domingo, 24 de janeiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O bom combate – Opinião | O Estado de S. Paulo

O momento é de cuidar para que os cidadãos não sejam abandonados, de votar as reformas e de restabelecer a sanidade da Presidência da República

O presidente Jair Bolsonaro é um parasita das iniciativas alheias. 

Foi assim com a reforma da Previdência, que ele sabotou em vez de apoiar, e uma vez aprovada tratou de, cinicamente, relacioná-la entre as conquistas de seu governo; foi assim com o auxílio emergencial para os que perderam renda na pandemia, cujo valor, se dependesse do presidente, seria de apenas R$ 200, mas, quando o Congresso elevou para R$ 500, Bolsonaro, como se estivesse a jogar truco, mandou subir para R$ 600, só para ter os louros do tão necessário socorro; e foi assim com a vacina contra a covid-19: depois de ter sistematicamente levantado suspeitas sobre os imunizantes, de ter feito campanha para que os brasileiros tomassem elixires mágicos sem qualquer eficácia e de ter mantido no Ministério da Saúde um almoxarife que não foi competente nem sequer para planejar a compra de agulhas e seringas, Bolsonaro agora reivindica como a “vacina do Brasil” a que foi produzida por iniciativa exclusiva do governo de São Paulo – e que ele reiteradas vezes desmereceu e disse que jamais compraria.

Se foi assim na primeira metade do mandato, é muito provável que na segunda metade Bolsonaro, na sua tresloucada ânsia de reeleição, continuará a viver à custa da energia alheia, já que há muito tempo provou ser incapaz de fazer algo produtivo por conta própria. Bolsonaro não existe senão como expressão do oportunismo mais rasteiro e, agora temos certeza, cruel e desumano. Nem os mais ingênuos panglossianos são capazes, hoje, de nutrir esperanças de que o presidente se emendará num futuro previsível. 

O problema é que esse organismo traiçoeiro que exaure as forças de seu hospedeiro é formalmente o presidente da República, isto é, concentra em sua caneta o poder máximo da União. Pode ainda causar muitos estragos ao País, dado que sua natureza é exclusivamente destrutiva. Por essa razão, é compreensível, como já observado neste espaço, que cada vez mais cidadãos brasileiros estejam convencidos de que não haverá cura para a septicemia causada pelo vírus bolsonarista sem o afastamento constitucional do presidente.

Até que se reúnam as condições políticas objetivas para o impeachment, contudo, há um colossal trabalho a ser feito, isto é, superar a crise provocada pela pandemia e pela incompetência do governo. Para as forças de oposição, essa demanda coloca um dilema nada desprezível: a recuperação do País, pela qual todos de bom senso devem lutar, certamente será convertida em capital político-eleitoral por Bolsonaro, que, fiel a seu caráter, nada fará além de servir-se dos feitos dos outros para alimentar suas patranhas palanqueiras.

Esse dilema foi exposto pelo líder do PT no Senado, Rogério Carvalho, em entrevista recente ao Estado. O petista disse que seu partido, embora radicalmente de oposição, votou várias pautas junto com a base do governo porque “eram iniciativa dos próprios parlamentares” e porque “o interesse maior é diminuir o sofrimento das pessoas, ainda que com prejuízo político para o PT”.

O senador petista admitiu que “Bolsonaro tira vantagem”, mas disse que isso não importa: “Evitamos uma catástrofe maior (na pandemia) e fomos responsáveis. Tem um custo essa responsabilidade. Nós perdemos a capacidade de fazer um discurso mais duro contra Bolsonaro, mas isso ia adiantar o que para a vida das pessoas?”.

Descontando-se o fato de que o senador é de um partido que sempre pensou antes em seus objetivos estratégicos do que nos interesses do País, a fala indica o grande problema da oposição a Bolsonaro.

