O
Brasil conta as horas para o fim do governo de Bolsonaro. A partir de hoje,
quando se completa a 1.ª metade do mandato, faltarão 17,5 mil – uma eternidade
O Brasil conta as horas para o fim do governo de Jair Bolsonaro. A partir de hoje, quando se completa a primeira metade do mandato, faltarão cerca de 17,5 mil – uma eternidade, considerando-se que se trata do pior governo da história nacional.
Se
os dois primeiros anos da gestão de Bolsonaro servem de parâmetro para o que
nos aguarda na segunda parte do mandato, o Brasil nada pode esperar senão mais
obscurantismo, truculência e incapacidade administrativa, pois essa é a
natureza de um governo cujo presidente não se elegeu para governar, e sim para
destruir.
Não se tem notícia de que alguma das promessas formais de campanha de Bolsonaro tenha sido cumprida. Ele e seu “superministro” da Economia, Paulo Guedes, passaram quase toda a primeira metade do mandato a anunciar privatizações em massa, desenvolvimento econômico, criação de empregos, modernização do Estado e competitividade internacional. A frustração de todos esses retumbantes compromissos levou o ministro Paulo Guedes a anunciar: “Acabou. Não prometo mais nada”.
Também
as alardeadas reformas foram ou esquecidas ou sabotadas por Bolsonaro
justamente na época mais propícia para sua aprovação. Somente a reforma da
Previdência foi aprovada, mas como resultado do esforço da liderança do
Congresso, muitas vezes à revelia do presidente da República.
Será
uma surpresa se a pauta de reformas avançar na segunda metade do mandato, em
meio ao previsível clima de campanha eleitoral alimentado pelo próprio
presidente. Não há motivo para otimismo – e não há porque Bolsonaro não se
mostrou competente nem mesmo para encaminhar as pautas ditas “de costumes”, tão
caras ao bolsonarismo. Assim, como se vê, o governo do ex-deputado do baixo
clero não se define pela capacidade de formular políticas – qualquer uma –,
restando-lhe exclusivamente o discurso ideológico.
Nisso,
Bolsonaro foi competente. Durante dois longos anos, conseguiu entreter o País
com um misto de violência e escárnio pelas instituições, tão ao gosto de uma
parcela reacionária da população para a qual a política não presta e democracia
equivale a balbúrdia.
Bolsonaro
passou a primeira metade de seu mandato a fazer o elogio do homem medíocre,
menosprezando a respeitabilidade e rejeitando qualquer autoridade que não fosse
a sua. Elevou a crueldade à categoria de virtude, contrariando valores
humanitários, considerados hipócritas por ele e seus devotos. Ao fazê-lo, ofereceu
a seus ressentidos eleitores a possibilidade excitante de mudar a história por
meio do autoritarismo messiânico de seu “mito”.
Como
em todo regime autoritário, programas partidários são irrelevantes – e
Bolsonaro nem partido tem. O que interessa é a palavra do “mito”, que muda ao
sabor das circunstâncias, tornando irrelevante até mesmo a assinatura de
Bolsonaro em leis e decretos que ele não se envergonha de renegar ou esquecer
quando lhe é conveniente.
Até
aqui, Bolsonaro dedicou-se a criar um discurso em que todos são responsáveis
pelos problemas, menos ele. E, como se trata de ideologia, pouco importa se o
discurso é baseado em falsas premissas, como quando reitera a mentira segundo a
qual não tem responsabilidade no combate à pandemia porque o Judiciário a
atribuiu a Estados e municípios. O que importa é disseminar a impressão de que
não o deixam governar, numa imensa conspiração.
Para
que esse discurso funcione, é preciso desqualificar a imprensa profissional,
que trabalha para revelar fatos concretos, e valorizar as redes sociais, que
criam “fatos” sob encomenda. É o que Bolsonaro faz a todo momento. Nesse
ambiente, todo aquele que é capaz de pensar e questionar torna-se
automaticamente suspeito. Nada do que a experiência científica oferece é válido,
pois tudo o que é preciso saber será revelado pelo “mito”, de acordo com a
lógica de suas, digamos, ideias.
