Dos
argumentos contra o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, o mais fraco é o
de que não podemos “banalizar” esse instrumento. A lei é para ser usada, e em
nenhum outro caso anterior a este fez tanto sentido iniciar o processo de punição
que é previsto na Constituição e em lei de 1950 para o caso de o presidente
cometer crime de responsabilidade. Bolsonaro incorreu em vários crimes,
inclusive comuns, desde que assumiu o cargo.
Não
é a primeira vez que escrevo isso neste espaço. Em maio do ano passado escrevi
que era necessário não ter medo de encarar o impedimento, sempre traumático,
mas agora necessário para salvar vidas. Em outras colunas, listei os artigos
das leis do país que ele tem ferido constantemente. No ano passado ele escalou
nos ataques às instituições justamente quando o Brasil começava o enfrentamento
a um vírus mortal. É uma dupla perversidade.
O
impeachment da presidente Dilma não foi apenas por um preciosismo fiscal, por
uma singela pedalada, como ficou na memória de muita gente, da mesma forma que
Collor não foi abatido por um Fiat Elba. Com seus erros de decisão,
sequenciais, Dilma desmontou a economia. A recessão destruiu 7% do PIB em dois
anos, a inflação voltou a dois dígitos, o desemprego escalou, o déficit e a dívida
deram um salto. Tudo isso derrubou sua popularidade e ela não teve sustentação
política. Não foi um golpe. Foi o uso do impeachment por crime de
responsabilidade fiscal, e num contexto de descobertas de assalto aos cofres da
Petrobras para financiamento político.
Os crimes de Jair Bolsonaro estão em outro patamar de gravidade, porque atentam contra a vida. A falta de coordenação federal da pandemia matou brasileiros. Ele estimulou o agravamento da pandemia por atos, palavras e omissões. Se permanecer intocado e com o seu mandato até o fim, a história será reescrita naturalmente. O impeachment da presidente Dilma parecerá injusto e terá sido. E isso porque diante de crimes muito mais graves do que os que provocaram a desordem econômica, as instituições cruzaram os braços e lavaram suas mãos deixando Bolsonaro protegido.
O
presidente faz seus movimentos ameaçadores diante de instituições inertes ou
coniventes. A nota do procurador-geral da República, Augusto Aras, é
inconcebível. Ele não apenas diz que não fará seu papel constitucional, como
ameaça o país com uma insinuação de estado de defesa. Isso é a antessala de um
golpe. Bolsonaro mais uma vez, nos últimos dias, usou as Forças Armadas para
intimidar o país. E elas silenciam. Ajudaram desde o início o presidente com
seus silêncios, suas palavras ambíguas, e sua presença ao lado de um ex-tenente
que virou capitão quando passou, com desonra, para a reserva.
O
Congresso é o próximo passo que está sendo dado pelo presidente. Ter políticos
submissos na presidência das duas Casas será a etapa final para a blindagem.
Bolsonaro avança nesse propósito com a ajuda inclusive dos partidos de
esquerda, como PT e PDT, que deram oficialmente seu apoio a Rodrigo Pacheco
(DEM-MG), o senador que diz serem “escusáveis” os erros do governo. Que escusa
existe para o caso de Manaus? Pessoas morreram sufocadas porque o governo não
ouviu os alertas dos próprios funcionários do Ministério da Saúde, numa
terrível cronologia da tragédia. O ministro lá esteve e voltou prescrevendo tratamento
que a ciência comprovou que é ineficaz. E o estado precisava de oxigênio. Na
Câmara também avança o candidato com o apoio do Planalto.
Bolsonaro quer demonstrar superioridade e que tudo está dominado. Tem chances de colocar submissos nas presidências das duas Casas, a PGR já está em suas mãos, as Forças Armadas aceitam ser o espantalho dos democratas. Muitos dizem não ser estratégica a defesa do impeachment agora, porque ele seria barrado pela anomia das instituições. Isso não é argumento para não defender o impeachment do presidente Bolsonaro. Ele cometeu inúmeros crimes e precisa responder por eles. Se a democracia brasileira não tiver forças para tanto, ela mudará o passado. Serão injustos os impeachments anteriores. O mais grave, contudo, não é a mudança do passado, mas a do futuro. Brasileiros estão morrendo hoje pela gestão criminosa da pandemia. Em nome dos sem futuro a democracia brasileira precisa encarar o seu maior desafio.
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