- Folha de S. Paulo
Em 9 de maio, eram 10 mil mortos; hoje são 60 mil. Vamos passear de barco?
Em 9 de maio último, um sábado, Jair Bolsonaro teve uma tarde deliciosa passeando de moto aquática no lago Paranoá, um cartão postal de Brasília. Foi a alternativa a um churrasco para 300 ("ou 3.000") amigos no Palácio da Alvorada, que ele anunciara fartamente pelos canais oficiais. Diante da grita geral --como promover um churrasco com milhares de brasileiros morrendo pelo coronavírus?--, Bolsonaro cancelou-o e, para variar, acusou a imprensa de tê-lo inventado. "Fake news!!!", ladrou.
No comando do barco, Bolsonaro acelerou, fez piruetas no lago e encostou a moto numa lancha em que pessoas, não por acaso, faziam um churrasco. Uma sirigaita na lancha trinou, "A gente veio fazer o teu churrasco, cara! Ai, que lindo, cara!", e recebeu o talkêi do cara para gravar o encontro. Nada como um presidente tão acessível e humano. Perto dali, a Câmara e o Senado decretaram luto com bandeiras a meio mastro e o Supremo emitiu nota de solidariedade às famílias vitimadas pela pandemia.
Naquele dia, o Brasil atingia a triste marca de 10 mil mortos pela Covid-19, número que provocou viva comoção —como podíamos ter chegado a tal ponto? Pois, nesta quarta-feira, 1º de julho, o número passou de 60 mil, e o impacto não parece equivalente.
Talvez já tenhamos nos acostumado a esse placar que, de dez em dez mil mortos, se supera a cada quinzena. Talvez a próxima comoção só se dê na marca dos 100 mil, que, pelos cálculos dos médicos, fatalmente atingiremos. Vamos passear de barco?
Um dia talvez se saiba quantos, dos 50 mil óbitos desde 9 de maio, devem ser debitados a Bolsonaro. E aos governadores e prefeitos que, com a confusão provocada por ele, atreveram-se a abrir seus domínios antes da hora. E se as digitais no cabo das pás que jogaram terra sobre os caixões coincidem com as do volante da moto aquática.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
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