Mas não deveria haver dúvidas. Se a oposição tem de agir de maneira responsável em situações normais, deve ser ainda mais consequente quando o que está em jogo é a vida dos brasileiros e a saúde da democracia. Agora é o momento de cuidar – para que os cidadãos não sejam abandonados em meio à maior crise da história recente –, de votar as profundas reformas de que o País desesperadamente necessita e, não menos importante, de restabelecer a sanidade da Presidência da República, usando para isso as ferramentas legítimas que a Constituição oferece. Isso é combater o bom combate.

Apedeutas cívicos – Opinião | O Estado de S. Paulo

Que as instituições do País não se intimidem e exponham as patranhas do presidente

Sempre que sua escandalosa incompetência fica clara para todo o País, como é o caso de sua conduta criminosa ao longo da crise causada pela pandemia de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro tenta maliciosamente atrair os brasileiros para seu universo delirante – em que o inimigo a ser combatido não é o coronavírus ou o desemprego, que são bem reais e ameaçam de fato a vida e o bem-estar de todos os brasileiros, mas o comunismo, que só existe no discurso demente dos camisas pardas bolsonaristas.

Nesse mundo, a democracia não é uma conquista dos cidadãos brasileiros, consubstanciada na Constituição de 1988, mas uma concessão das Forças Armadas. “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”, declarou Bolsonaro na segunda-feira, dia 18, a um punhado de devotos. “Não tem ditadura onde as Forças Armadas não apoiam.”

Quando é necessário esclarecer ao presidente da República que, numa democracia, as Forças Armadas não são um poder moderador e estão submetidas ao poder civil livremente escolhido pelos eleitores, é porque a Presidência está ocupada por um apedeuta cívico.

Mas há apedeutas e apedeutas. Há os que não tiveram a educação cívica necessária para a convivência democrática saudável e acreditam que a democracia é mesmo um presente dos militares, como é o caso dos tolos que se dizem saudosos da ditadura, e há os espertalhões que, uma vez no poder, pretendem insidiosamente arrastar as Forças Armadas para uma desvairada aventura autoritária. Nem é preciso dizer qual apedeuta é mais perigoso.

“O pessoal parece que não enxerga o que o povo passa, para onde querem levar o Brasil. Para o socialismo. Por que sucatearam as Forças Armadas ao longo de 20 anos? Porque nós, militares, somos o último obstáculo para o socialismo”, disse Bolsonaro. Nem é o caso de comentar a sugestão ridícula de que as dificuldades orçamentárias dos militares foram deliberadamente causadas por “comunistas” para tomar o poder. O importante é que o presidente, ao se qualificar como “militar” – malgrado ter saído da caserna há mais de 30 anos, e de maneira desonrosa –, tenta amalgamar seu governo às Forças Armadas, como se fossem uma coisa só, na luta contra o “socialismo”.

Não foi a primeira vez que Bolsonaro fez isso, e nada indica que será a última, já que a ignorância e a má-fé deixaram uma marca indelével em seu caráter. Diante da significativa queda de popularidade detectada por recentes pesquisas e da crescente mobilização de parte da sociedade por seu impeachment, Bolsonaro tende a recrudescer sua guerra pessoal contra os brasileiros que não levam seu sobrenome ou não lhe devotam religiosa lealdade.

Nessa guerra tresloucada, a verdade, por ser a expressão da realidade, é a principal inimiga. A mentira tornou-se política de Estado sob Bolsonaro, e isso ficou ainda mais claro durante a pandemia. Na segunda-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de soltar uma nota oficial para dizer que “não é verdadeira” a afirmação de que proibiu o governo federal de agir no enfrentamento da pandemia, desmentindo mais uma vez o presidente da República, que voltou a usar essa “decisão do STF”, que só existe em sua imaginação cavilosa, para justificar sua indecorosa inação.

Quando a principal Corte do País é obrigada a vir a público para expor uma mentira descarada do presidente da República, é porque já não se trata mais de apenas corrigir informações equivocadas eventualmente disseminadas pelo governo, e sim de impedir que a sistemática campanha mendaz do bolsonarismo atinja seu objetivo: destruir a confiança nas instituições democráticas, alimentar o antagonismo e abrir caminho para empreendimentos golpistas. 

