EDITORIAIS
Supremo dá valioso recado ao país em ano
eleitoral
O Globo
A solenidade que abre os trabalhos do
Judiciário no começo de cada ano é sempre motivo de atenção para a sociedade. A
sessão solene do Supremo Tribunal Federal (STF) realizada por videoconferência
na terça-feira teve um atrativo a mais por se tratar de 2022, um ano de
eleições gerais. Ao presidente do STF, ministro Luiz Fux, coube a tarefa de
proferir o discurso de abertura. De forma firme e serena, ele mandou recados
claros e sensatos. Em tempos normais, muitos comentários poderiam ser
classificados como obviedades. Não em 2022.
Fux reconheceu que debates inflamados são
parte do jogo democrático, consequência de um ambiente onde circulam diferentes
visões sobre os problemas do país e como solucioná-los. Isso tudo é válido.
Campanhas que incentivam a polarização extremada não são. “A democracia não
comporta disputas baseadas no ‘nós contra eles’”, disse o presidente do STF,
que pediu tolerância e moderação nos embates entre os candidatos e seus
apoiadores, mas não apenas nesses casos.
Após três anos de governo Bolsonaro, Fux foi categórico: “Não há mais espaços para ações contra o regime democrático e para violência contra as instituições públicas”, declarou. O magistrado não chegou a citar o nome de Jair Bolsonaro, provavelmente porque são de conhecimento público todas as investidas do presidente contra órgãos de controle do Estado.
Lembrando que o STF é o guardião da
Constituição, Fux reconheceu que o caminho é árduo e sinuoso, mas que não
existe motivo para qualquer pessimismo. “Nesse cenário, o império da lei, a
higidez do texto constitucional brasileiro e a liberdade de imprensa reclamam
estar acima de qualquer que seja o resultado das eleições.”
Horas mais tarde, ainda na terça-feira, uma
outra solenidade marcou o reinício das atividades do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). Na ocasião, o atual presidente da instituição, Luís Roberto
Barroso, criticou Bolsonaro no caso do vazamento de dados do inquérito que
apura ataque hacker ao tribunal eleitoral. “Ninguém fornece informações que
possam facilitar ataques, invasões, e outros comportamentos delituosos. Tudo
aqui é transparente, mas sem ingenuidades. Sempre lembrando que informações
sigilosas que foram fornecidas à Polícia Federal para auxiliar uma investigação
foram vazadas pelo próprio presidente da República em redes sociais, divulgando
dados que auxiliam milícias digitais e hackers de todo o mundo que queiram
invadir nossos equipamentos”, disse Barroso.
Após o vazamento, o TSE teve que tomar
várias providências de reforço da segurança nos seus sistemas digitais. Na
semana passada, Bolsonaro se recusou a atender a uma intimação do STF para
depor e prestar esclarecimentos sobre o assunto. A conclusão da Polícia Federal
é que houve crime. Bolsonaro violou sigilo funcional para espalhar informações
falsas sobre a segurança das urnas eletrônicas. Entretanto, a ausência ao
depoimento, ainda segundo a Polícia Federal, não prejudicou as apurações. Como
bem disse Barroso na terça-feira, “faltam adjetivos para qualificar a atitude
deliberada de facilitar a exposição do processo eleitoral brasileiro para
ataques criminosos”.
Assassinato de congolês espancado em
quiosque não pode ficar impune
O Globo
O congolês Moïse Mugenyi Kabagambe veio
para o Brasil ainda adolescente. Sua família deixou a República Democrática do
Congo em meio a violentos conflitos, que levaram à morte muitos de seus
parentes. Na noite de 24 de janeiro, Moïse, de 24 anos, teve a vida
interrompida a pauladas, socos e pontapés, num quiosque da orla da Barra da
Tijuca, na Zona Oeste do Rio, onde fora cobrar uma dívida de R$ 200 referente a
dois dias de trabalho.