Nas
17,5 mil horas desse pesadelo que ainda temos pela frente, é preciso que a
sociedade e as instituições democráticas impeçam Bolsonaro de completar sua
obra deletéria. Se não se pode esperar que Bolsonaro se emende, ao menos é
possível tentar reduzir os danos de sua catastrófica passagem pelo poder.
Pandemia e a Federação – Opinião | O Estado de S. Paulo
A
Lei Complementar n.º 173/2020 trata como iguais realidades desiguais
Os prefeitos que assumirão hoje terão pela frente um primeiro ano de mandato marcado por uma severa limitação à sua autonomia administrativa. Por força do artigo 8.º da Lei Complementar (LC) n.º 173, aprovada pelo Congresso no fim de maio, estão vedados reajustes de salários e pagamento de bonificações para servidores civis e militares, contratação de funcionários (exceto para reposição de vagas ou para trabalhos temporários) e qualquer reforma administrativa que implique aumento de despesas. As restrições valem até o dia 31 de dezembro de 2021 e também são aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal.
Essas
são as contrapartidas estabelecidas pela LC 173, que instituiu o programa
federal de combate à pandemia de covid-19, para o repasse bilionário de
recursos da União para os entes federativos e para a suspensão dos pagamentos
da dívida destes com o Tesouro Nacional em decorrência da crise sanitária. Mas,
em que pese seu bom propósito, trata-se de mais uma lei federal que é imposta
indistintamente aos entes federativos – em especial aos municípios –
desconsiderando a realidade local, muito diversa em um país como o Brasil. O
resultado é a dificuldade de implementação ou a injustiça decorrente da falta
de calibragem de seus efeitos.
“Os
regramentos nacionais, para um país tão heterogêneo como o nosso, sempre podem
trazer complicações”, disse ao Estado o secretário executivo da
Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Gilberto Pierre. Ele tem razão. “Engessar (as
Prefeituras) de norte a sul, de leste a oeste, é generalizar demais”, afirmou
Pierre.
Não
se questiona aqui o acerto do legislador federal ao estabelecer certas
contrapartidas para o vultoso auxílio financeiro da União dado aos Estados e
municípios no curso da emergência sanitária. Afinal, são bastante conhecidos os
casos de entes que são ajudados pela União – ou seja, por todos os
contribuintes – nos momentos de aperto, mas pouco ou nada fazem para sair da
situação adversa em que se meteram, quando não a aprofundam. O Rio de Janeiro é
o exemplo mais notório.
Auxílios
federais como o da LC 173 devem ser excepcionais e rigidamente controlados, sob
pena de acabarem premiando a incompetência e a incúria de governadores e
prefeitos. No entanto, melhor seria se a LC 173 estabelecesse critérios muito
claros sobre as circunstâncias que autorizariam o aumento excepcional de
despesas, a depender da situação fiscal de cada Estado ou município e da
comprovação da necessidade. Meios para auditar esses critérios não faltam. Aí
estão os Tribunais de Contas, as Assembleias Legislativas e as Câmaras
Municipais para fiscalizar os atos do Poder Executivo, além da própria
Secretaria do Tesouro Nacional e o Congresso, no que lhes couber.
A
situação da capital fluminense, por exemplo, é absolutamente distinta da que se
observa na capital paulista, apenas para citar as duas maiores cidades do País.
O Rio é a cidade que gasta o maior porcentual de sua receita anual com a folha
de pagamento dos servidores (79%). Em São Paulo, dá-se a situação
diametralmente oposta: é a capital com a menor relação entre receita e folha de
pagamento (46,3%). No entanto, segundo os critérios estabelecidos pela LC 173,
ambas as cidades são tratadas como se ostentassem os mesmos indicadores
fiscais. A depender do cenário econômico e do estado da crise sanitária em
2021, essas discrepâncias serão mais ou menos acentuadas.
