Valor Econômico
Conter a demanda é o efeito colateral
indesejado e não o objetivo da elevação na taxa de juros
Em sua edição de domingo, 30 de janeiro, o
Financial Times adverte em matéria de capa que os senhores das finanças estão
temerosos diante das promessas do Federal Reserve de reverter paulatinamente os
estímulos monetários que sustentam as exuberância nas Bolsas de Valores.
O mercado da riqueza é um fenômeno estranho
à lógica convencional, sempre empenhada em formular deduções pela exclusão de
contradições. Os processos de mercado não podem ser avaliados pela concepção de
“ciência” que busca definir “valores de equilíbrio” extraídos de construções
teóricas que empobrecem as subjetividades dos protagonistas, como aquelas
formuladas sob o patrocínio das “expectativas racionais”.
As operações de mercado são viabilizadas por equivalências que simultaneamente significam percepções contrárias de valores. Seria uma ousadia convocar Theodor Adorno e sua Dialética Negativa para testemunhar que “palavras como problema e solução soam falsas na filosofia porque postulam a independência do pensado em relação ao pensamento precisamente lá onde pensamento e pensado são mediados reciprocamente”.
Ficamos com George Soros e seu conceito de
reflexividade para investigar a natureza das relações entre os protagonistas
dos mercados financeiros. “A característica distintiva da reflexividade é que
ela introduz um elemento de incerteza no pensamento dos participantes e um
elemento de indeterminação na situação em que participam”.
O preço da operação (equivalência)
significa uma oportunidade vantajosa para renúncia de liquidez e aquisição do
ativo para o comprador, e de renúncia do ativo em troca de liquidez para o
vendedor. No mercado financeiro cada qual prevê o futuro a sua maneira. O
comprador acredita que o prêmio esperado compensa o risco, ocorrendo o oposto
com o vendedor. O benefício para o comprador será realizado caso o tempo
entregue os ganhos esperados com a aquisição do ativo.
As percepções distintas de valores são
possíveis no presente enquanto expectativas distintas, mas o futuro não
proporcionará um resultado mutuamente vantajoso. O tempo irá dissolver as
percepções de benefícios mútuos, revelando ganhadores e perdedores, ao
confirmar, superar ou frustrar as apostas.
A economia colaborativa descrita na teoria
clássica - sempre dedicada em atribuir vantagens mútuas nas trocas entre
agentes mobilizados pelo desejo de consumo de utilidades diversas - é
subvertida por movimentos de agentes com percepções inversas quanto à
estratégia para realizar um desejo mútuo (e contraposto) de expandir seu valor
em dinheiro.
As transações dependem da existência destas
percepções contrárias quanto a expectativa de evolução do ativo a partir de um
mesmo preço. Os preços são formados por convenções dos agentes de mercado,
enquanto registro da expectativa média da maioria aferida pelo volume financeiro
destinado às probabilidades.
Subitamente, o consenso das expectativas
interrompe o funcionamento do mercado. A crise financeira de 2008 é um caso
exemplar de elevação radical da preferência pela liquidez, capaz de interromper
o funcionamento do mercado e atirar os ativos em uma espiral descendente. A
generalização das apostas na desvalorização dos ativos promove o empenho
coletivo dos agentes na venda, carente da demanda de agentes com expectativas
contrárias (compradores). A expectativa de queda é capaz de realizar o próprio
efeito temido, pois o aumento na oferta e queda na demanda dos ativos provoca
sua desvalorização.
Ante a generalização das opiniões de
mercado na venda de ativos e demanda por liquidez, as autoridades monetárias
não apenas tentaram induzir a reversão das expectativas baixistas em altistas
por meio dos instrumentos convencionais, como redução nas taxas de juros, mas
passaram a desempenhar o papel de posição contrária, ofertando liquidez e
demandando ativos, para viabilizar o funcionamento do mercado.
Em janeiro de 2022 os balanços dos bancos
centrais da Europa, EUA, China e Japão somam um estoque de US$ 31 trilhões em
ativos. A demonstração da possibilidade de o governo produzir a demanda e
recursos para preservar o valor dos ativos no mercado financeiro, fomentou o
debate e propostas quanto a possibilidade de o governo proporcionar demanda por
emprego aos desempregados, ofertar recursos para suprir o déficit de serviços
público ou utilizar o orçamento para conduzir a transição para uma economia
ambientalmente sustentável.
Enquanto Biden investe em seu pacote de
estímulo fiscal, Jerome Powell, de forma hesitante, mas progressiva, tem
sinalizado a retirada dos estímulos monetários com redução nas compras de
ativos, elevação na taxa de juro e perspectiva de redução do balanço do Fed.
Foi suficiente para provocar a desvalorização do real e elevar a curva de juros
no Brasil.
Na economia brasileira, com 29 milhões de
subutilizados, 12 milhões de desempregados e o menor rendimento da série
histórica do IBGE, conter a demanda é o efeito colateral indesejado e não o
objetivo da elevação na taxa de juros. A elevação da Selic parece estar mais
dedicada a aumentar o prêmio dos detentores de posições em reais para conter os
efeitos da desvalorização cambial na inflação.
Os efeitos do aumento nos juros são
sentidos de forma imediata nos ativos que sofrem marcação a mercado, pela
penalização nos valores presentes estimados pelo desconto das receitas
esperadas à uma taxa mais elevada, mas também promovem a desvalorização de
ativos menos líquidos, as condições de investimento para as empresas e de
consumo para as pessoas, enfim, a redução da rentabilidade dos negócios pelo
aumento do serviço da dívida.
O conhecido estrangulamento externo,
condicionante dos ciclos da economia brasileira, é reeditado em patamar mais
elevado. No Brasil só é possível realizar política monetária em atenção às
condições de emprego e renda do país quando as relações de prêmio e risco entre
as moedas americana e brasileira não promovem inflação.
Em 1929 ou 2008, superar a crise exigiu
avançar em novos caminhos na busca de maior capacidade em determinar o destino
econômico e reafirmar o cuidado mútuo que significa a vida em sociedade. É hora
de mudar o receituário.
*Gabriel Galípolo é
presidente do Banco Fator e mestre em economia (PUC-SP).
*Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular de Economia da Unicamp
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