As imagens das agressões reveladas por
câmeras de segurança chocam pela selvageria. Ao menos três homens golpeiam o
congolês com um porrete por cerca de 15 minutos até a morte. A vítima teve mãos
e pés amarrados com fios. Depois da longa sessão de espancamento, os criminosos
tentam reanimá-lo com uma bizarra massagem cardíaca. Tarde demais. O laudo do
Instituto Médico-Legal explicita a brutalidade. A causa da morte foi
traumatismo no tórax com contusão pulmonar, provocada por ação contundente. Os
pulmões tinham áreas hemorrágicas de contusão e vestígios de broncoaspiração de
sangue. Segundo um perito, Moïse agonizou por cerca de dez minutos.
A Polícia Civil do Rio está investigando o
caso. Enquanto a mecânica do crime não ficar clara, é perigoso imputar racismo
ou xenofobia, embora essas chagas estivessem presentes na vida do rapaz. Nos
últimos dias, a polícia tomou depoimentos, recolheu imagens de câmeras de
segurança e fez pelo menos três prisões temporárias. A prefeitura interditou o
quiosque onde aconteceu o crime e suspendeu o seu alvará de funcionamento. Agem
corretamente diante da brutalidade e da grande repercussão do fato.
Evidentemente, a melhor resposta que se pode dar à barbárie é não deixar que
ela permaneça impune. É a sensação de impunidade e a crença de que tudo vai
ficar por isso mesmo que criam condições para que essas aberrações se
perpetuem.
Mas isso é apenas parte da questão. É
fundamental que se reflita sobre a situação de anomalia que conduz a esses
crimes bárbaros, num bairro nobre da segunda maior cidade do país e diante de
câmeras de segurança. Infelizmente, não se pode dizer que seja um ponto fora da
curva. Como mostrou reportagem do GLOBO, o assassinato de Moïse é o terceiro
caso de morte por espancamento na orla da Barra em menos de um mês. Não menos
preocupantes são as tentativas de linchamento de suspeitos de furtos nas praias
da Zona Sul — num intervalo de apenas três semanas, foram contabilizadas ao
menos 12. Essas distorções crescem na ausência do Estado. Não se trata de
fenômeno regional. Em abril do ano passado, dois suspeitos de furtar carne num
supermercado de Salvador (BA) foram entregues por seguranças ao tráfico para
serem assassinados. Eles haviam implorado que se chamasse a polícia.
São situações que não condizem com o Estado
Democrático de Direito. A sociedade deve rechaçar de forma veemente esses
crimes. Sem isso, a pena será normalizar a barbárie.
Trágica rotina
Folha de S. Paulo
Mortes nas chuvas em SP expõem falhas na
prevenção e incúria em áreas de risco
O roteiro repete-se há décadas. Por descaso
ou conveniência política, autoridades fazem vista grossa para a ocupação de
áreas de risco; frágeis construções, mal equilibradas em morros e encostas,
multiplicam-se de forma desordenada; as águas de chuvas contínuas, comuns no
verão brasileiro, infiltram-se no terreno irregular.
Por fim, a tragédia: toneladas de terra vêm
abaixo, arrastando e destruindo o que há pela frente —famílias inteiras, muitas
vezes.
A mais recente catástrofe do tipo ocorreu
no fim de semana no estado de São Paulo. Até esta quarta (2), os 27 municípios
afetados somavam
27 mortos em deslizamentos e alagamentos. Também em razão de enchentes,
havia 1.546 famílias desabrigadas ou desalojadas. Sete pessoas estavam
desaparecidas.
Até certo ponto, a perda de vidas era
previsível e evitável. Com 20 das 27 vítimas, a Grande São Paulo, por exemplo,
dispõe de amplo mapeamento geológico. Sabe-se muito bem onde ficam as regiões
que jamais poderiam ser habitadas e as que até comportam algumas edificações,
desde que obedecendo a restrições e obras de engenharia.
É certo que não faltou "visão de
futuro" por parte de quem construiu, como miseravelmente definiu o
presidente Jair Bolsonaro (PL) ao sobrevoar as áreas atingidas. Faltou, isso
sim, planejamento adequado, responsabilidade e investimento sólido em programas
de moradia por parte dos governantes, em todos os níveis.
Nesse aspecto, causa espécie a notícia de
que o governo João Doria (PSDB) gastou, em 2021, menos
da metade (45%) do dinheiro previsto para obras antienchente. No ano
anterior, o percentual desembolsado foi ainda menor: 18%.
