Faz
menos de dois meses que brasileiros e brasileiras foram às urnas e deixaram um
claro recado. Valorizaram bom governo em suas cidades e a política da
moderação. Puseram em segundo plano a retórica e as performances populistas,
bem como a polarização ideológica.
O
que fazer diante disso? Seguir o recado ou tentar modificá-lo? Ambas as opções
são possíveis e têm sua legitimidade e sua justificação racional. Seguir o recado das urnas tem como argumento
o respeito a um senso comum, que deve orientar a conduta de qualquer democrata genuíno
e dotado de bom senso. Tentar modificá-lo pode ter como argumento a razão fundada
num dever ser alternativo a tudo isso que aí está a exigir mais contestação que
moderação, e o objetivo, derivado dessa razão, de mobilizar a sociedade para
essa luta.
Optar
por um caminho ou outro depende, é claro, de circunstâncias. Mas não só. Existem
diferentes modos de encarar a política que, uma vez adotados por uma pessoa, ou
por uma organização, levam essa pessoa, ou organização, a tender para esse ou
aquele caminho. Há quem deseje realizar suas ideias no mundo e, assim, encara a
política como instrumento de uma causa projetada ao futuro, como alternativa
abrangente aos males do presente. Há quem assume, como causa, a preservação do
nosso mundo construído em comum, sendo a política uma atividade mais contida,
capaz, porém, de aperfeiçoá-lo, de modo sustentável. Para os primeiros a
palavra-chave é vontade. Para os segundos, prudência. O que não quer dizer que
toda vontade política é imprudente nem que todo prudente abdica da vontade.
Para entender isso, distingamos o que são visões sobre a política (como instrumento de uma causa ou como ferramenta de melhoria), do que são atitudes políticas - modos, prudente ou voluntarista, de intervir politicamente, decidindo ou influindo sobre decisões. Assim, a visão política pode ser cheia de vontade, no sentido forte do progressismo e isso levar, de fato, a uma atitude voluntarista, mas é possível que um progressista adote uma atitude prudente, submetendo sua vontade a uma gradação, para mudar construindo. Já uma visão política de conteúdo prudencial pode assumir um sentido conservantista, até reacionário, o que constitui atitude política imprudente quando uma situação clama por mudanças. E pode ser prudencial no sentido moderado, acolhendo a mudança sustentável, aquela que não destrói o edifício, caso em que se combinam visão e atitude prudentes.
Imaginemos
a diferença que faz a escolha entre essas duas atitudes (prudente e
voluntarista) ser feita por quem governa e por quem faz oposição, não vindo ao
caso aqui se cada um dos dois pode ser classificado como de direita, de
esquerda ou de centro. É intuitivo esperar de quem governa uma atitude mais prudente
e da oposição uma atitude mais animada pela vontade política. Mas é próprio da
atividade e da vocação política, em ambos os campos, buscar o equilíbrio entre
os dois impulsos. Pois nada muda, sempre que a vontade política da oposição é
anulada. E nada funciona, sempre que a prudência falta no palácio. O recado das urnas de 2020 foi exatamente no
sentido desse equilíbrio. Oposição sim, polarização forte não, para que as
coisas mudem sem pararem de funcionar.
Prometi
pouca análise, logo, não discutirei aqui se as elites políticas (governo e oposições)
estão atendendo ao recado das urnas ou tentando alterar o script. No caso do
governo, porque é óbvio, no das oposições, porque é controverso e espicharia
demais a conversa. Vou tratar é de outra grande diferença que há em a atitude
prudencial ou voluntarista ser adotada, não por políticos, de governo ou
oposição, mas por cidadãos comuns, que pertencem à classe dos governados, em
seu papel bem mais limitado de influir sobre decisões políticas. Sendo ainda
mais preciso, vou me referir ao caso da opção por uma das duas atitudes ser feita
por cidadãos quase comuns, isto é, governados que não são apenas eleitores -
como todos os demais governados são – mas que, além disso, possuem situação
social, e/ou informação cultural, e/ou organização política que lhes permitem
tomar parte da chamada sociedade civil. É a essas pessoas que a exortação se
dirige. Antes dela, porém, vamos pensar em mais um aspecto do problema da
decisão sobre qual das atitudes tomar.
É
intuitivo, mais uma vez, que se espere mais prudência dos governantes do que
dos governados, pelo fato óbvio de que na mão dos governantes é que estão os principais
instrumentos de poder. O fato de que numa democracia esse poder é legitimado
pelo voto e limitado por uma Constituição só aumenta essa expectativa quanto à
atitude política de quem governa. Mas, ai da república democrática que se fiar
apenas nessa expectativa racional! É preciso que instituições constranjam a
vontade política e obriguem os políticos a serem prudentes, do ponto de vista
das atitudes. A vontade dos governos precisa ser sempre contida para que as de
todos os governados sejam respeitadas. E a vontade das oposições também
limitadas pela lei, para que a vontade da maioria seja cumprida.
