com foco na região onde está inserido e suas respectivas áreas urbanas, concentradoras de populações, violências e desigualdades sociais.
A crise dos municípios e das suas administrações reflete um conjunto de distorções, disfuncionalidades e limites das atuais estruturas político-administrativas que são responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas municipais, tanto na esfera do próprio município, quanto nas áreas estadual e federal. Esta crise pode ser resumida na insuficiência de receita, na falta de visibilidade em relação às decisões sobre despesas e investimentos, na insuficiência de recursos técnico-administrativos e, ainda, na falta de participação da população na política e na gestão municipal.
Neste contexto, urge realizar as reformas política, administrativa e tributária que não mudem apenas os critérios de redistribuição de recursos entre União, Estados e Municípios, melhorando a situação atual da maioria dos municípios, como também garantir aos Estados e à União recursos que viabilizem a implementação de políticas públicas, particularmente nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, criando as condições para o enfrentamento da difícil realidade econômica e social da maioria dos municípios brasileiros.
Qual regulação?
Um dos desafios fundamentais de uma nova Política Sanitária é que a agência reguladora setorial funcione com autonomia.
No Brasil, falta às agências reguladoras a devida autonomia frente aos atores políticos, econômicos e sociais. O modelo de regulação, inspirado na experiência das democracias europeias, não funciona de maneira satisfatória frente à realidade brasileira. Aqui, desde quando foram criadas as agências reguladoras na década de 1990, a atuação das agências nas áreas de energia, telecomunicações e saúde, entre outras, fica muito a desejar.
A questão democrática aqui se coloca de maneira contundente. A sociedade civil e a cidadania brasileira estão desafiadas a construir relações de maior autonomia das agências reguladoras frente às relações entre o Estado e o mercado. O funcionamento do Estado e do mercado no Brasil não atendem às demandas históricas e atuais da maioria da população. São os nossos dilemas permanentes a serem superados para a ampliação da democracia brasileira, com a inclusão desta maioria excluída da população, não apenas na falta de saneamento básico, como também de educação, moradia, saúde, segurança, mobilidade e trabalho, condições elementares para a dignidade da vida social.
Em geral, as agências reguladoras, em suas diversas áreas de atuação, sofrem forte pressão de lobbys políticos e econômicos, prejudicando a defesa dos interesses mais amplos da sociedade, impactando, na maioria das vezes, os socialmente excluídos. Caso explícito do saneamento básico no Brasil: os 100 milhões de excluídos não podem pagar o serviço de saneamento e os governantes não criaram as condições políticas e econômicas para enfrentar e superar esta situação.
A autonomia da agência reguladora, em relação ao Estado e ao mercado, é o desafio fundamental da nova política de saneamento do Brasil. A regulação feita, nas últimas décadas, pela Agência Nacional de Saúde (ANVISA), não avançou de maneira efetiva para a melhoria do saneamento básico brasileiro. No novo marco regulatório, a responsabilidade é da Agência Nacional de Águas (ANA), desafiada a enfrentar e apontar caminhos de inclusão da maioria da população brasileira sem água tratada e saneamento básico.
A participação de empresas estatais e privadas, inclusive internacionais, já faz parte do modelo de saneamento brasileiro, desde os anos 1990. A participação privada, inclusive internacional, não trouxe os resultados esperados para a melhoria da política de saneamento neste período.
Portanto, além dos investimentos necessários – que devem ser procurados, independente da natureza do capital –, o que se deve trabalhar frente aos nossos gigantescos desafios sanitários é um Plano Nacional de Saneamento, com metas a serem alcançadas nos próximos anos e devidamente acompanhado pelos governos, pelas agências reguladoras, pela comunidade científica e por organizações empresariais e da sociedade civil, comprometidos com a Política Sanitária Nacional.
Além disso, devem-se criar mecanismos institucionais para acompanhar e avaliar as relações entre a agência reguladora com as próprias empresas a serem reguladas e as relações destas empresas e da própria agência reguladora com os atores políticos, econômicos e sociais nacionais e regionais.
Assim, a eficiência de uma Política Sanitária está relacionada com os seus resultados efetivos, no tempo e no espaço. A saber: seus resultados obtidos através do Plano Nacional de Metas a serem perseguidas, considerando os custos e objetivos econômicos, sociais e ambientais; também a qualificação profissional e a base técnica utilizada para atingir os resultados almejados. A natureza do capital não influi diretamente nos resultados de nenhuma organização empresarial. São inúmeros os exemplos na história do capitalismo de organizações na Europa, EUA, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, estatais, privadas ou mistas, bem sucedidas ou não. Todas elas sempre precisam do Estado, em tempos de crise ou não. O inverso também é verdadeiro: o Estado democrático de Direito precisa de todas as organizações e da sociedade para o funcionamento da economia e das políticas públicas em geral, isto acontece também na área de saneamento básico.
Estes são os dilemas permanentes e os desafios das sociedades democráticas – a necessidade de pactuar entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais. A experiência europeia avançou na inclusão social, com conquistas efetivas para a cidadania, nos momentos em que foi possível uma maior taxação do capital, garantindo políticas públicas inclusivas para a maioria da população.
Assim, uma política de saneamento básico deve ser parte integrante de uma visão mais ampla da realidade econômica, social e ambiental do município e estar comprometida com a reorganização do espaço urbano a favor do público, melhoria das condições de moradia, educação, saúde, segurança, mobilidade urbana e ampliação da renda familiar em função dos que mais necessitam.
Finalmente, é importante destacar os limites impostos pelo atual pacto federativo para a construção de uma Política Sanitária Nacional, em função das crises política, econômica, social e de valores, nestes tempos de pandemia, vivenciados pela sociedade brasileira, particularmente na área federal. Portanto, a Política Sanitária é uma questão nacional, que se realiza em cooperação e conflito entre os interesses do Estado, do mercado e da sociedade civil, com a participação proativa da cidadania.
*Professor da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Politécnico da Bahia
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