Reverencio
em você, filha, as mulheres que levaram adiante gestações neste ano sequestrado
por contágio
Filha
minha,
O
menino nasceu e com ele uma mãe, um pai, três avós, três avôs, muitas tias,
muitos tios — sim, é um arranjo familiar complexo, que ele vai precisar de
tempo para dominar. No coração, a matemática é simples: multiplicam-se os
aparentados, unifica-se o clã. Martin é produto de dois ramos de oliveira
aproximados pelo amor. É Oliveira ao quadrado, de mãe e pai. Por causa dele,
toda essa gente tornou-se comunidade, aldeia, tribo. Do dia para a noite, é
tudo sobre ele. É dele nossa torcida; dele nossa fé, reza e devoção. Por ele,
festa e preocupação; descanso e despertar. Para ele, amor.
Na
derradeira segunda-feira deste ano que encerra a segunda década do século XXI,
tambores e sinos ecoaram para anunciar a mudança em nossas vidas. Eu ouvi. Era
dia de Exu, orixá que é palavra e movimento; e das Santas Almas Benditas,
representação de nossos antepassados. No mesmo endereço onde, quase 25 anos
atrás, eu me tornei mãe, você deu à luz o seu menino, meu neto. Tuas mãos de
dedos longos, que hoje seguram a cabeça do bebê e a orientam na direção do seio
para o alimento, estão nele. E a boca. E a orelhinha mordida que herdou do teu
pai.
Nascido ao meio-dia, quando reina Obaluaê, senhor da terra, da peste e da cura, a quem reverenciamos com silêncio e recolhimento, Martin é sol. Eclipsou-nos. Tornou-se o centro de nossa constelação familiar. É flor que brotou do asfalto fumegante de uma temporada terrível de doença e morte globais, de indiferença e irresponsabilidade nacionais. Como todos os nascidos em 2020, ele veio para lembrar que a vida se impõe. Floresceu na dupla clausura: além do útero, as paredes do confinamento imposto pela ciência durante a pandemia da Covid-19, experiência que vai marcar todas as gerações deste tempo.
Reverencio
em você as mulheres que levaram adiante gestações neste ano sequestrado por
contágio, fome, despedida, desemprego, ódio. Isabelas, Morenas, Maíras,
Anielles, Jasmines, Ingrids, Patricias, Gabrielas, Julianas, Andréias, Flávias
carregaram no útero esperança no futuro, no coração, medo do presente. Vocês
estão parindo uma geração de crianças concebidas da luta pela vida. São todas
elas guardiãs do porvir.
Foi
o pastor Henrique Vieira quem me disse, num encontro em São Paulo, anos atrás,
que esperançosos são aqueles que, diante de todas as evidências de que algo
dará errado, perseveram. Somos, eu e você, filha minha, herdeiras da
resistência, da persistência e da existência de pessoas que jamais sucumbiram,
sobretudo de mulheres negras postas a serviço a vida. Por isso, de nossas ancestrais
sou devota — e, agora, também de você, pelo legado assumido e honrado.
Você
e Raphael trouxeram ao mundo um menino negro, para crescer num país que
discrimina filhos e filhas pela cor da pele e nega, pelo extermínio,
longevidade a jovens pretos e pardos. Martin é um brasileiro nascido da segunda
geração de uma linhagem de mulheres negras com diploma universitário; é filho
de um médico negro. Encarna o sonho ancestral de liberdade e bem-viver de
pessoas trazidas de África para escravidão e exclusão.
Carrega
também a utopia do respeito à liberdade de credo. Batizado com o primeiro nome
do pastor batista que foi líder do movimento pelos direitos civis dos negros
nos Estados Unidos, Martin Luther King Junior, integra famílias dedicadas ao
candomblé e à umbanda. Nossa fé foi — e ainda é — perseguida pelos profetas da
intolerância, da demonização e do racismo religioso num Estado que se pretende
laico.
Mas,
como na frase retirada do discurso famoso do reverendo e estampada na camiseta
que Raphael usou no segundo dia de vida do pequeno Martin, nós temos um sonho.
Por gerações e gerações, caminhamos e trabalhamos para que esse menino
encontrasse um ambiente de paz, acolhimento, igualdade. Ainda não é esse o
nosso mundo. Então, seguiremos batalhando até que nenhuma criança brasileira
nasça em risco ou desvantagem.
Martin
é nossa profissão de fé no Brasil. E na vida. Te abençoo, filha minha, e dou
boas-vindas ao menino que, como cantou Caetano Veloso, avô de Benjamin, outro
rebento de 2020, “é por enquanto o caçula de mim”.
Feliz Ano Novo.
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