Por
fim, é intuitivo também que o mundo dos governados seja a residência das
vontades saídas do livre pensar e do agir sem a responsabilidade de governar. E
é bom que assim seja. Por ter sido delegado poder a representantes, a cidadania
consiste em lembrá-los sempre desse laço original da representação, para que
representantes não se sintam donos do poder político, não natural nem
hereditário, mas criatura histórica da República. A mobilização de vontades, no
eleitorado comum ou na sociedade civil (relembro aqui a distinção, que devo ao
professor Cícero Araújo), não é alvo dos mesmos freios institucionais. Sua
liberdade é regrada também, mas aí as regras são para assegurar seu exercício,
não para limitá-lo. O que limita é outra
coisa, chamada pluralidade social, aliada a pluralismo político, que todos são
obrigados a respeitar, para que nenhuma organização social ou visão de mundo possa
legitimamente pretender o timbre de estatal, ou oficial.
De
tudo isso resulta legítimo e mesmo vital que eleitores e sociedade civil se
manifestem com ampla liberdade e de modos distintos daqueles, mais forçosamente
moderados, que se deve impor a políticos e mais ainda aos que ocupam governos.
A radicalidade das manifestações não pode variar segundo o desejo de quem
representa e governa e sim de acordo com o grau de satisfação dos governados.
Se satisfeitos, calam; contrariados, reclamam; indignados, gritam. Contudo, todos
os cidadãos, sem exceção, precisam ter responsabilidade social e lei como
limites, a segunda comparecendo para coagir, caso falte a primeira. Vale tanto
para crimes ambientais de empresas, como para greves selvagens.
A
responsabilidade social varia também de acordo com a capacidade, de quem se
manifesta, de afetar a vida e a opinião dos demais e de influir sobre decisões políticas.
Participantes da sociedade civil têm uma responsabilidade a mais do que o
eleitor comum. Esse algo mais tem um significado político que não é
institucional, mas é importante como contribuição ao fomento de uma atitude
cívica prudencial ou voluntarista, na medida em que são, ou podem ser, formadores
de opinião. Não no sentido hierárquico,
ultrapassado pela horizontalidade das redes, mas no de uma interação onde
níveis de informação e experiências de organização podem ser trocados, em benefício
maior de quem, a princípio, possua menos de ambas as coisas. Aqui começa,
enfim, a prometida exortação.
Retorno
ao recado das urnas, que é o meio primordial, senão o único, pelo qual o
eleitor comum pode se manifestar. Penso ser animador que, em 2020, ele tenha
valorizado a experiência política e administrativa, ao lado do equilíbrio e da moderação
política. O desgoverno federal - que a pandemia escancarou - e a polarização
extrema que grassava no país desde 2014, cobraram seus mais altos preços sobre
o cotidiano dos cidadãos comuns, dentre eles os mais pobres, que são também
pretos. Historicamente desprivilegiados no acesso a políticas financiadas pelo
fundo público, distantes de redes de autoproteção social difusas na sociedade
civil, são eles que morrem mais de Covid e são eles os que mais sofrem com as
lacunas de ação resultantes do desvio de energias da política para embates
ideológicos e guerras culturais. É
racional que queiram mudanças na saúde, no emprego e na segurança e que esse
seja um querer pragmático, próprio de quem, prudentemente, quer preservar seu
mundo comum, tão duramente sustentado por uma labuta cotidiana, em ambiente
inóspito. E que sua indignação cívica mais genérica se oriente menos a
conflitos institucionais e mais a temas como desigualdade social e racial.
Sabemos
que esse modo do mundo popular sentir a crise que atravessamos não coincide em
muitos pontos com aquele que predomina na chamada sociedade civil. Mais uma vez
nos pouparei de análise e me aterei ao explicitamente óbvio. No mundo da
sociedade civil o que mais conta é o dever ser. Visões de mundo alternativas
alimentadas por mentalidades progressistas, bastante inclinadas a ver política
como vontade. Sentem os políticos e seu pragmatismo como adversários, ou
melhor, concorrentes bem estabelecidos que não deixam os projetos alternativos
vingarem. Gente empoderada que chegou antes e maneja os instrumentos que
poderiam – imaginam - concretizá-los. Trata-se de conflito de interesses, mas a
sociedade civil é também uma usina ideológica e, assim, nas universidades e em
outras agências, vigoram teorias de que se trata só de bem comum.