“No Brasil temos liberdade ainda”, mas “tudo pode mudar”, advertiu Bolsonaro, usando o advérbio que indica uma circunstância provisória, incerta. Que as instituições não se intimidem, exponham as patranhas do presidente e deixem claro a quem interessar possa que a democracia no Brasil não é uma contingência frágil, e sim uma sólida construção coletiva, que resistirá até mesmo ao bolsonarismo.

Candidato da aberração tributária – Opinião | O Estado de S. Paulo

Guedes aposta em Lira para aprovar a CPMF. É mais uma razão para rejeitar seu nome

O ministro da Economia, Paulo Guedes, aposta no deputado Arthur Lira (PP-AL), candidato bolsonariano à presidência da Câmara, para encaminhar e apoiar um projeto de recriação da CPMF, uma das maiores aberrações da história dos tributos. Esse é mais um excelente motivo – além da biografia política do deputado – para evitar sua vitória nessa disputa. O ministro deu sinais, nas últimas duas semanas, da intenção de reapresentar a proposta depois de eleitos os presidentes das duas Casas do Congresso, informou o Estado.

Para defender seu projeto, o ministro insistirá, segundo fontes mencionadas na reportagem, na arenga da criação de empregos. Recriada a CPMF, haverá espaço, nas contas públicas, para redução de encargos trabalhistas e, portanto, maior estímulo à contratação de trabalhadores. Há nesse argumento uma enorme confusão.

Diminuição de encargos pode contribuir para a manutenção de empregos. Pode até facilitar a contratação, se as empresas precisarem de pessoal. Mas empresas normais só procuram pessoal quando precisam ou quando preveem a necessidade de mão de obra. Essa é a primeira condição. Em outros tempos, empresários podiam aproveitar o custo baixo e atraente para fazer estoque de braços, mesmo sem necessidade imediata. Mas isso foi antes da Lei Áurea, passo muito importante para o surgimento, no Brasil, de um capitalismo compatível com a modernidade.

Removida essa confusão, restam argumentos mais sérios a favor da redução de encargos trabalhistas. Se isso for possível sem expor os trabalhadores a uma insegurança maior e a uma posição muito mais desvantajosa na relação de mercado, a diminuição dos custos trabalhistas será muito bem-vinda. Mas a criação de empregos dependerá, em primeiro lugar, do ritmo da atividade econômica e das expectativas. O governo continua devendo um claro roteiro para 2021.

De toda forma, diminuição de custos tem ocorrido com sucesso, em outros países, sem a implantação de aberrações tributárias. Sem monstrinhos como a CPMF, condições de produção mais eficientes e menos entravadas por tributos disfuncionais e injustos são encontráveis na Europa, na América do Norte e nas economias mais competitivas da área do Pacífico.

As alegadas vantagens de arrecadação, como simplicidade, cobertura ampla e dificuldade de sonegação, de nenhum modo compensam as desvantagens de um imposto como a CPMF. É um tributo indisfarçavelmente cumulativo. Incide sobre si mesmo e sobre outros impostos e contribuições. Além disso, atinge sem distinção todos os níveis de renda, onerando proporcionalmente mais as pessoas mais pobres.

Enfim, é um imposto especialmente aberrante por incidir sobre qualquer movimentação de dinheiro, sem diferença entre a compra de um colar de diamantes e a remessa de um trabalhador para a mãe pobre, viúva e dependente de ajuda.

A indigência, no entanto, aparece com formas variadas no Brasil. Pode manifestar-se, por exemplo, como a pobreza associada às desigualdades econômicas e sociais. Pode ocorrer também como característica de um governo incapaz de diagnosticar os problemas e de formular planos, programas e projetos para modernizar o País, torná-lo mais eficiente e aumentar seu potencial de produção e de crescimento. Nenhuma dessas deficiências será curada ou atenuada com a volta da CPMF, a pior parte de uma proposta de reforma tributária indigente e escandalosamente inferior a qualquer projeto já em tramitação no Congresso.

