EDITORIAIS
‘SUS da Educação’
traz nova esperança para resgatar ensino
O Globo
Pode ter efeito
revigorante o projeto aprovado por unanimidade no Senado que institui o Sistema
Nacional de Educação (SNE), apelidado “SUS da Educação”. A proposta, que ainda seguirá
para a Câmara, regulamenta a colaboração entre União, estados e municípios na
gestão do ensino. A exemplo da Saúde, o SNE terá uma comissão tripartite, com
representantes das três esferas do Executivo, que decidirá sobre avaliações,
parâmetros de qualidade, compras, material didático, carreira dos professores
etc.
À União, caberá
coordenar, oferecer apoio técnico e financeiro a estados e municípios, além de
gerir o sistema nacional de avaliações. A ideia é, sem desrespeitar a autonomia
dos demais entes, permitir que as principais políticas educacionais do país
possam ser discutidas em conjunto pelas três esferas da administração, como
ocorre no SUS.
A pandemia de Covid-19 expôs bons e maus exemplos de ação coordenada. Não há dúvida de que o SUS, com todas as suas limitações, inclusive orçamentárias, respondeu de modo competente ao desafio imposto pela mais letal pandemia dos últimos cem anos. O maior obstáculo não foi a centralização, mas a gestão errática do Ministério da Saúde, que abriu mão de seu papel de coordenação da crise sanitária, em muitos momentos chegando a boicotar o trabalho de governadores e prefeitos. Na vacinação, a partir do momento em que houve imunizantes disponíveis, o esquema funcionou. O governo federal comprou as vacinas, os estados distribuíram os lotes aos municípios, e as prefeituras aplicaram as doses.
A educação, sem
integração, viveu um desastre absoluto. O Ministério da Educação se manteve
alheio à pandemia. Estados e municípios não tinham a menor coordenação, nem
mesmo dentro de uma mesma unidade da Federação. O ensino remoto foi um fiasco,
já que nem todos os alunos conseguiam acompanhar as aulas on-line. Quem não
tinha internet em casa ficou esquecido. A inépcia na gestão da crise só fez
aumentar as já gritantes desigualdades no ensino brasileiro.
Mesmo quando a
pandemia estiver esquecida, as sequelas na educação permanecerão. Foi
escandaloso o tempo que as escolas ficaram fechadas, enquanto quase tudo estava
aberto, numa inadmissível inversão de prioridades. Os sinais da ruína estão por
toda parte. Não faltam diagnósticos para medir o tamanho da hecatombe. No
estado de São Paulo, alunos do ensino médio tiveram em 2021 o pior desempenho
da História, de acordo com o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar
(Saresp), divulgado no início do mês. Estudantes do último ano apresentaram
proficiência em matemática de um aluno do sétimo ano do ensino fundamental.
É nesse contexto
de reconstrução que ganha importância o projeto do Sistema Nacional de
Educação, que deveria estar implementado desde 2016. Entre as ações previstas,
estão a formulação de um plano emergencial para enfrentar os prejuízos da
pandemia, a erradicação do analfabetismo e a melhoria da infraestrutura das
escolas públicas. Todo e qualquer esforço será bem-vindo para recuperar as
perdas e avançar com novos conteúdos. Obviamente, quanto mais integração houver
entre governo federal, estados e municípios na gestão da Educação, melhor para
todos. Sempre é saudável dialogar, verbo tão difícil de conjugar na administração
pública brasileira.
Governo vai na
contramão ao reduzir verbas para proteção às mulheres
O Globo
O Brasil vive uma
epidemia de violência contra as mulheres. Tão cruel quanto os crimes em si, é a
constatação de que eles não parecem perto de arrefecer. Os números, que
deveriam envergonhar qualquer governo, se repetem com regularidade
perturbadora. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano passado
uma mulher foi estuprada a cada dez minutos no país. Um caso de feminicídio foi
registrado a cada sete horas. Não é possível achar isso normal.
