Para
escritor, disputa entre líderes populistas e democráticos é um fenômeno que
deve durar décadas
As
disputas políticas entre líderes populistas e democráticos são parte de um
fenômeno que deve persistir por muitas décadas, avalia o cientista político
alemão e autor do livro O Povo
Contra a Democracia, Yascha
Mounk.
Para
o escritor, a invasão ao Capitólio
dos EUA é símbolo de ataques contínuos de Donald Trump, mas pode servir de
alerta para outros líderes populistas por não ter tido o resultado esperado –
impedir a ratificação da vitória de Biden. Ele entende que o descontentamento
com a democracia é fruto da estagnação do padrão de vida de muitos americanos, de uma guerra cultural fomentada pelo sistema
político, pela mídia e também pelas mudanças culturais e demográficas pelas
quais os EUA passaram. Ele afirma que o populismo é um fenômeno
global e uma das principais forças políticas da atualidade.
Qual o significado da invasão ao Capitólio dos EUA para o futuro da democracia no país?
A
invasão foi fruto de 4 anos de ataques à democracia liberal dentro dos EUA. Em
muitos aspectos, é o resultado inevitável de se eleger um populista em tempo
integral como Donald Trump, que sempre acreditou que ele, e apenas ele,
representa verdadeiramente o povo americano. Portanto, para ele era inaceitável
o resultado de uma eleição que perdeu.
Na
cabeça dele, só pode ter sido ilegítimo, já que entra em conflito com a verdade
óbvia de que ele seria a personificação de um país. Mas, ao mesmo tempo, pode
ser o início de uma virada, de um enfraquecimento desse discurso, e o triunfo
de um consenso mais amplo sobre os perigos que a democracia enfrentou e
sobreviveu nos últimos 4 anos.
Essa
invasão pode se tornar o símbolo de um movimento iliberal que está crescendo?
Ou foi um episódio específico?
Ela
foi a ponta de lança de um movimento trumpista maior que prioriza apoiar tudo
que ele diz ou faz acima de alguns dos princípios mais fundamentais da
democracia e da Constituição dos EUA. Também acho que ela continuará a ser o
símbolo da presidência de Trump e ajudará a consolidar seu lugar nos livros de
história.
Muitos
dos ataques às instituições eram complicados de explicar às pessoas, violavam
normas complicadas, eram conjuntos de fatos difíceis de rastrear. Mas as fotos
de uma invasão ao Capitólio, à Câmara, ao Senado, são fáceis para qualquer um
entender.
Serão o símbolo desse momento histórico e tenho certeza que Trump será lembrado da maneira certa. Mas é importante deixar claro que foram algumas milhares de pessoas que invadiram a capital. Elas têm raízes em um movimento mais amplo, mas não representam todos os eleitores de Trump, nem mesmo a maioria da população.
Quais
são as raízes do descontentamento com a democracia?
Em
primeiro lugar, há uma estagnação real do padrão de vida dos cidadãos comuns. A
economia cresceu nos últimos 30 anos, mas a renda do cidadão americano médio
avançou pouco. Portanto, falta confiança de que o sistema econômico esteja
trabalhando pelos cidadãos. Antes, os cidadãos podiam não amar os políticos em
Washington, mas pensavam que, no fim, estavam fazendo algo por eles. Isso
começou a erodir.
O
segundo aspecto são as mudanças culturais e demográficas muito rápidas, que
levaram a uma variedade de medos e paranoias e uma espécie de triunfalismo. Uma
forma de ver isso é uma guerra cultural contra as elites.
E
em terceiro lugar, os atores políticos e as mídias pensaram que podiam
aprofundar a polarização e usar essa divisão em seu benefício. Isso culminou
com esse ódio e esse desdém mútuo que são típicos do espectro político
americano hoje.
Se
juntarmos falta de confiança em um sistema funcional, mudanças reais que
ameaçam o status de parte da população, atores políticos e a elite em todos os
lados do espectro achando que a guerra cultural pode ser vantajosa para eles,
você tem a receita e os ingredientes para a raiva e o ódio que agora guiam a
política americana.