Em que pesem questões administrativas e
entraves burocráticos, como argumentou a gestão, a tarefa, hercúlea e de longo
prazo, vai além de obras de contenção.
Urge uma mudança de orientação: novas
ocupações em terrenos instáveis e à beira de cursos d’água devem ser impedidas
de imediato, antes que proliferem; projetos habitacionais precisam contemplar
prioritariamente moradores das áreas mais perigosas, que, por óbvio, devem ser
removidos.
No curto prazo, um sistema de alerta
meteorológico efetivo, que contemplasse ampla cobertura da imprensa e mensagens
direcionadas por celular, poderia salvar vidas com a retirada prévia das
famílias.
Em um planeta ameaçado pelas mudanças
climáticas, ações corajosas e concretas do poder público podem evitar que mais
cadáveres sejam contabilizados a cada verão —ou talvez já na próxima chuva.
Faz de conta
Folha de S. Paulo
Normas para propaganda partidária são
exemplo de irrealismo na lei eleitoral
Ele é candidatíssimo, todos os eleitores o
sabem, mas a palavra "candidato" não pode ser usada. A pessoa também
não está autorizada a pedir votos, embora seja isso claramente o que ela busca.
Situações de faz de conta, em que todos
fingem, não são inéditas no Brasil. Mas, se há um campo em que elas se fazem
especialmente gritantes, este é o hiper-regulado direito eleitoral.
Regras universais e padronizações não são
um mal, muito pelo contrário. Para comprová-lo basta observar o que se dá nos
pleitos norte-americanos, onde estados e até condados gozam de ampla autonomia
para definir suas próprias normas de registro de eleitores e candidatos,
propaganda, votação, contagem de votos, certificações.
É um sistema desnecessariamente confuso,
que oferece muito espaço para contestações. Não há dúvida de que, nessa
matéria, estamos melhor. Daí, porém, não decorre que não tenhamos problemas.
Um dos pontos a ser aprimorado é a
hipertrofia de regulamentações. Ela fica particularmente visível agora com
a volta
da propaganda partidária no rádio e na TV.
Frise-se que, no
entender desta Folha,
tal instituto, redundante e perdulário, deveria ter permanecido extinto. Como
ele retornou, porém, os partidos se preparam para utilizá-lo —e precisam ser
extremamente cautelosos.
Afinal, se a Justiça entender que alguma
das inserções configura propaganda eleitoral antecipada ou infringe alguma
outra das às vezes exóticas regras, pode punir a legenda com a subtração de
tempo.
O problema é que, no mundo real, a campanha
já começou. Obrigar as siglas a circunlóquios para evitar punições amplia a
insegurança jurídica e confere um ar de irrealismo às ações da Justiça
Eleitoral.
É claro que as datas de início e fim da
propaganda oficial precisam ser definidas, mas daí não segue que as autoridades
devam combater ativamente a realidade política. Gostem ou não os juízes, a
campanha de governantes com direito à reeleição costuma começar no dia em que
eles assumem o posto.
Não é o único exemplo de excesso regulatório.
A legislação eleitoral, complementada por infinitas resoluções de TREs e do
TSE, define até o tamanho máximo do cartaz de propaganda que o cidadão pode
afixar em sua janela. Artistas não podem cantar canções em ato de apoio a seu
candidato.
Campanhas pedem —e às vezes conseguem— a
censura a jornais e pesquisas. Na sua pior versão, como se vê, o ímpeto
paternalista chega a comprometer o direito dos votantes à informação.
Judiciário rechaça ameaça às eleições
O Estado de S. Paulo.
Perante as ameaças de Bolsonaro contra as eleições,
os presidentes do STF e do TSE reafirmaram a disposição de defender a
Constituição e o regime democrático
Ano eleitoral é sempre diferente, tendo
características próprias. No entanto, 2022 não é apenas peculiar. É de fato um
ano único. É a primeira vez, desde a redemocratização do País, que o ano
eleitoral já começa sob o signo da ameaça e da contestação às eleições. O
ineditismo da situação atual ficou especialmente visível na abertura do Ano
Judiciário de 2022. Nas respectivas cerimônias do dia 1.º de fevereiro, o
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, e o presidente
do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís
Roberto Barroso, reafirmaram a disposição de defender, sem concessões, a
Constituição e o Estado Democrático de Direito.