Um levantamento
da Rede de Observatórios da Segurança divulgado na semana passada revelou
aumento de crimes (assassinatos, estupros, agressões) em cinco estados
monitorados pelo grupo em 2021. Em São Paulo, foi detectado um salto de 27% nas
ocorrências em relação à pesquisa de 2020. No Rio, o crescimento foi de 18%. No
Ceará, foi registrado o maior número (11) de assassinatos de mulheres trans.
Como apontam outras estatísticas, feminicídios e agressões foram cometidos em
sua maioria por companheiros ou ex-companheiros das vítimas que, em geral,
alegam motivos torpes (brigas, fim de relacionamentos, ciúmes).
Indo na direção
contrária ao que revelam os números, o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos reduziu as verbas para combate à violência. Como mostrou
reportagem do GLOBO, com base em levantamento do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), no Orçamento de 2022 foram alocados R$ 43,2 milhões,
menos de um terço do que foi destinado em 2020 (R$ 132,5 milhões). Além dos
poucos recursos, a pasta não executa o Orçamento previsto. Em 2019 e 2020, usou
apenas metade do valor autorizado para políticas de enfrentamento à violência
contra a mulher.
Não é por falta
de legislação que esse tipo de violência prospera. Deve-se reconhecer que, nas
últimas décadas, o país tem criado leis rigorosas para punir agressores e
desestimular novos crimes. Não faltam também bons exemplos de políticas
públicas de proteção às mulheres, como as patrulhas que diariamente visitam
vítimas sob ameaça. Ou ainda os mecanismos criados para facilitar denúncias e
responder a casos de agressões, como treinar policiais para decifrar pedidos
inusitados de socorro (uma mulher que liga para a polícia e pede uma pizza pode
estar em perigo).
Infelizmente tais
medidas não têm sido suficientes, como atesta a persistência dos números. Em
alguns casos, nem as garantias de proteção determinadas pela Justiça têm
adiantado. A insegurança está por toda parte. No mês passado, uma mulher foi
morta dentro de um presídio, em São Paulo, quando visitava o companheiro. Ele
alegou que a matou porque ela estava se prostituindo.
O grande desafio
não é apenas punir os responsáveis por esses crimes — em geral, não é difícil
localizá-los, já que na maioria das vezes fazem parte do círculo de
relacionamento das vítimas —, mas impedir que eles aconteçam. Para isso é
preciso aumentar os investimentos em políticas públicas de enfrentamento da
violência. O oposto do que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos vem fazendo.
Pasta da
ignorância
Folha de S. Paulo
Declarações
preconceituosas do ministro são só parte dos danos com aparelhamento
Já denunciado
pela Procuradoria-Geral da República por homofobia, o ministro da Educação,
Milton Ribeiro, reincidiu em declarações preconceituosas —e, sobretudo,
reveladoras de que a pasta está mais a serviço de uma agenda ideológica do que
empenhada em buscar diagnósticos e formular políticas para o setor.
Em um evento
sobre merenda escolar, Ribeiro preferiu ganhar destaque com paranoia militante.
"Não vamos permitir que a educação brasileira vá por um caminho de tentar
ensinar coisa errada às crianças", disse. "Não tem esse negócio de
ensinar ‘você nasceu
homem, pode ser mulher’."
Trata-se, mais
uma vez, da ofensiva contra uma suposta "ideologia de gênero", que
mobiliza em especial o bolsonarismo de vertente religiosa —o ministro é pastor.
Entre tantas
mazelas conhecidas na educação brasileira, ataca-se um fantasma. Do MEC não se
conhecem estudos que justifiquem tamanha preocupação com a abordagem precoce ou
indevida de questões de gênero e sexo nas escolas. Intencionalmente ou não,
semeia-se um temor obscurantista em torno do mero ensino do tema.
Na academia, o
entendimento predominante é que esse aprendizado não induz ao sexo precoce e
muito menos promove apologia da homossexualidade. Colabora, isso sim, para o
combate à gravidez na adolescência, ao abuso infantil e à transmissão de
doenças, pautas de relevância no país.
De acordo com
dados oficiais, quase meio milhão de nascidos vivos no Brasil em 2019 eram
descendentes de adolescentes e jovens de até 20 anos. Em cerca de 20 mil casos,
registrou-se a idade materna de 14 anos ou menos.
