- Valor Econômico
Há espaço para uma surpresa positiva nas economias avançadas, se não houver uma nova onda da covid-19
Seria exagero dizer que experimentamos uma dúvida hamletiana sobre o ritmo da atual recuperação econômica, em torno de se ela será ou não em V, entendida esta como a atividade voltar ao patamar do final de 2019 na virada de 2020 para 2021. A grande maioria não acredita nisso, lá fora ou aqui. No Brasil, o não-V aparece no Focus e em matérias com craques como José Júlio Senna (glo.bo/2ZnhGdE) e Affonso Pastore (glo.bo/2ZqtMCW).
Também não-V são as novas projeções do FMI, ainda mais que as de abril, exceto para a Ásia emergente. Para as economias avançadas, queda de 8% este ano e expansão de 4,5% em 2021. Na América Latina, retração de 9,4%, seguida de alta de 3,7%. Em quase toda parte, a recuperação só se completaria em 2022, ou depois.
Porém, não há como negar, como fez o presidente do Fed esta semana, que a recuperação começou “mais cedo que o esperado”. E, acrescentaria eu, com mais força. Nos EUA, o ISM de junho, no patamar mais alto desde de abril de 2019, indica que a indústria estava de novo em expansão. Na área do euro, o PMI da indústria em junho ainda estava em terreno contracionista, mas com outra forte alta em relação ao mínimo histórico de abril.
Alguns lembrarão que, apesar de em geral bons preditores do PIB, esses são indicadores de difusão, não de intensidade, cuja interpretação pode estar distorcida pelo tamanho desta recessão.
Porém, na China, onde a pandemia começou e foi “controlada” antes, a alta dos PMIs de fato coincidiu com a recuperação do PIB, que deve ter crescido perto de 3% no segundo trimestre de 2020, na comparação interanual (bem mais contra o trimestre anterior). Claro, a China é um país diferente, como são todos, com maior participação no PIB da indústria, que sofreu menos que serviços com a crise. Por outro lado, os estímulos lá também foram bem mais fracos.
Quais os argumentos pró não-V? Sempre lembrando que “as incertezas são muitas”, Senna elenca sete. Discutirei alguns, pois o espaço é pouco.
Primeiro, a tendência a repetir-se a austeridade fiscal vista após os estímulos de 2008-09. Um exemplo é o fim do valor extra de seguro desemprego nos EUA, previsto para o fim do mês. Porém, será que, depois de tanto estímulo, do “ka-boom”, como disse o ministro da Fazenda alemão, os governos colocarão a recuperação em risco, deixando tudo com os BCs, que não têm mais a mesma munição de 2010? Talvez, em vez de austeridade, tenhamos os BCs financiando os gastos dos Tesouros.
Na Europa, os países já estenderam os estímulos até o fim deste ano, ou além. E têm os €750 bilhões do Fundo de Recuperação Pós-Coronavírus. No Reino Unido, o primeiro ministro avisou que lá não haverá austeridade como em 2010. Nos EUA, à beira de eleições, a discussão é o tamanho do novo pacote fiscal, não se ele ocorrerá.
Segundo, as famílias perderam patrimônio durante a crise, e vão buscar não só recompô-lo, mas aumentá-lo, como precaução frente à maior incerteza. Não é claro, porém, porque as famílias teriam tido poupança negativa (no sentido econômico). A renda do trabalho caiu, mas o consumo também, e muito. Além disso, em alguns países o governo mais do que compensou as perdas de renda, como observa José Carlos Carvalho ( bit.ly/3gkes1A). De fato, nos EUA a poupança das famílias, que desde os anos 1980 ficou quase sempre abaixo de 10% da renda disponível, pulou para 32% em abril e 23% em maio.
Terceiro, “famílias e empresas sairão da crise excessivamente endividadas”. Não vejo as famílias mais endividadas, pois não consumiram. No Brasil, entre fevereiro e maio, o saldo de crédito ampliado para famílias e empresas aumentou R$ 396 bilhões. Destes, R$ 295 bilhões foram alta da dívida externa, refletindo a desvalorização do real, em parte hedgeada via exportações e derivativos. Os empréstimos de bancos para as famílias, de fato, caíram R$ 15 bilhões. Nos EUA, o primeiro trimestre de 2020 registrou o mínimo de gastos das famílias com serviços de dívidas, como proporção da renda disponível, em pelo menos quatro décadas. Parece um quadro confortável.
Por fim, as pessoas teriam receio de consumir, por medo da covid-19. Merryn Webb contesta esse ponto, ao apontar o tamanho da demanda reprimida revelada pelas multidões nas praias do Reino Unido e dos EUA (on.ft.com/31zH2rt), como mostram as altas recentes nas vendas do varejo. Há diferenças entre grupos etários e tipos de serviços, mas não há como negar a gigantesca demanda reprimida por consumo. Mesmo por comer em restaurantes, para os quais, além das fotos, há os dados do Open Table: em abril, havia uma redução interanual de 99,9% nas reservas; semana passada, essa queda já era de 60,5%.
Sigo preocupado com a economia brasileira, com a falta de controle da pandemia, o forte aumento do déficit e da dívida pública, a elevada incerteza, a falta de coordenação política e as condições iniciais que já eram ruins. Mas penso haver espaço para uma surpresa positiva nas economias avançadas, se não houver nova onda da covid-19, um risco em alta nos EUA.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
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