O presidente do STF começou seu
pronunciamento dizendo estar “imbuído de profundo senso de cautela”. A atitude
é sintomática dos tempos atuais. O ano de 2022 exige estar em alerta. Não é
medo, tampouco pessimismo: é apenas a reação natural – e responsável – perante
as ameaças contra o sistema eleitoral proferidas pelo presidente Jair Bolsonaro
e seus camisas pardas. Há sérios motivos para que, neste ano, sociedade e
Judiciário estejam em alerta.
O ministro Luiz Fux assegurou que, em 2022,
a pauta de julgamentos da Corte “continuará dedicada às agendas da estabilidade
democrática e da preservação das instituições políticas do País”. Além de ser o
primeiro tema mencionado entre os numerosíssimos assuntos que estão no Supremo,
chama a atenção que, depois de três décadas da Constituição, seja necessário
falar, como prioridade nacional, em “estabilidade democrática” e em
“preservação das instituições políticas”. Há sintoma mais evidente de que os
tempos atuais são realmente muito esquisitos?
O País deveria estar construindo soluções
para melhorar as condições de vida e para avançar no desenvolvimento social e
econômico da população. Mas não. Com seus ataques e ameaças às instituições, o
bolsonarismo traz à tona a mais cabal agenda do retrocesso. Em pleno 2022, o
STF é instado a cuidar da “estabilidade democrática”.
O retrocesso bolsonarista atinge também
outras áreas. Não basta ao Supremo recordar os princípios básicos do Estado
Democrático de Direito, que são evidentes e deveriam ser rigorosamente
inegociáveis. A atual linha de batalha é ainda mais recuada. Em seu discurso, o
ministro Luiz Fux defendeu o uso das “bússolas da razão e da ciência”. Eis o
resultado da degradação intelectual e cívica provocada pelo bolsonarismo.
Agora, o STF tem de homenagear e fazer valer os princípios da epistemologia e
da lógica, uma vez que Jair Bolsonaro e seus seguidores cultivam a ignorância e
praticam o negacionismo na vida pública.
Por sua vez, na cerimônia de abertura do
Ano Judiciário no TSE, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a democracia, o
sistema eletrônico de votação e o jornalismo. “No mundo da pós-verdade, dos
fatos alternativos, nunca foi tão importante o trabalho da imprensa”, disse.
Ao mencionar as várias tentativas de
desqualificar o processo eleitoral brasileiro, o presidente do TSE lembrou a
absurda situação ocorrida no ano passado, quando o próprio presidente Bolsonaro
divulgou em suas redes sociais informações sigilosas de uma investigação.
Segundo Luís Roberto Barroso, eram “dados que auxiliam milícias digitais e
hackers de todo o mundo que queiram invadir nossos equipamentos”.
A conclusão faz-se óbvia. O ano de 2022
exige alerta máximo. O atual inquilino do Palácio do Planalto não apenas deu
repetidos sinais de desapreço pela democracia e pela lei, como já afirmou que,
dependendo do resultado das eleições de outubro, poderá não aceitá-lo, tal como
fez Donald Trump nos Estados Unidos. A ameaça de Jair Bolsonaro foi
suficientemente clara.
Hoje, a rigor, não existe conflito entre
Poderes, como se o STF também estivesse provocando tensões ou atritos. O que se
tem é Jair Bolsonaro na Presidência da República, atuando como sempre atuou,
desde os tempos de mau militar. É a recalcitrância nesse histórico, tão pouco
exemplar, que suscita cuidado e vigilância, como bem entendeu o Judiciário.
Felizmente.
O desafio da reindustrialização
O Estado de S. Paulo.