A Unesco tem
proposta de educação sexual estruturada em níveis etários. Dos 5 aos 8, por
exemplo, um conceito-chave a ser apresentado é que pessoas adultas não devem
tocar as partes íntimas do corpo de crianças, a não ser para cuidados de
higiene e saúde.
No Brasil, a
disciplina é considerada tema transversal no ensino desde a definição dos
chamados parâmetros curriculares nacionais há 25 anos. Ficou de fora, no
entanto, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017, que traz
os objetivos de aprendizagem de cada ano escolar nas redes de ensino.
Acabou incluída
apenas no ensino de ciências ao final do período fundamental, como parte do
aprendizado sobre vida e evolução.
Não há chance de
um debate bem informado a respeito no atual governo —e os danos provocados pelo
aparelhamento ideológico do MEC, infelizmente, nem de longe se limitam à
educação sexual.
Ajuste na
globalização
Folha de S. Paulo
Guerra induz
mudanças nos mercados; para o Brasil, pode ser uma oportunidade
A guerra da
Ucrânia não modifica apenas os termos do debate sobre o ritmo e o custo da
transição para energias mais limpas. Também recoloca no alto das preocupações
nacionais o problema da segurança política do abastecimento de combustíveis,
alimentos e minérios e metais estratégicos.
As sanções
financeiras à Rússia, que teve parte de suas reservas em moeda forte
confiscadas por EUA e aliados, criam mais dificuldades para a globalização. A
integração é problemática desde a crise de 2008; com a epidemia, vieram novos
óbices, vide a disputa por materiais médicos e o estrangulamento das cadeias de
abastecimento.
Tais questões têm
importância crucial para o Brasil. O país pode se oferecer como fornecedor
confiável, desde que comprometido com a estabilidade democrática, a
responsabilidade ambiental, a abertura econômica, o respeito a contratos, a
regulação adequada e a proteção de investimentos. Como se vê, há muito a
avançar.
O destino da
crise ainda é nebuloso, mas decisões já estão sendo tomadas; a geopolítica logo
exigirá outras. Até o final do ano, a União Europeia pretende reduzir em 64%
suas importações de gás russo, que representaram até 40% do consumo da região
em anos recentes. Até 2027, quer redução de 100%.
A transição verde
impunha custos iniciais. Com a guerra, é possível que tenha de ser desacelerada
ou venha a custar mais. A Europa precisará construir infraestrutura para
receber gás natural líquido no lugar de gás encanado.
Painéis solares,
turbinas eólicas e baterias demandam combustíveis fósseis e metais. Ao trocar
de fornecedores, a União Europeia pressionará preços mundiais e, assim,
dificultará o plano da China de usar menos carvão e petróleo.
A crise levou o
presidente dos EUA, Joe Biden, a pressionar petroleiras americanas pelo aumento
da exploração —os EUA ora produzem menos petróleo do que em 2019. Na política
do país, ressurgiram queixas contra o plano de energia mais limpa. Por fim,
Biden procura até reintegrar Venezuela e Irã ao mercado internacional.
As decisões sobre
abastecimento de materiais essenciais tendem a ser mais marcadas pela política.
Países com recursos disponíveis e que possam gozar de confiança, nas relações
internacionais e na economia, talvez possam se aproveitar dessa nova realidade.
Essa é uma questão central para o Brasil, muito além da discussão contaminada por demagogia sobre o preço dos combustíveis.
Educação,
uma tarefa de todos
O Estado de S. Paulo.
A
aprovação pelo Senado do PLC 235/2019, que cria o SNE, lembra uma vez mais a
necessidade da colaboração entre os entes federativos na área educacional
Cooperação
federativa não é opção, mas mandamento constitucional.
Por
unanimidade, o Senado aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLC) 235/2019, que
institui o Sistema Nacional de Educação (SNE), cujo objetivo é alinhar e
harmonizar políticas, programas e ações educativas dos três níveis federativos,
dentro de um regime de “articulação colaborativa”. Trata-se de um passo
importante para a melhoria da educação. Sem prescindir da autonomia própria da
Federação, é fundamental assegurar a efetiva coordenação de esforços e
procedimentos entre União, Estados e municípios.