Nesse
terreno ativo e imaginativo, que se encontra a uma distância mediana e não a
anos-luz dos centros de decisão, prospera, no momento, a ideia de que as 200
mil mortes que a incúria programada do governo provocou exigem a remoção imediata
do chefe da organização criminosa. Acompanho sem ressalvas o diagnóstico,
embora não essa conclusão política que dele vem sendo deduzida. Aqui não farei
a discussão desse ponto porque não faltará oportunidade, uma vez que a palavra impeachment
e o comando “Fora Bolsonaro” (ambos acompanhados do advérbio já) demorarão,
pouco ou muito, na agenda do debate nacional.
O que quero enfatizar neste texto é o desencontro entre essa leitura
política da conjuntura, que avança na sociedade civil e busca pressionar a
sociedade política, e o recado moderado das urnas, ainda fresco, de menos de dois
meses atrás. Em si mesmo esse
desencontro preocupa, ainda que seja possível e legítimo contra-argumentar que
a posição do eleitorado pode mudar, seja pelo agravamento da crise, seja pelas
luzes de uma sociedade mobilizada. Preocupa porque a experiência brasileira
ensina que esse tipo de desencontro costuma dar em soluções autoritárias. É o
tipo do jogo bruto, entre poderosos e desvalidos, no qual não se deve pagar
para ver, muito menos blefar.
Friso
(não devia ser preciso, mas é) que simpatizo muito com a ideia de impedir
Bolsonaro de prosseguir destruindo e matando. Mas se ele me responder “e daí?”,
não sei como poderia treplicar sem ser bravata. Ainda assim não me fecho à
possibilidade de que o aceno, hoje inconsequente, possa vir a ser consequente
amanhã. Mas aqui se trata de exortar, não de especular e a minha exortação é
para que não se queime as pontes entre a vontade política que esquenta seus
motores e o recado prudencial que recebemos das urnas. Que venham carreatas,
mas não em detrimento da energia pacificadora que precisa ser prioritariamente
carreada para a decisiva eleição, daqui a pouco mais de uma semana, da Mesa da
Câmara dos Deputados, palco aliás de um virtual início de processo de impeachment.
Quem disser que é briga de branco ou, mais educadamente, trabalho para a política
“tradicional” e não para cidadãos ativos, está cego à alma participativa da
democracia brasileira pós 88, comprovada em vários episódios cruciais. E quem
candidamente disser que não há risco de uma coisa empatar a outra, pois, ao
contrário, a campanha pelo impeachment só pode ajudar a vitória da frente
democrática na Câmara, respondo com um “depende”. A justificativa dessa resposta é o arremate
da exortação.
Carreatas
estão programadas para esse final de semana. Se forem grandes e unitárias, na
composição e no sentido das mensagens deixadas no trajeto, podem mesmo ajudar,
de algum modo. Se forem pequenas, apenas deixarão de ajudar, mas não farão mal.
Mas há uma hipótese em que podem atrapalhar não apenas ajudando a encalhar a
baleia no seco como armando nuvens no horizonte que as eleições de 2020
começaram a desanuviar.
Manifestações
por impeachment atrapalharão se essa palavra der lugar a gestos políticos paralelos
ou concorrentes, manifestações da “esquerda” e da “direita”, tal como cogitado
na imprensa. Implicará em que o restante das palavras proferidas, bem como as
intenções comunicadas pelos gestos permaneçam opostas. Os discursos sobre o
presente são ambos ácidos, mas não se entendem sequer sobre o passado, recente
ou remoto, muito menos sobre o futuro. Os dois campos ideológicos exibirão suas
feridas. Mas irão à rua como água e óleo, como se estivessem medindo forças
para um confronto entre si, daqui a pouco.
Que
País resultará disso senão o da reiteração da tragédia que vivemos hoje? País ao
molde de estádios de futebol que só se pode frequentar conferindo a cor da
camisa de quem se senta ao lado. Mundos demarcados por paralelas, sem ângulos,
vértices, intersecções. Cada qual procura sua turma e grita, não importa se o
grito lhe une ou lhe separa do irmão, do filho, do vizinho, do colega de
trabalho, do conterrâneo, do concidadão. Do outro enfim, sem o qual você não
pode viver.
Vacina,
emprego, liberdade, sossego. Essas palavras criam pontes e derrubam muros. É
preciso elegê-las, priorizá-las, ao nos comunicar, responsavelmente, com o
público mais amplo, seja usando um microfone, apertando uma tecla ou
participando de uma carreata. São palavras mais eficazes que o “Fora Bolsonaro”
para nos livrar do desgoverno. Com a vantagem de que não só nos libertam, mas
constroem algo bom para o lugar da tragédia.
*Cientista
político e professor da UFBa.
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