Um novo presidente poderá interromper o
retrocesso e retomar a construção de um moderno e forte setor industrial
Reconstruir a indústria, retomando o
caminho da modernização, será uma das grandes tarefas do próximo governo, se o
novo presidente for capaz de entender as potencialidades do Brasil, de seguir
uma estratégia e de repensar a inserção internacional do País. Não bastará
compensar as perdas ocasionadas pela pandemia. Será preciso frear o retrocesso histórico
iniciado no período petista e acelerado a partir de 2019. Depois do tombo de
2020, a produção industrial reagiu e cresceu 3,9% em 2021, mas ainda ficou 0,9%
abaixo do patamar de fevereiro do ano anterior, quando apenas se percebiam os
primeiros sinais do surto de covid-19. Mas o desafio real é muito mais complexo
do que retornar ao nível pré-pandemia. No fim do ano, o setor industrial ainda
produziu 17,7% menos que em maio de 2011, o pico da série histórica tomada como
referência pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa
diferença é muito mais que um problema conjuntural.
Sem inovação, sem eficácia e sem poder de
competição, a maior parte da indústria brasileira perdeu espaço no mercado
internacional na última década. Alguns segmentos ainda tiveram sucesso e
algumas empresas brilharam competindo no exterior, mas foram exceções. Houve
perdas até nos mercados sul-americanos, normalmente os mais acessíveis para os
produtos brasileiros. Dentro e fora do País, o quadro geral do setor
manufatureiro foi de retrocesso.
A produção da indústria geral diminuiu em
seis dos dez anos de 2012 a 2021, de acordo com o IBGE. Variações negativas só
haviam ocorrido em um dos dez anos encerrados em 2011. Foi uma queda de 7,1% em
2009, na maior crise financeira internacional deste século. Outras diferenças
importantes marcaram os dois períodos. A economia foi mais próspera no
primeiro, a inflação foi mais moderada, a política monetária foi mais severa e
o controle das contas públicas foi mais efetivo, embora algum afrouxamento
fosse visível já em 2010.
O enfraquecimento da indústria, bem visível
a partir de 2012, resultou de equívocos políticos bem conhecidos, como a
estratégia de favorecimento dos chamados “campeões nacionais”, e da erosão dos
fundamentos econômicos. As contas públicas se desmontaram, a política monetária
se tornou ineficaz, a inflação disparou, o investimento produtivo fraquejou e o
País afundou na recessão, enquanto a presidente Dilma Rousseff era submetida a
um processo de impeachment, acusada de violação grave de normas fiscais.
A economia saiu da recessão, mas sua
expansão nunca chegou a 2% nos primeiros três anos de retomada. A maior parte
da indústria continuou sem vigor, e a administração instalada em 2019 nunca
pareceu incomodada por esse fato. Mais que isso, essa administração nunca
apresentou planos e metas de crescimento econômico nem programas de
modernização e de ganhos de competitividade.
O Ministério da Educação logo se ajustou
aos padrões intelectuais e políticos do presidente Jair Bolsonaro. Também se
ajustou o Ministério de Ciência e Tecnologia, humilhado e desmoralizado por
ataques presidenciais ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),
produtor de imagens de satélite comprovadoras da devastação ambiental favorecida
pela nova administração federal.
Sem compromisso com a educação, com a
ciência, com a tecnologia, com a produtividade e com as condições gerais da
indústria, o poder central tentou favorecer o empresariado com o barateamento
da mão de obra. Esse barateamento ocorreu, de fato, mas como consequência da
estagnação econômica, do desemprego e da precarização das condições de
trabalho, façanhas do desgoverno instalado há pouco mais de três anos.
Iniciado há mais de um século, o esforço de
industrialização acentuou-se a partir dos anos 1940 e prolongou-se por muitas
décadas. Foi mantido por governos autoritários e democráticos, ideologicamente
distintos, mas igualmente comprometidos, cada um à sua maneira, com ideais de
modernização e de desenvolvimento. Em 2023 alguém poderá, no Palácio do
Planalto, retomar essa agenda.
FMI suaviza acordo com Argentina e divide
governo
Valor Econômico
Nada há sobre metas para a inflação
Depois de se meter em uma enrascada ao
fazer o maior acordo de stand by de sua história com a Argentina, no qual
desembolsou rapidamente US$ 44,5 bilhões sem que praticamente nenhuma meta
fosse cumprida, o Fundo Monetário Internacional repete a aposta e,
aparentemente, com condições mais suaves do que as do programa fracassado.