O
PLC 235/2019 não modifica o pacto federativo, tampouco estabelece uma nova
subordinação entre as três esferas. O projeto regulamenta a previsão
constitucional de que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino” (art. 211). Essa
cooperação também estava prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
9.394/1996).
Mais
do que criar estruturas burocráticas, o objetivo do PLC 235/2019 é prover
efetividade à missão educativa do poder público. As metas do SNE são:
universalizar o acesso à educação básica de qualidade, erradicar o
analfabetismo, fortalecer mecanismos redistributivos, prover assistência
técnica, pedagógica e financeira, garantir adequada infraestrutura física,
tecnológica e de pessoal para todas as escolas públicas e assegurar a
participação democrática nos processos de planejamento, coordenação, gestão e
avaliação.
Segundo
o relator do PLC 235/2019, senador Dário Berger (MDB-SC), a integração
pretendida com o SNE é similar à que se conseguiu com o Sistema Único de Saúde
(SUS), na área da saúde. “O SNE é uma oportunidade de avançar e superar os
limites da estagnação e da inoperância no campo educacional, por meio do
diálogo e da construção conjunta de horizontes”, disse o senador.
O
texto agora aprovado pelo Senado é resultado de um longo debate entre
parlamentares, educadores e organizações da sociedade civil. Para a entidade
Todos Pela Educação, o PLC 235/2019 é, juntamente com o Novo Fundeb (aprovado
em 2020), um dos principais avanços da legislatura atual, ao proporcionar
ferramentas para que seja garantido a todas as crianças e jovens o direito à
educação pública de qualidade. “O SNE já se mostrava necessário em tempos
normais (...) e tornou-se ainda mais imprescindível diante dos efeitos da
pandemia. Em um país tão diverso, complexo e desigual como o Brasil, não há
caminho para assegurar a efetivação do direito à educação para todos que não
passe por uma descentralização orquestrada e pactuada, com cooperação, boa
governança e gestão”, avaliou a entidade.
Obviamente,
o PLC 235/2019 não contém nenhuma solução mágica para resolver os problemas e
entraves da educação brasileira. Ele oferece um caminho de trabalho e
coordenação, que precisará ser devidamente trilhado. O SNE será eficaz na
medida em que se torne, de fato, uma política de governança, com plena vigência
de suas diretrizes, responsabilidades, atribuições e instâncias de pactuação.
Essa
perspectiva de cooperação, que talvez possa parecer pouco concreta, é
precisamente o caminho mais efetivo de que se dispõe para a melhoria da oferta
educativa. É trabalho de longo alcance, que exige seriedade e compromisso com o
interesse público, muito além de questões eleitorais. De outra forma, seria
impossível uma efetiva colaboração entre os três níveis da Federação. Daí se
constata, por exemplo, que não é por acaso a incompetência do governo Bolsonaro
na tarefa de coordenação – tanto na saúde como na educação –, própria da esfera
federal.
Com
um atraso de três décadas, o Congresso regulamenta agora o regime de
colaboração que, tal como prevê a Constituição de 1988, deve existir entre
União, Estados e municípios na área da educação. Que a Câmara trate o PLC
235/2019 com a devida prioridade. É tema fundamental para o País, especialmente
depois da experiência de Jair Bolsonaro na Presidência da República. A
cooperação federativa não é opcional, mas mandamento constitucional.
As
gambiarras do Orçamento
O Estado de S. Paulo.