A
invasão pode servir como um ‘modelo’ para os iliberais em todo o mundo, quando
um movimento que repele a democracia invadiu o Congresso na democracia mais
simbólica do mundo?
Certamente
os políticos iliberais leram do manual de Trump nos últimos tempos e podem usar
isso como modelo para minar a confiança e a fé na integridade das eleições no
futuro. Por isso é importante que o ataque tenha falhado. Eles não tiveram
sucesso em minar a ratificação da eleição que colocou Biden na Casa Branca.
Espero que esse momento forneça um ponto de referência de que pessoas de ambos
os lados concordem pelo menos que um ataque para acabar com a legitimidade da
eleição era inaceitável. Então, isso também pode acender uma espécie de alerta
aos políticos no mundo todo.
Como
Joe Biden pode trabalhar pela pacificação e pela união que prometeu na
campanha?
Não
é possível simplesmente contornar a polarização na política americana. Biden
não vai conseguir superar completamente a polarização que conhecemos na
sociedade americana há muitas décadas. Ele precisa se manter firme em sua linha
de que muitas pessoas que votaram em Trump não são ruins, apenas têm divergências
políticas profundas.
Não
são todas pessoas terríveis que precisam ser expulsas do sistema político.
Biden precisa deixar claro que sua voz é forte nesse tom, mais forte do que a
daqueles que querem colocar metade dos seus compatriotas em um lugar
considerado irremediável.
Biden
precisa também trabalhar com muita firmeza em políticas que farão o país
realmente avançar – iniciativas econômicas, luta contra a pandemia, construir
infraestruturas – e trazer melhorias reais para os EUA. Se Biden se concentrar
nisso e não em gastar seu tempo brigando com Trump, pode se tornar mais
popular.
E
qual seria a outra alternativa possível?
Que
Biden e os democratas passem grande parte dos próximos anos perseguindo
processos contra Trump, processos de impeachment, colocando-o no centro das
atenções e dando-lhe algumas vitórias no momento em que ele saiu da cena
política como um perdedor, tirado da Casa Branca pela vontade de 81 milhões de
americanos, mostrando que agiu como uma criança que não conseguia aceitar a
derrota. Esse último ato (invasão
no Capitólio) é mais importante que uma possível segunda derrota do
impeachment no Senado (Trump já
foi alvo de um processo de impeachment no fim de 2019).
Como
restaurar a fé na democracia e no sistema político?
Há
um bom número de reformas institucionais concretas que a política americana
poderia adotar para elevar a fé e a confiança nas eleições. Existem muitos
abusos do sistema político a prática de desenhar distritos eleitorais de forma
a dar vantagem a um partido político resultando em regiões sem nenhum sentido
geográfico.
É
preciso profissionalizar isso com comissões de especialista, algoritmos, para
não beneficiar nenhum lado. Esse é só um dos exemplos, mas a confiança no
sistema democrático é outro ponto. Esse tipo de crise vem, em grande medida,
pela dificuldade de aprovar o necessário e pelas divisões profundas da
sociedade americana.
Quando
essa onda populista que domina os EUA começou?
É
preciso ver essa situação de maneira mais ampla. Vemos o avanço do populismo na
Polônia, Turquia, Filipinas, no Brasil, por uma série fatores específicos. Um
dos motivos tem a ver com a internet e as mídias sociais, que tornaram muito
mais fácil com que políticos outsiders conseguissem controlar o sistema
político. A vitória de Biden é um grande motivo para acreditar que está havendo
uma luta contra esses populistas.
Mas o populismo continua no poder em muitos países, como Narendra Modi na Índia e Jair Bolsonaro no Brasil. Só esses dois já são exemplos muito importantes. E é muito possível que continuemos a ver esse conflito fundamental entre democracias e ditaduras, populismos e democracias iliberais, por muitos anos.
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