O presidente Alberto Fernández e seu
ministro da Economia, Martín Guzmán, disseram que das negociações com o FMI
resultaram objetivos realistas que não desviam o governo de sua política
econômica. O filho de Cristina Kirchner, Máximo Kirchner, líder da Frente de
Todos na Câmara dos Deputados, renunciou ontem ao posto, dizendo o contrário:
não concorda com o acordo e não quer ter nada a ver com os resultados de sua
execução.
O governo argentino é bifronte. Fernández
governa à sombra da vice-presidente Cristina Kirchner, que controla as
correntes kirchneristas radicais, como o La Cámpora, de Máximo. Quando os
peronistas perderam as primárias de outubro, ela ordenou que ministros aliados
se retirassem do gabinete e exigiu reforma no poder, no que foi acatada pelo
presidente, que perdeu até seu chefe de gabinete, mas manteve Guzmán na
Economia.
Não se sabe o que Cristina pensa da ação do
filho, mas sabe-se que ela não concorda com restrições a gastos ou a subsídios
que o acordo trará. A saída do líder parlamentar do governo é a primeira salva
de tiros de uma nova refrega entre os moderados de Alberto Fernández e os
kirchneristas. Marca também o distanciamento prévio da vice-presidente de
eventuais fracassos do programa.
Estranhamente, o pré-acordo divulgado, ao
qual faltam detalhes importantes, é bastante suave em relação ao que se poderia
esperar do Fundo. Uma avaliação feita em dezembro do fracasso do stand by
anterior apontou o gradualismo da execução das metas e a condescendência com os
desejos do governo anterior como alguns dos motivos do naufrágio do plano. A
receita agora, ao que parece, é a mesma. O propósito do Fundo é evitar novo
default da Argentina, que não tem dinheiro para pagar os empréstimos da
instituição que começaram a vencer.
O anúncio do entendimento com o Fundo pelo
governo conteve muito mais informações sobre o que a Argentina não será
obrigada a fazer do que sobre os rumos gerais a tomar. Alberto Fernández e
Guzmán afirmaram que ele não contem restrições que impeçam o crescimento, que
não haverá queda do gasto real, que ele permite aumento dos investimentos
públicos e não estabelece reformas estruturais a perseguir.
As metas divulgadas não são definitivas
ainda. O déficit primário deverá cair para 2,5% do PIB este ano, 1,9% em 2023 e
0,9% em 2024. Até outubro, o déficit primário foi de 3,1% (US$ 12,65 bilhões),
mas o orçamento enviado de 2022 estimava déficit de 4% em 2021 e de 3,3% em
2022. Não é um esforço gigantesco, mas também não é trivial em um país onde o
Banco Central financia o déficit do Tesouro. A Argentina se comprometeu a
reduzir esse financiamento de 3,7% do PIB a 1% este ano, a 0,6% em 2023 e
cessá-lo em 2024. Ou seja, já em 2022 o BC cobrirá menos da metade do déficit
primário almejado, de 2,5% do PIB.
Não há um caminho claro de como se fará
isso. O FMI indicou um rumo de “consolidação fiscal”, no qual a “redução dos
subsídios de energia será fundamental para melhorar a composição do gasto
público”. Com o congelamento, esse subsídio subiu para 2,4% do PIB (cerca de
US$ 10 bilhões), quase do tamanho do déficit primário total. Por aí há ganhos
econômicos possíveis, mas encrenca política certa com os kirchneristas. Pelo
acordo a Argentina terá de praticar taxas de juros positivas (hoje em torno de
40%, ante uma inflação de pouco mais de 50%), o que implica aperto
considerável.
Nada há sobre metas para a inflação. O FMI
deu aval ao acordo de preços como um dos instrumentos para baixá-la, mas ele é
inócuo. O acordo anterior primeiro indicou o sistema de metas, que foi
abandonado por outro de metas quantitativas monetárias. Não se sabe o que virá
agora, ou se virá algo.
Nem todo o pragmatismo do FMI, porém, pode
ser suficiente para conter a oposição de uma parte dos peronistas a qualquer
acordo com a instituição. Ele terá que ser ratificado pelo Congresso, onde o
governo perdeu a maioria - e o líder da ex-maioria governista, contrário a ele,
renunciou. É um péssimo sinal sobre as chances de um novo programa vingar ou
sobre a disposição de uma parte importante do governo de se esforçar para isso.
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