- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
É preciso compreender o chamamento da circunstância, dos valores e das possibilidades de determinado momento histórico
Há um bom número de anos, a revista “Veja” publicou extensa matéria sobre o destino de cada um dos membros da primeira diretoria da Fiesp, que apareciam juntos numa fotografia institucional. De todos eles, apenas dois dos respectivos grupos econômicos haviam sobrevivido.
O capitalismo brasileiro tem se revelado um capitalismo de empresas de relativamente limitada longevidade. Seria socialmente útil que historiadores fizessem uma pesquisa sobre fracassos e falências em nossa história econômica para nela identificar os fatores de sua brevidade. Isso ajudaria em diagnósticos e na reeducação dos empresários, sobretudo os da nova geração.
O sociólogo Maurício Vinhas de Queiroz, da antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, fez nos anos 1960 uma grande e laboriosa pesquisa nacional para identificar os grupos econômicos multibilionários no Brasil.
A pesquisa revelou um fato surpreendente: não havia um padrão na origem desses grupos econômicos e de seu capital original. O capitalismo brasileiro nega a história do capitalismo. É anômalo. Pede, portanto, criatividade empresarial. As lições importadas do neoliberalismo econômico são inúteis.
Foram identificados desde grupos com origem na grande lavoura de exportação, como a do café, que floresceu na escravidão anticapitalista, até um grupo originado de consórcio entre jogo do bicho e políticos. Indicação de uma característica obviamente excepcional na história da formação de empresas, a do dinheiro sujo que se torna dinheiro limpo. É significativa a inversão do padrão nas últimas décadas: dinheiro limpo que se torna dinheiro sujo. Um sinal de decadência.
A história do capitalismo no Brasil, em particular a fascinante história das empresas e do empresariado, é muito mais um desafio interpretativo para os sociólogos do que para os economistas. Um desafio necessário porque é nele que pode estar a resposta às nossas vicissitudes econômicas, sociais e políticas.
Em 1964, Fernando Henrique Cardoso, da USP, publicou um livro originalíssimo, da maior importância para compreender esses dilemas: “Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico”, que fora sua tese de livre-docência. Ele ainda é nosso cientista social mais qualificado para explicar essas problemáticas características de nossa história.
Naquele momento, o Brasil vivia o impasse entre o nacional-desenvolvimentismo, que ganhara corpo e êxito na era Vargas e chegara até o governo JK, o da economia voltada para dentro, apoiada no fortalecimento do mercado interno e, portanto, nas concepções keynesianas relativas ao nexo virtuoso entre fluxo de renda e emprego. Do outro lado, a alternativa, à qual o governo JK não fora estranho, do ingresso de capitais estrangeiros na indústria brasileira e a reorientação da economia para fora.
Cardoso queria saber, sociologicamente, qual era a consciência social dos empresários e se sabiam lidar criativamente com os desafios do impasse. Concluiu com uma pergunta: subcapitalismo ou socialismo?
O golpe de Estado de 1964 daria a resposta em favor de um modelo de desenvolvimento econômico associado à potência hegemônica, os EUA, à minimização da indústria nacional e ao descarte da criatividade do nosso empresariado. O qual tendeu a deixar de ser um empresariado schumpeteriano, inovador, capaz de correr riscos calculados e criativos, para ser imitador.
Esse modelo estava em fase de esgotamento quando as eleições de 2018 restituíram poder à opção da associação submissa e dependente aos EUA, no pior momento da história política americana. E da nossa.
Os verdadeiros empresários são aqueles que inovam na adversidade e no impasse e logram êxito. Não se trata de êxitos pessoais, circunscritos aos interesses privados de seus autores.
O verdadeiro empresário é aquele que personifica a sociedade em que atua e compreende, por dentro, suas carências, mas também suas possibilidades. Ele vence a cegueira alienadora que decorre do amadorismo dos que usurpam ou impõem decisões equivocadas porque de pouco ou nenhum alcance. Como agora.
Não adianta o ministro da Economia dizer que leu Kaynes no original. Há uma ótima tradução em espanhol, da Fondo de Cultura Económica, do México.
Para ser empresário é preciso ter vocação, isto é, compreender o chamamento da circunstância, dos valores e das possibilidades de determinado momento histórico. Para entender Keynes é preciso ler de Max Weber seu clássico “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. E compreender os nexos de sentido entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social. Sem desenvolvimento social, o da economia é mero crescimento econômico: crescem os lucros no curto prazo e os fracassos no longo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - A degradação do Outro nos Confins do Humano" (Contexto).
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