Congresso
criou tantos ‘puxadinhos’ sobre destinação de verbas que nem a Lei Eleitoral é
capaz de impedir que recursos ajudem gestores aliados a turbinar candidaturas
O
governo maquina mais uma manobra para irrigar redutos de parlamentares aliados
na campanha eleitoral. Por razões óbvias, a lei eleitoral veda a liberação de
recursos de emendas ao Orçamento nos três meses que antecedem à votação. Para
driblá-la, o governo se vale de uma interpretação tendenciosa para permitir que
as chamadas “transferências especiais” sejam repassadas antecipadamente aos
municípios, mas sejam executadas no período eleitoral. Vulgarmente conhecida
como “cheque em branco”, essa modalidade de emenda pode ser repassada sem que o
parlamentar defina o uso da verba, que pode ser gasta discricionariamente pelos
governos regionais. Essa é apenas a fase mais recente do processo de degradação
crônica do Orçamento iniciado no governo Dilma Rousseff, que se tornou agudo no
governo Bolsonaro.
Tal
como o voto é a raiz do processo democrático, a alocação dos recursos dos
contribuintes por meio de um Orçamento bem gerido e fiscalizado dá os seus
principais frutos. A Constituição prevê que essa alocação seja planejada pelo
Executivo e autorizada e fiscalizada pelo Legislativo.
As
emendas parlamentares tinham originariamente um papel residual de, ante
eventuais equívocos de projeção, anular despesas e corrigir erros e omissões.
No presidencialismo de coalizão, elas foram transformadas em um instrumento
adicional de governabilidade para recompensar a fidelidade ao governo.
Em
sua prepotência característica, tanto Dilma Rousseff quanto Jair Bolsonaro se
recusaram a orquestrar coalizões coerentes com as representações conferidas
pelos eleitores às bancadas no Congresso. Quando sua inépcia começou a
desgastar sua credibilidade, passaram a lotear as prerrogativas orçamentárias
para sobreviver no Planalto.
Em
2015 fixou-se uma cota para emendas individuais e em 2019 para as emendas das
bancadas estaduais. No mesmo ano foram aprovados os “cheques em branco”. Em
2020, foi ressuscitada a “emenda de relator”, conferindo imensos poderes
discricionários para o relator distribuir as dotações e alterálas ao longo da
execução.
Assim,
enquanto o Executivo abria cada vez mais mão do planejamento e execução do
Orçamento, o Congresso reduzia cada vez mais a sua vinculação a critérios
técnicos, equitativos e transparentes.
Os
argumentos supostamente republicanos são de que as emendas permitem
descentralizar recursos federais enviando-os aos municípios – “Mais Brasil,
menos Brasília”, conforme prometeu o presidente Jair Bolsonaro. Mas o Brasil já
é uma Federação em que os recursos são bastante descentralizados, com
competências bem definidas em relação aos gastos.
Na
prática, a atomização dos recursos federais submete os critérios técnicos aos
políticos. Investimentos típicos da União, de menor apelo eleitoral, mas
cruciais para a produtividade, como em infraestrutura ou em serviços
integrados, como o SUS, são preteridos em favor de alocações arbitrárias.
Não
que esses recursos sejam necessariamente mal empregados, mas não há como
garantir que não o sejam. Tampouco há como garantir uma distribuição
equitativa. A discricionariedade do relator garante que as emendas sejam
distribuídas aos apoiadores do governo em prejuízo dos outros congressistas.
Esse “orçamento paralelo” está hoje na casa dos R$ 16 bilhões, o equivalente a
80% das outras emendas individuais e coletivas.
Se
esse procedimento opaco não pode ser classificado como corrupção, cria
condições para ela. A Polícia Federal investiga a existência de um “feirão de
emendas”. Suspeita-se que há parlamentares que cobram entre 10% e 20% sobre o
valor das emendas aos municípios.
A
proliferação de “puxadinhos” orçamentários atenta contra os princípios da
impessoalidade, moralidade e publicidade, e distorce as políticas públicas
federais, por servir a interesses paroquiais dos parlamentares antes que ao
interesse coletivo. O resultado são gastos pulverizados, de baixa qualidade,
enviesados por propósitos eleitoreiros e que, fatalmente, são um convite à
corrupção. Em outras palavras: “Mais Brasília, menos Brasil”.