Não
se descarta até mesmo a proposição de alterações na LC 173. A
constitucionalidade de alguns dispositivos do diploma legal já está sendo
analisada pelo Supremo Tribunal Federal. Em algum momento, a Corte terá de se
debruçar, mais uma vez, sobre a questão da Federação, sobre os limites da
interferência da União nos Estados e municípios.
No
fundo, o que se discutirá é se um evento excepcional como a pandemia tem o
condão de firmar um regime fiscal provisório que se sobreponha ao arranjo de
competências entre os entes federativos firmado pela própria Lei Maior.
Déficit diminui, desafio permanece – Opinião | O Estado de S. Paulo
Novas
contas apontam rombo fiscal menor, mas controlar a dívida ainda é enorme
desafio
Doze bilhões de reais podem fazer muita diferença para uma grande empresa e certamente são importantes para o Tesouro Nacional, mas esse valor fica muito menos impressionante quando o assunto é o rombo das contas federais. O Ministério da Economia reduziu de R$ 844 bilhões para R$ 831,8 bilhões o déficit primário (isto é, sem os juros) previsto para o governo central em 2020. Apesar da melhora, o resultado ainda equivale a 11,5% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para 2020. Quando se acrescentam os saldos fiscais esperados para Estados, municípios e estatais da União, o valor passa a US$ 844,2 bilhões, ou 11,7% do PIB.
Pouco
se altera, portanto, o custo fiscal das medidas excepcionais implantadas em
resposta aos efeitos sanitários e econômicos da pandemia. Os encargos
extraordinários, com impacto de R$ 620,5 bilhões no resultado primário,
permitiram atenuar as perdas humanas e econômicas ocasionadas pela covid-19.
Graças
à reação dos negócios, facilitada por esse apoio, o PIB de 2020 deve ser,
segundo a revisão de parâmetros do Ministério da Economia, 4,5% menor que o de
2019. Esse número foi usado para se reestimar o cenário fiscal.
Mas
os custos adicionais, embora muito úteis e permitidos pelo chamado orçamento de
guerra, afetam por longo tempo as finanças públicas. Deixam sequelas difíceis de
eliminar e complicam a gestão das contas oficiais nos anos seguintes. Para
administrar esses efeitos e promover a recomposição de suas contas, o governo
terá de seguir um receituário muito severo.
Para
enfrentar a crise, o governo central teve de abandonar, por algum tempo, as
metas de contenção da dívida pública. Antes da covid-19, o Ministério da
Economia havia anunciado uma nova meta para a dívida bruta do governo geral: no
máximo, 80% do PIB, em dezembro de 2020. Essa meta foi abandonada nos primeiros
meses da pandemia.
Pela
nova estimativa, no fim de 2020 a dívida, em torno de R$ 6,7 trilhões, será
equivalente a 91% do PIB. Os números do governo geral incluem os balanços da
União, dos Estados, dos municípios e das estatais, excluídas Petrobrás e Eletrobrás.
A
evolução dessa dívida é afetada pelo resultado primário do setor público e pelo
custo do financiamento das contas oficiais. Quando há superávit primário, o
governo consegue pagar pelo menos uma parte dos juros vencidos. Quando o saldo
é negativo, é preciso rolar a dívida e o bolo aumenta. O quadro fica mais feio
quando os financiadores cobram juros maiores, tornando inevitável uma expansão
mais veloz do endividamento.
Antes
da crise havia a expectativa de algum superávit primário a partir de 2022. Pelas
novas metas do governo, o saldo primário ainda será negativo em 2023, devendo
equivaler a 1,68% do PIB, no caso do governo central, e a 1,67%, se se tratar
de todo o setor público não financeiro.
