O Globo
Desde há muito trato da pandemia —
especificamente da vacinação — como campo ideal para o exercício da
radicalização bolsonarista; território perfeito à produção-circulação de
teorias conspirativas.
Claro que há outros chãos favoráveis ao
fluxo do discurso sectário com vista à eleição de 2022. Por exemplo: a
desinformação fidelizante difundida pela campanha do voto impresso, cruzada
pela suspeição das urnas eletrônicas, uma empresa pela dilapidação do sistema eleitoral;
mas cujos limites logo armariam os freios, o maior dos quais o fato de existir
um inquérito instaurado de ofício, dependente apenas da caneta de Alexandre de
Moraes.
Os movimentos nesse processo, muitos sob a
vara da PF, assustaram.
No caso da pandemia, inexistente um inquérito como o governado por Moraes (em que o STF é vítima, acusador e juiz), a criminalização da conduta do presidente dependeria de gestões da PGR. Bolsonaro está blindado neste flanco — e sabe. A CPI da Covid, que lhe deu muito trabalho, não terá como se desdobrar sem Aras. (Lira, na Câmara, é seu sócio.) Daí por que deite e role. Daí por que, ante a vacinação de crianças, sinta-se ainda mais à vontade para acelerar o esforço por desacreditar vacinas.
Não é novidade que essa pregação
desinformante opere em movimento pendular: com Bolsonaro de um lado lançando o
pêndulo ao extremo dos ataques à vacinação (ou aos decretos de distanciamento
social), com o que abastece sua base social, também por meio de confrontos com
governadores, os tiranos ladrões da liberdade; de outro, ante a imposição do
mundo real, levando o pêndulo até mesmo ao lugar em que o governo tentaria
competir pela liderança do programa de vacinação, seja porque acossado por
Doria, que começara a vacinar antes, seja pela repercussão da CPI.
Padrão.
O mundo real sempre se impõe. E então
Bolsonaro afrouxa a corda. Até que as condições a um novo ciclo embusteiro se
deem, e o bolsonarismo, liderado pelo presidente da República, dispare-se,
sentindo-se seguro, em novo impulso de radicalização. O esquema se repetiu
quando da vacinação de jovens. E agora, com as crianças. Pêndulo vai. O mundo
real se impõe. Pêndulo vem. Uma, duas, três, mil vezes — a imposição do mundo
real. Mas não tarda a que se apague — a que seja apagada — para a constituição
artificial de um novo palco de combate, de uma nova forja à confecção de
inimigos imaginários.
Ou não teremos visto o ministro da Saúde,
personificação desse movimento pendular, falar — não faz duas semanas — em 4
mil mortes comprovadamente relacionadas à vacinação? Uma informação errada, mas
não um erro.
Padrão.
Como Bolsonaro — aterrando a realidade —
insiste na farsa de que esteve certo, pensando na saúde da economia brasileira,
quando bradou contra a prioridade das vacinas e a necessidade de restrições à
circulação de pessoas, lembremos do último trimestre de 2020. Era o momento
decisivo para o fechamento de contrato com a Pfizer; para que se iniciasse a
vacinação ainda naquele ano, e já estava evidente que a reativação orgânica da
economia só viria com a vacinação em massa. Mas o governo foi negligente e
fabricou impedimentos.
Por quê? Porque iria “surpreender o mundo”,
totalmente comprado na tal imunidade de rebanho. Para que gastar com vacinas? A
cloroquina como placebo que empurraria o povo às ruas, do que se colheria o
produto “contaminação em massa”, situação em que, sem parar a economia,
chegar-se-ia ao fim da pandemia naturalmente.
“Baixíssima probabilidade de segunda onda”
em 2021 — dizia, naquela altura, um secretário de Paulo Guedes. Era a aposta no
declínio da peste, imunizados os brasileiros por contágio, paralelamente à
economia que se recuperava em V. Aí está. Daquela mentalidade derivando também,
vacinas em segundo plano, a suspensão do auxílio emergencial entre janeiro e
abril — janeiro de 21, aliás, o mês em que o governo brincaria de TratCov
na Manaus sem oxigênio.
O mundo real se impôs. Bolsonaro, porém,
continua a atribuir a falência da economia aos outros. E Queiroga quer ser
reconhecido como o ministro que acabará com a pandemia.
Atenção à nova base de lançamento para as
mentiras bolsonaristas: a variante Ômicron. A maneira agressiva como contamina
consiste na própria definição de paraíso para a pregação antivacina; a moda
agora sendo acusar que as pessoas, mesmo com três doses, continuam contraindo o
vírus. É a materialização do inimigo imaginário, como se vacinados não pudessem
se contaminar. E como se fato não fosse que — mesmo diante da violência dessa
mutação e da explosão no volume de infectados — a vacina minimiza a gravidade
dos casos e diminui imensamente o número de vítimas fatais.
Não adianta.
Bolsonaro domina o zap profundo, a cuja
alimentação servem imposturas como a de Queiroga, e está à vontade para
radicalizar; o único risco contra si, em 2022, sendo o de perder a eleição.
Radicalizará para ter lastro competitivo. A estratégia: investir no campo de
embate da pandemia, navegando a Ômicron, e se aproximar ainda mais dos seus 20%
do eleitorado; apostar na “operação Ciro Nogueira” da máquina de modo a que a
gestão patrimonialista do Orçamento lhe traga mais alguns pontos; e confiar que
a mobilização do sentimento antilulopetista, talvez adormecido, mine em parte a
posição de Lula.
Um comentário:
Nossa,que artigo longo!
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