terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Edu Lyra: Pedras de esperança

O Globo

No ano passado, visitei em Washington o memorial de Martin Luther King, o ativista pelos direitos civis dos negros americanos que se tornou um dos maiores líderes de causas sociais do século XX. Exposta num parque, a enorme rocha de granito de onde emerge sua figura recortada nos obriga a elevar o olhar. Na lateral, lê-se: “Da montanha de desespero, [surge uma] pedra de esperança”. É um trecho do famoso discurso em que ele falava do seu sonho de ver negros e brancos convivendo harmonicamente.

Não deixa de ser simbólico que o monumento tenha sido inaugurado, em 2011, por Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos — um país que, como o Brasil, tem sua história manchada pela escravidão. Foram sementes plantadas por lideranças lúcidas e corajosas como Luther King que permitiram ao país superar leis de segregação que vigoraram até poucas décadas atrás.

A visita me levou a refletir sobre nossa situação. Vivemos num país racista. Sei, até por experiência própria, que é raro um negro que não tenha sido vítima de uma humilhante história de racismo. Feita a constatação, porém, é o caso de perguntar: quais pedras de esperança deixaremos às próximas gerações, para que elas construam edifícios sociais menos desiguais e injustos?

A tarefa é árdua, temos que lidar com uma herança maldita de séculos. Estou lendo com grande interesse o primeiro volume de “Escravidão”, de Laurentino Gomes, e aprendendo sobre as origens das mazelas sociais brasileiras.

A escravidão de africanos não é comparável a escravidões anteriores descritas pela história. O componente racial, o caráter comercial, a escala industrial, tudo isso tornou a escravidão de negros um fenômeno tão único quanto abjeto. Ao longo dos séculos, 12 milhões de seres humanos foram sequestrados e traficados para as Américas. Desses, cerca de 5 milhões vieram para cá. O Brasil extinguiu formalmente a escravidão com a Lei Áurea, em 1888, mas nunca se preocupou em fazer a inclusão social da população negra.

Os resultados dessa escolha são visíveis ainda hoje a qualquer um que tenha um mínimo de sensibilidade social. As estatísticas são eloquentes. Embora os negros sejam 54% da população, representam 78% do décimo mais pobre dos brasileiros. No alto da pirâmide social, a situação se inverte: entre o 1% mais rico da população, nem 18% são negros.

E mais: a grande maioria dos profissionais com maior qualificação, como engenheiros, médicos e advogados, é branca. Nas 500 maiores empresas do país, negros ocupam 4,7% dos cargos de direção e 6,3% dos cargos de gerência. Pouco mais que 9% da população negra tem pelo menos 12 anos de estudo (em comparação a 22% dos brancos). Além disso, num país violento como o nosso, um homem negro tem oito vezes mais chance de ser vítima de homicídio que um homem branco.

Luther King foi uma pedra de esperança para a população negra dos Estados Unidos. Precisamos, da mesma maneira, tirar uma lasca da nossa montanha de desespero e ajudar a construir um futuro melhor para todos, independentemente da cor da pele de cada um.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A escravidão é uma nódoa na nossa História.