A
evolução dessas contas – e da dívida bruta – é seguida cuidadosamente pelo
mercado. Aí se incluem as agências de classificação de risco. Quando a
classificação de um país é rebaixada, o financiamento da dívida tende a ficar
mais caro e mais difícil de negociar. Detalhe importante: a dívida brasileira
já era, antes da crise, proporcionalmente muito maior que a dos países de renda
média. Nesses países, a média da relação é próxima de 50%. Pode ter aumentado
em 2020, mas a diferença em relação ao Brasil, por todos os dados conhecidos,
continua muito ampla.
A
contenção da dívida vai depender da combinação, nem sempre fácil, da disciplina
fiscal com o crescimento econômico e da confiança dos financiadores. Essa
confiança dependerá, assim como a política de juros do Banco Central, de um
compromisso claro do Executivo com a responsabilidade fiscal e com a pauta de
reformas. O Ministério da Economia reconhece essas condições, ao apontar a
“continuidade da agenda de reformas” como “imprescindível para o equilíbrio
fiscal”. Não basta, porém, a “continuidade da agenda”. É preciso executá-la.
Quem garantirá a continuidade e a execução? Um presidente ocupado com assuntos
familiares e com a reeleição?
O desafio que paralisa os novos prefeitos – Opinião \ O Globo
Situação
fiscal precária é resultado não só da pandemia, mas de desequilíbrio estrutural
profundo
Os
prefeitos que assumem hoje sabem o que os espera em cada um dos 5.570
municípios. Por tudo o que aconteceu em 2020, que se estenderá por este começo
de 2021 com o recrudescimento da pandemia e seus efeitos já conhecidos na
economia, muitos não poderão contar com arrecadação suficiente para pagar as
contas municipais. Por isso mesmo, este 1º de janeiro não está propício a
festas de posse.
Toda
a sequência de dificuldades deflagrada pelo vírus tem impacto mais severo no
gestor público mais próximo dos 210 milhões de cidadãos — o prefeito. Alguns
enfrentam mais problemas que outros. O paulistano Bruno Covas se encarregou de
agravar a situação do próprio município, com um aumento salarial de 47% para si
mesmo, que poderá custar em torno de R$ 500 milhões aos cofres públicos.
Eduardo
Paes, que volta a administrar o Rio pela terceira vez, recebe uma carga de
dificuldades financeiras do antecessor Marcelo Crivella, protagonista de um
governo desastroso do ponto de vista administrativo. Para não perder tempo,
deverá baixar hoje uma série de medidas, numa cidade que começa o ano com a
previsão de um déficit de R$ 10 bilhões, se não aparecerem esqueletos fiscais
escondidos sob a contabilidade opaca do antecessor.
Os
prefeitos têm margem exígua para manobra. O Regime de Recuperação Fiscal (RRF),
a que o Estado do Rio de Janeiro aderiu, não socorre municípios. No Congresso,
o RRF foi flexibilizado para poder abrigar mais estados (o Rio foi o único a
aderir ao programa, apesar de Minas, Rio Grande do Sul e Goiás estarem na fila
do socorro do Tesouro faz tempo).
Para
os prefeitos, a esperança de socorro é outra, o projeto de lei complementar
101/20. De autoria do deputado Pedro Paulo Carvalho (DEM-RJ), a partir de hoje
secretário de Fazenda de Paes, ele deriva do plano concebido pelo ex-secretário
do Tesouro Mansueto Almeida e permitirá a renegociação de dívidas também das
prefeituras. A depender do cumprimento de contrapartidas, os prefeitos poderão
obter empréstimos com aval da União.
Sancionada
pelo presidente, a lei abrirá uma porta às prefeituras. Mas só passarão por ela
as que se comprometerem com exigências que garantam um mínimo de austeridade
fiscal, como privatização de estatais, corte de pelo menos 20% dos incentivos e
benefícios fiscais, ajuste na previdência ou imposição de um teto de gastos
municipal.