Mineração
de terra indígena exige discussão técnica
Valor
Econômico
Nada
justifica a pressa do governo
A
abertura das terras indígenas à mineração, e outras coisas mais, é uma obsessão
do governo Bolsonaro, que se alinha com toda sua agenda de destruição
ambiental. O presidente da Câmara, Arthur Lira, resolveu agradar mais uma vez
ao governo, ao dar urgência a um projeto sobre o tema que está lá há muito
tempo. A discussão do tema é complexa e precisa ser ampla e profunda - tudo
aquilo que a atual gestão abomina.
A
ideia de impulsionar a mineração em terras indígenas é uma fixação antiga do
presidente Jair Bolsonaro. Em 2019, por exemplo, ele chegou a usar seu discurso
de estreia na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) para
defendê-la. “O Brasil agora tem um presidente que se preocupa com aqueles que
lá estavam antes da chegada dos portugueses. O índio não quer ser latifundiário
pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É
o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe
grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre
outros”, disse o mandatário brasileiro naquela ocasião.
Poucos
meses depois, já no início de 2020, o Palácio do Planalto enviou ao Congresso
um projeto de lei tratando do assunto. No entanto, a proposição nunca chegou a
ser debatida pela Câmara dos Deputados. Sempre esteve longe de constar da lista
de prioridades da pauta da Casa. Mas, de um dia para o outro, a situação mudou.
Com
o argumento de que a guerra entre Rússia e Ucrânia afetará a importação de
potássio, insumo para os fertilizantes utilizados pela agricultura, o
presidente passou a defender a rápida votação da proposta. A solução desse
potencial gargalo, argumenta desde então quase todos os dias, estaria justamente
na exploração do minério existente em terras indígenas.
É
um argumento baseado na ignorância abissal do presidente sobre o assunto.
Especialistas asseguram que grande parte de tal minério está fora dessas
terras. A preocupação do agronegócio sobre o assunto não será resolvida a curto
prazo e muito menos por esse caminho. A bancada ruralista, muito ativa sobre
outros aspectos da agenda anti-ambiental, nunca foi estridente em relação a uma
fraqueza óbvia de seu próprio negócio, a garantia de suprimento básico de
fertilizantes - o que diz muito sobre seus interesses. O novo Plano Nacional de
Fertilizantes (PNF) estava à disposição de Bolsonaro desde o fim de 2021, mas
só foi lançado na sexta-feira - e é pífio.
A
regulamentação da exploração mineral de terras indígenas merece ser discutida
sem paixões. O projeto do governo, porém, é um acinte. Seu programa recente de
estímulo ao garimpo artesanal, ou à devastação em pedaços da Amazônia,
acrescido da exploração de hidrelétricas e de todo tipo de cultura predatória
na região, merece ser rejeitado em bloco, e substituído por outro, que não
contemple apenas interesses escusos de empresários do submundo do contrabando e
do crime organizado.
O
projeto, ao tratar da exploração de hidrocarbonetos, do aproveitamento de recursos
hídricos para geração de energia elétrica, da instalação e operação de sistemas
de transmissão e dutos recebeu a alcunha de “x-tudo”. Mas os protestos de
ambientalistas, indigenistas e celebridades não foram suficientes para impedir
seu avanço na Câmara. O plenário aprovou requerimento de urgência por 279 votos
a 180, com três abstenções, e amplo apoio da base do governo Bolsonaro. Com
isso, a proposta pode ser votada em plenário a qualquer momento,
independentemente de passar por comissões.
As
siglas governistas fizeram um acordo para que um grupo de trabalho seja criado,
com 13 deputados da base e 7 da oposição, e faça algumas audiências públicas. A
ideia é que o texto a ser burilado pelo colegiado esteja pronto para ser votado
no plenário em 30 dias.
É
muito pouco. E quando chegar ao plenário, novo atropelo pode ocorrer. A Câmara
está trabalhando em regime semipresencial e, de acordo com as regras, os
deputados que não estiverem in loco no plenário estarão impedidos de discursar.
A margem de obstrução da oposição tende a ficar ainda mais reduzida.
Nada justifica a pressa do governo. Ainda que os deputados acelerem de forma indevida esse debate, caberá ao Senado garantir que ele ocorra de forma serena e baseada na melhor técnica e na aferição dos interesses sociais. Todos os lados devem ser contemplados na discussão.
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