Além de ser visto como um possível defensor da CPMF, se eleito presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira já se mostrou, em outra ocasião, favorável a esse tributo, se implantado com uma alíquota menor que a pretendida pelo ministro. Se a aprovação desse monstrinho for uma de suas missões, os deputados comprometidos com alguma seriedade têm aí mais um excelente motivo para rejeitar esse candidato. Mas nem pensariam em apoiá-lo se apenas considerassem sua biografia, rica de questões penais, como acusações de rachadinhas e de lavagem de dinheiro, como já se divulgou fartamente.

Bolsonaro em queda – Opinião | Folha de S. Paulo

Descrédito impõe que próximo presidente da Câmara paute pedidos de impeachment

O Datafolha voltou a questionar o eleitorado sobre o apoio a um processo de impeachment de Jair Bolsonaro. Que o tema siga na pauta do país é sinal inequívoco de que o governo instalado há pouco mais de dois anos constitui uma anomalia.

Em maio do ano passado, quando o presidente se dedicava a insuflar ataques golpistas contra os demais Poderes e era acusado de interferir na Polícia Federal em benefício de sua família, 46% dos brasileiros aptos a votar entendiam que o Congresso deveria abrir um processo para afastá-lo —contra a vontade de 50%.

De lá para cá, Bolsonaro acumulou nova e farta coleção de vilezas, notadamente na sabotagem aberta às políticas de combate à pandemia, cujo fracasso nacional culminou na tragédia de Manaus. Hoje, 42% apoiam o impeachment, ante 53% contrários à medida.

Compreende-se que a opinião pública e, por extensão, o mundo político hesitem diante de intervenção tão drástica. Há indicadores mais evidentes da deterioração da imagem do mandatário, que para metade dos brasileiros não tem condições de liderar o país.

Conforme o Datafolha, a aprovação a seu governo caiu de 37%, em janeiro, para 31%. No período, os que consideram a gestão ruim ou péssima passaram de 32% a 40%, cifras semelhantes às do pior momento desta administração, em junho (32% e 44%, respectivamente).

Desde Fernando Collor, que não concluiu seu mandato, um presidente eleito não ostentava números tão ruins a esta altura.

Ainda assim, Bolsonaro dispõe de apoio suficiente para tornar difícil o avanço de um processo de impedimento já —embora a pregação mortal contra medidas de distanciamento, a defesa charlatona de medicamentos ineficazes e a ofensiva infame contra a vacinação possam facilmente ser consideradas crimes de responsabilidade.

Mesmo calcada em fundamentos jurídicos, a deposição institucional de um mandatário é evento sobretudo político. E, como se percebe na disputa pelos comandos da Câmara dos Deputados e do Senado, a providência não conta, até aqui, com a ampla maioria corretamente exigida pela Constituição.

Para esta Folha, o impeachment é recurso extremo, vagaroso e sempre traumático. Infelizmente não há como ignorar, todavia, a conduta indigna de Bolsonaro, nem os quase 60 pedidos de abertura de processo que aguardam decisão já tardia —e cujas motivações têm amparo em não poucos pareceres jurídicos, como mostrou o jornal.

Analisá-los é imperativo para o próximo presidente da Câmara, e congressistas não devem se esquivar de debater às claras seus fundamentos. Trata-se de resposta que não pode ser sonegada à sociedade.

O alerta do BC – Opinião | Folha de S. Paulo

Incerteza fiscal e risco inflacionário podem levar juros a subirem, indica órgão

Em decisão unânime, o Comitê de Política Monetária do Banco Central manteve a taxa básica de juros em 2% ao ano em sua primeira reunião do ano. A decisão ficou dentro do esperado, mas a autoridade monetária também indicou estar mais próxima de determinar uma elevação no custo do dinheiro.