É
preciso que não se repita a história recorrente de governadores e prefeitos que
se comprometem com a austeridade, são socorridos, depois deixam pelo caminho os
compromissos assumidos, sob a proteção de conchavos políticos e beneficiados
por decisões judiciais.
A
pandemia aprofundou a crise fiscal. O déficit estrutural do Estado resulta do
aumento das despesas em velocidade superior ao crescimento da economia. O
exemplo clássico, segundo o economista Raul Velloso, é a Previdência. No Rio e
em São Paulo, cidades que adotam o mesmo “regime de repartição” vigente no
INSS, os benefícios são pagos com a contribuição dos jovens que entram no
mercado formal de trabalho. Mesmo que a economia estivesse gerando novos
empregos, o número crescente de aposentados, decorrência do envelhecimento
populacional, já geraria desequilíbrio.
Velloso
chama a atenção para a tendência a déficits do conjunto da Previdência
municipal. Em 2012, havia um superávit de R$ 12,6 bilhões no sistema. Em 2018,
o déficit já era de R$ 7,8 bilhões — e só piorou de lá pra cá. No Rio, Crivella
tentava antecipar os royalties do petróleo nos bancos para pagar a aposentados
e pensionistas. Paes receberá o Previ-Rio sem caixa.
Numa
das reviravoltas da aprovação da reforma da Previdência no ano passado, caiu a
obrigatoriedade de estados e municípios adotarem exatamente as mesmas regras
que passaram a vigorar no INSS e na previdência do funcionalismo federal.
Vários governos tomaram a iniciativa de tentar aprovar as mudanças nas
assembleias, mas a maioria dos municípios nem se abalou.
Uma
portaria da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, do Ministério da
Economia, deu a estados e municípios a opção de aumentar a alíquota de
contribuição de 11% para 14%, em vez de adotar as alíquotas progressivas
aprovadas para o funcionalismo federal. O Rio de Crivella nada fez.
Déficits
estruturais crescentes, criados por despesas garantidas por lei, raspam os
cofres públicos. Para estimar a urgência com que prefeitos precisam reformar
seus sistemas, Velloso calculou até quando alguns municípios paulistas e o Rio
terão dinheiro para investir em infraestrutura, mantida a tendência dos
déficits na sua Previdência. Resultado: o Rio já não tem mais recursos
disponíveis; a cidade de São Paulo terá até 2029. Santos conta com o mesmo
fôlego da capital, Marília está na precariedade carioca, e Santo André poderá
investir apenas até o final deste ano. Se é assim no estado mais rico do país,
imagine nas regiões menos desenvolvidas.
Controlada
a pandemia, a economia tenderá a se recuperar, mas deformações municipais
específicas persistem. A facilidade garantida pela Constituição para criar
municípios fez com que, de 4.180 em 1988, passassem a 5.570. Seriam muitos
mais, não fosse a aprovação, em 1996, da emenda constitucional que passou a
exigir lei complementar federal para a criação de prefeituras. Mesmo assim,
permanece nas costas do Estado o passivo de um grande número de cidades sem
arrecadação suficiente para arcar com os próprios custos. A pandemia passará,
mas essas distorções na nossa Federação continuarão a pesar nas costas do
contribuinte.
Nova década – Opinião | Folha de S. Paulo
Alicerces
políticos e econômicos da democracia amparam esperança de melhora
No
ano e na década que se iniciam, o país terá o desafio não apenas de corrigir
erros e omissões que resultaram no fiasco dos anos 2011-2020, mas também de
preservar os avanços institucionais que o período democrático viabilizou na
política e na economia.
Não
se podem esquecer as consequências, no decênio encerrado, da indisposição para
levar adiante reformas que permitissem maior dinamismo produtivo, equilibrassem
as contas do Estado e permitissem um amplo redesenho do pacto social em favor
dos mais pobres.
