domingo, 24 de janeiro de 2021

Entrevista | Yascha Mounk: 'Conflito com a democracia persistirá'

Yascha Mounk, cientista político alemão e autor do livro 'O Povo Contra a Democracia'

Para escritor, disputa entre líderes populistas e democráticos é um fenômeno que deve durar décadas

 Paulo Beraldo / O Estado de S. Paulo

As disputas políticas entre líderes populistas e democráticos são parte de um fenômeno que deve persistir por muitas décadas, avalia o cientista político alemão e autor do livro O Povo Contra a DemocraciaYascha Mounk.

Para o escritor, a invasão ao Capitólio dos EUA é símbolo de ataques contínuos de Donald Trump, mas pode servir de alerta para outros líderes populistas por não ter tido o resultado esperado – impedir a ratificação da vitória de Biden. Ele entende que o descontentamento com a democracia é fruto da estagnação do padrão de vida de muitos americanos, de uma guerra cultural fomentada pelo sistema político, pela mídia e também pelas mudanças culturais e demográficas pelas quais os EUA passaram. Ele afirma que o populismo é um fenômeno global e uma das principais forças políticas da atualidade. 

Qual o significado da invasão ao Capitólio dos EUA para o futuro da democracia no país?

A invasão foi fruto de 4 anos de ataques à democracia liberal dentro dos EUA. Em muitos aspectos, é o resultado inevitável de se eleger um populista em tempo integral como Donald Trump, que sempre acreditou que ele, e apenas ele, representa verdadeiramente o povo americano. Portanto, para ele era inaceitável o resultado de uma eleição que perdeu.

Na cabeça dele, só pode ter sido ilegítimo, já que entra em conflito com a verdade óbvia de que ele seria a personificação de um país. Mas, ao mesmo tempo, pode ser o início de uma virada, de um enfraquecimento desse discurso, e o triunfo de um consenso mais amplo sobre os perigos que a democracia enfrentou e sobreviveu nos últimos 4 anos. 

Essa invasão pode se tornar o símbolo de um movimento iliberal que está crescendo? Ou foi um episódio específico? 

Ela foi a ponta de lança de um movimento trumpista maior que prioriza apoiar tudo que ele diz ou faz acima de alguns dos princípios mais fundamentais da democracia e da Constituição dos EUA. Também acho que ela continuará a ser o símbolo da presidência de Trump e ajudará a consolidar seu lugar nos livros de história.

Muitos dos ataques às instituições eram complicados de explicar às pessoas, violavam normas complicadas, eram conjuntos de fatos difíceis de rastrear. Mas as fotos de uma invasão ao Capitólio, à Câmara, ao Senado, são fáceis para qualquer um entender.

Serão o símbolo desse momento histórico e tenho certeza que Trump será lembrado da maneira certa. Mas é importante deixar claro que foram algumas milhares de pessoas que invadiram a capital. Elas têm raízes em um movimento mais amplo, mas não representam todos os eleitores de Trump, nem mesmo a maioria da população. 

Quais são as raízes do descontentamento com a democracia?

Em primeiro lugar, há uma estagnação real do padrão de vida dos cidadãos comuns. A economia cresceu nos últimos 30 anos, mas a renda do cidadão americano médio avançou pouco. Portanto, falta confiança de que o sistema econômico esteja trabalhando pelos cidadãos. Antes, os cidadãos podiam não amar os políticos em Washington, mas pensavam que, no fim, estavam fazendo algo por eles. Isso começou a erodir.

O segundo aspecto são as mudanças culturais e demográficas muito rápidas, que levaram a uma variedade de medos e paranoias e uma espécie de triunfalismo. Uma forma de ver isso é uma guerra cultural contra as elites.

E em terceiro lugar, os atores políticos e as mídias pensaram que podiam aprofundar a polarização e usar essa divisão em seu benefício. Isso culminou com esse ódio e esse desdém mútuo que são típicos do espectro político americano hoje.