Até então, o BC indicava que não faria mudanças nos juros enquanto duas condições estivessem satisfeitas. Eram elas a preservação do regime fiscal —entendida como aderência ao teto constitucional para os gastos federais— e a permanência das projeções de inflação abaixo das metas de 3,75% para este ano e 3,5% para 2022.

Se ainda não há rompimento da primeira condição, é inegável que os riscos para as contas públicas aumentaram. O agravamento da pandemia e o drama humanitário em Manaus devem elevar as pressões no Congresso por novos estímulos emergenciais, o que pode elevar ainda mais a dívida federal.

O debate a respeito de um novo auxílio ou de reforços no Bolsa Família tende a ganhar ímpeto nas próximas semanas, após o resultado das eleições para as presidências da Câmara e do Senado. É necessário, de fato, tratar do tema, mas de modo responsável e com foco nos estratos mais pobres.

Entretanto é na inflação que os riscos se apresentam mais claramente. Depois de alguma acomodação no final do ano, os preços de matérias-primas e sobretudo alimentos voltaram a subir. A retomada desbalanceada da economia nos últimos meses trouxe escassez de insumos e altas significativas de preços em vários setores.

Daí vem a sinalização do BC de que não estão mais preenchidas as condições para garantir a permanência da Selic no patamar atual. Em contrapartida, as incertezas dos próximos meses, a começar pelo risco de recaída recessiva, não sugerem alta iminente dos juros.

O BC faz bem em alertar para os novos perigos enquanto permanece paciente para observar a evolução da economia e do ambiente político para reformas e gastos nos próximos meses. Mas o sinal foi dado —já não há margem de manobra e qualquer deslize fará a taxa subir, uma expectativa que vai se consolidando.

Cabe ao Executivo e ao Congresso perceberem que a necessidade de apoio humanitário na pandemia deve ser acompanhada por um esforço sério e renovado por reformas que garantam a solidez fiscal e a retomada do crescimento.

Câmara não deveria esquecer PEC da 2ª instância – Opinião | O Globo

Nem Lira nem Rossi, porém, incluirão projeto da antecipação da prisão na lista de prioridades

A escolha do novo presidente da Câmara não facilitará a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estipula o cumprimento das penas depois da decisão da segunda instância do Judiciário, jurisprudência derrotada no Supremo no final de 2019 por um voto. Nem Arthur Lira (PP-AL) nem Baleia Rossi (MDB-SP) assumem esse compromisso. É uma lástima, pois a medida melhoraria a legislação penal brasileira e reduziria os incentivos à criminalidade e à corrupção.

Não é difícil entender o motivo para a omissão de ambos. Há, nos partidos e nas coligações que os apoiam, parlamentares e políticos atingidos pela Lava-Jato e por outras operações anticorrupção, a começar pelo próprio Lira, denunciado em pelo menos dois processos.

No MDB de Rossi, entre investigados e processados, estão o ex-presidente Michel Temer e o senador Renan Calheiros. Um dos partidos da aliança que apoia Rossi é o PT, que não esquece a prisão de Lula nem sua inelegibilidade por oito anos, resultado de duas condenações na segunda instância.

A segunda instância, momento em que a sentença é submetida a um tribunal colegiado, marca o fim do exame das provas e do estabelecimento da culpa por um crime. Praticamente todas as democracias maduras dão início ao cumprimento da pena uma vez encerrada essa fase (algumas até antes). Era também assim no Brasil, até que a jurisprudência estabelecida pelo Código de Processo Penal de 1941 fosse revogada em 2009, por uma sentença do então ministro Eros Grau.

A prática foi restabelecida em 2016, numa decisão do ministro Teori Zavascki, mas caiu novamente em 2019 no Supremo, numa votação apertada, em que o então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, deu o voto decisivo. Desde então, prevalece o entendimento de que alguém só pode ser considerado culpado e começar a cumprir a pena depois de examinados todos os infindáveis recursos a que tem direito pela legislação.