Tampouco
se devem minimizar, entretanto, os progressos palpáveis que foram acumulados em
período ainda mais longo —e que mantêm viva a esperança de dias melhores.
Apesar
de momentos de retrocesso e imprudência que fomentaram crises graves, foram se
consolidando alicerces fundamentais, como a gestão mais autônoma da política
monetária e um debate aberto, embora incompleto, sobre o imperativo de unir
responsabilidade fiscal e justiça distributiva.
A
taxa de juros nunca foi tão baixa —verdade que em boa parte devido à fraqueza
da atividade econômica, mas não menos importante em sequência do movimento
paulatino que se verifica desde a instituição do Plano Real, em 1994.
Mais
recentemente, o teto para os gastos federais inscrito na Constituição facilitou
o processo de convergência do custo do dinheiro para padrões mais civilizados.
O
controle da inflação se revela persistente e bem-sucedido. A experiência
democrática tem demonstrado ampla rejeição da sociedade a velhas políticas que
toleram a frouxidão orçamentária —e a aceleração dos preços— em nome de
supostos estímulos ao crescimento do Produto Interno Bruto.
São
mais transparentes, hoje, as relações e as fronteiras entre o Banco Central e o
Tesouro Nacional, que outrora se confundiam na execução de despesas e na
emissão de dívida e moeda. Avizinham-se, inclusive, aperfeiçoamentos
importantes nessa legislação.
Nas
relações com o restante do mundo, recorrente fonte de instabilidade na história
brasileira, a situação se mostra sólida, com amplas reservas em moeda forte e
um regime de câmbio flutuante.
É
notável que o agudo período de crise da década passada não tenha resultado em
problemas nessa frente, com a economia mais integrada ao comércio e aos fluxos
de investimento globais.
Sem
estabilidade da moeda e solidez fiscal são efêmeros os resultados dos programas
de combate à pobreza e à desigualdade —e constitui mérito nacional o
desenvolvimento de um aparato de seguridade dos mais amplos entre os países
emergentes.
É
também admirável que o amadurecimento do regime macroeconômico tenha ocorrido
em paralelo à consolidação dos instrumentos democráticos e republicanos.
Mecanismos
de freios e contrapesos entre os Poderes evoluíram a ponto de deixarem pouco a
dever aos observados em países desenvolvidos —assim o constata, regularmente
desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro.
O
Supremo Tribunal pode ser criticado por corporativismo e até falta de
autocontenção, mas não subserviência. O Congresso, apesar de antigos vícios, já
demonstrou altivez ante a volúpia do Executivo.
Do
fortalecimento do Ministério Público à maior qualidade técnica e autonomia da
Polícia Federal, há também ganhos notáveis na defesa de interesses difusos e no
combate à corrupção —também com a ressalva de abusos. Poderosos, de fato, não
podem mais assumir que estão acima da lei.
Não
se pretende aqui ser panglossiano, muito menos ufanista. O país —sociedade e
forças políticas— precisa mostrar mais ambição e senso de urgência no
enfrentamento de mazelas crônicas.
No
âmbito das ações de governo, urge sobretudo tratar da má qualidade da educação
pública, obstáculo à ascensão social. A melhoria de serviços essenciais como
saúde e segurança pública dependerá de mais eficiência na alocação de recursos
orçamentários escassos.
Estão
à vista de todos os males do patrimonialismo e da captura de Estado por grupos
de interesse. Nas estruturas de tributação e despesa há mecanismos que
concentram renda, mantêm a assimetria de acesso e perpetuam a pobreza.
Não se verá real progresso, contudo, com ofensivas voluntaristas ou, pior ainda, com o desprezo populista pelas instituições. Por falhas que por vezes pareçam, são elas que amparam as esperanças de recuperar o tempo perdido pelo país. Que 2021 e a nova década sejam melhores para todos.
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