Se juntarmos falta de confiança em um sistema funcional, mudanças reais que ameaçam o status de parte da população, atores políticos e a elite em todos os lados do espectro achando que a guerra cultural pode ser vantajosa para eles, você tem a receita e os ingredientes para a raiva e o ódio que agora guiam a política americana. 

A invasão pode servir como um ‘modelo’ para os iliberais em todo o mundo, quando um movimento que repele a democracia invadiu o Congresso na democracia mais simbólica do mundo?

Certamente os políticos iliberais leram do manual de Trump nos últimos tempos e podem usar isso como modelo para minar a confiança e a fé na integridade das eleições no futuro. Por isso é importante que o ataque tenha falhado. Eles não tiveram sucesso em minar a ratificação da eleição que colocou Biden na Casa Branca. Espero que esse momento forneça um ponto de referência de que pessoas de ambos os lados concordem pelo menos que um ataque para acabar com a legitimidade da eleição era inaceitável. Então, isso também pode acender uma espécie de alerta aos políticos no mundo todo. 

Como Joe Biden pode trabalhar pela pacificação e pela união que prometeu na campanha?

Não é possível simplesmente contornar a polarização na política americana. Biden não vai conseguir superar completamente a polarização que conhecemos na sociedade americana há muitas décadas. Ele precisa se manter firme em sua linha de que muitas pessoas que votaram em Trump não são ruins, apenas têm divergências políticas profundas.

Não são todas pessoas terríveis que precisam ser expulsas do sistema político. Biden precisa deixar claro que sua voz é forte nesse tom, mais forte do que a daqueles que querem colocar metade dos seus compatriotas em um lugar considerado irremediável.

Biden precisa também trabalhar com muita firmeza em políticas que farão o país realmente avançar – iniciativas econômicas, luta contra a pandemia, construir infraestruturas – e trazer melhorias reais para os EUA. Se Biden se concentrar nisso e não em gastar seu tempo brigando com Trump, pode se tornar mais popular. 

E qual seria a outra alternativa possível?

Que Biden e os democratas passem grande parte dos próximos anos perseguindo processos contra Trump, processos de impeachment, colocando-o no centro das atenções e dando-lhe algumas vitórias no momento em que ele saiu da cena política como um perdedor, tirado da Casa Branca pela vontade de 81 milhões de americanos, mostrando que agiu como uma criança que não conseguia aceitar a derrota. Esse último ato (invasão no Capitólio) é mais importante que uma possível segunda derrota do impeachment no Senado (Trump já foi alvo de um processo de impeachment no fim de 2019).

Como restaurar a fé na democracia e no sistema político?

Há um bom número de reformas institucionais concretas que a política americana poderia adotar para elevar a fé e a confiança nas eleições. Existem muitos abusos do sistema político a prática de desenhar distritos eleitorais de forma a dar vantagem a um partido político resultando em regiões sem nenhum sentido geográfico.

É preciso profissionalizar isso com comissões de especialista, algoritmos, para não beneficiar nenhum lado. Esse é só um dos exemplos, mas a confiança no sistema democrático é outro ponto. Esse tipo de crise vem, em grande medida, pela dificuldade de aprovar o necessário e pelas divisões profundas da sociedade americana. 

Quando essa onda populista que domina os EUA começou?

É preciso ver essa situação de maneira mais ampla. Vemos o avanço do populismo na Polônia, Turquia, Filipinas, no Brasil, por uma série fatores específicos. Um dos motivos tem a ver com a internet e as mídias sociais, que tornaram muito mais fácil com que políticos outsiders conseguissem controlar o sistema político. A vitória de Biden é um grande motivo para acreditar que está havendo uma luta contra esses populistas.

Mas o populismo continua no poder em muitos países, como Narendra Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil. Só esses dois já são exemplos muito importantes. E é muito possível que continuemos a ver esse conflito fundamental entre democracias e ditaduras, populismos e democracias iliberais, por muitos anos. 

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