É certo que há interpretações conflitantes sobre o que o artigo 5º da Constituição tem a dizer a respeito do cumprimento da sentença depois do “trânsito em julgado” (momento em que todos esses recursos estão esgotados e, muitas vezes, os crimes já estão prescritos). Por isso, ficou entendido que a melhor maneira de inserir no processo penal um dissuasivo mais robusto contra o crime é a PEC parada na Câmara.

Depois que caiu o cumprimento da pena após a segunda instância, houve grande retrocesso no enfrentamento do crime de “colarinho branco”. Foi um revés não apenas para o legado da Lava-Jato, mas para todos os que apostaram no atual governo para fazer avançar o combate à criminalidade e à corrupção, combalido também pelo esvaziamento do modelo de forças-tarefas. Mesmo que se admitam excessos na Lava-Jato, é melhor corrigi-los do que permitir o retorno da impunidade que tanto encorajou a corrupção. Restabelecer a prisão depois da segunda instância funcionaria como uma pedagógica barreira de contenção.

Mudanças na fiscalização de obras degradam o planejamento urbano – Opinião | O Globo

Resolução do Ministério da Economia permite construções sem passar pelos órgãos públicos

Pode parecer inusitado que o governo federal se preocupe com construções e reformas em imóveis comerciais nos 5.570 municípios brasileiros. Por motivos óbvios, elas estão submetidas a licenciamento e fiscalização de governos locais, que têm atribuição constitucional para isso. Mas uma resolução do Ministério da Economia passou a permitir que obras em estabelecimentos de uso comercial sejam aprovadas sem passar pelos órgãos públicos de licenciamento.

De acordo com as novas regras, essas obras passarão a ser autorizadas por empresas habilitadas pelo Ministério da Economia, sem interferência desses órgãos públicos. As empresas integrarão o Mercado Urbanístico de Integração Nacional, o Murin. A medida vale para construções e reformas comerciais de baixo risco. Esse ponto crucial — definir o que é baixo risco — ficará a critério dos municípios. Na prática, o proprietário declara que está cumprindo as legislações, e a empresa emite a dispensa de alvará.

A justificativa para passar essa “boiada imobiliária” é desburocratizar licenciamentos para obras comerciais de pequeno porte — construção ou reforma. A pretexto de desburocratizar, porém, passa-se por cima de normas importantes que afetam a coletividade. O espaço urbano tem regras que visam a uma convivência pacífica entre os cidadãos: tipos de atividades permitidas em determinadas áreas, altura e volume das construções, padrões urbanísticos etc. Daí a necessidade de o poder público — que regula a ocupação do solo — avaliar esses projetos.

“Que quer o ministério?”, indagou o arquiteto Sérgio Magalhães em artigo no GLOBO. “Quer que o interessado pelas obras declare para a empresa, sob responsabilidade civil e penal, que seu projeto cumpre todas as leis: urbanísticas, edilícias, dos bombeiros, do Comando Regional Aéreo, ambientais, fundiárias, de vizinhança, de risco, entre outras. Com essa declaração, mediante pagamento, a empresa autoriza a obra de maneira automática.”

Desatar os nós de desenvolvimento num país atravancado pela burocracia é importante, mas não em sacrifício do bem-estar da coletividade. O serviço público de licenciamento e fiscalização é essencial para o planejamento urbano. A desordem e a insegurança que degradam as cidades não são fruto do excesso de fiscalização, mas certamente da falta dela. Há muitas outras ações — como as necessárias reformas que o governo Jair Bolsonaro abandonou — capazes de destravar o crescimento. Um “liberou geral” na fiscalização de obras — mais uma “boiada” em que o governo passa ao largo da sociedade — pode no máximo levar ao crescimento da desordem no espaço urbano, já repleto de irregularidades.

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