O Globo
O alistamento espontâneo de civis de diversas
nacionalidades ao lado dos ucranianos desmonta uma certeza do filósofo francês
(de direita) Luc Ferry: que nenhuma causa contemporânea mereceria a imolação da
vida.
Estariam
longe e abandonadas as paixões políticas, as empolgações estéticas (Maiakóvski
saía no braço com seus interlocutores) e as identidades nacionais. Furores e
arrebatamentos responsáveis por toneladas de mortes, principalmente no século
passado.
Em
sua conta não entram os fundamentalistas islâmicos, os tais homens-bomba — no
caso, não seria sequer uma causa, mas um vácuo civilizacional.
O
engajamento da população civil ucraniana, de outro lado, escande a
identificação com um revelador instinto de nacionalidade, certamente para a
desagradável surpresa de Putin, e em oposição ao conceito niilista e desossado
de Luc Ferry, ex-ministro da Educação da França.
Diante de Putin, parte da esquerda retomou o coro com a extrema direita. Bozo e o PCO se encontram do mesmo lado da trincheira — ele, porque jura ser seguidor da crença de Silas Malafaia; o grupelho, por lutar contra a vida alheia.
Não
assusta outro naco da esquerda perfilar ao lado de Putin, portanto corroborando
com as bombas sobre maternidades e asilos ucranianos, apenas para estar contra
os Estados Unidos. É nesse instante que a obra-prima de George Orwell,
“Homenagem à Catalunha”, mereceria entrar na cabeça dos putinescos de
oportunidade.
Ao
passar por Paris, e jantar com Henry Miller, glorioso autor da trilogia
“Sexus”, “Nexus” e “Plexus”, Orwell contou-lhe que se juntaria às Brigadas
Internacionais na luta contra Franco. Pacifista, Miller deu-lhe seu casaco. E
disse: “Infelizmente não o protegerá das balas, apenas do frio”.
Como
Putin agora na Ucrânia, os golpistas do general Franco não imaginavam ser
ferozmente enfrentados por setores organizados da sociedade espanhola
(sindicatos dos trabalhadores, principalmente) ou ainda por uma força
internacional, num elenco estelar de intelectuais, como George Orwell, Ernest
Hemingway, André Malraux e Arthur Koestler, entre muitos outros.
Talvez
fosse ilusão.
Havia
então uma crença. E um ingênuo romantismo.
As
Brigadas Internacionais atraíram militantes de diversas nacionalidades, quase
todos inexperientes em combates, mas apaixonados pela luta contra a tirania
representada pelo General Franco e seu golpe num governo democraticamente
eleito, levemente esquerdista, porém expressão do voto. A Guerra Civil
Espanhola entraria para a História como sinônimo de traição às causas e às
ideias.
Em
1936, à primeira vista, parecia não haver dúvida entre os opositores
antifascistas. Franco deveria ser batido; a República, defendida; e não se
negociava dar a vida em troca da liberdade.
Mesmo
na superfície já ocorriam as clássicas divisões da esquerda. Comunistas não se
bicavam com os trotskistas e os anarquistas, que desconfiavam de todos.
Pareciam apenas divergências políticas, visões opostas na condução à vitória. O
fascismo seria o único inimigo, escreveu Orwell em seu dramático relato.
Stálin
não pensava assim. Porque ele era a sombra.
Orwell
encarnava um tipo de intelectual que andou meio fora de moda até a atual guerra
da Ucrânia. Acreditava nas suas ideias — e por elas, como Apollinaire ou Blaise
Cendrars, pegou em armas, mesmo com a vida em risco.
Lutando
na Catalunha, miliciano nas fileiras do Partido Operário de Unificação Marxista
(Poum), de inspiração trotskista, junto a um pelotão quase sem munição, passou
fome, frio intenso, esteve sob feroz bombardeio, sofreu com os piolhos e acabou
seriamente ferido. Por pouco não perdeu os movimentos do braço esquerdo — ao
contrário de Bozo, não chorou.
Quando
deixou o hospital, leu nos jornais comunistas que ele e seus companheiros do
Poum eram fascistas. Com os anarquistas, se viam acusados de espionagem e
traição. Andreu Nin, dirigente do Poum, já fora preso e “desaparecido”. Outros
trotskistas também seriam eliminados. Estava em marcha a política stalinista de
dizimação das forças opositoras a sua esquerda. Bastava espalhar mentiras
(“espiões”) e os chamar de fascistas, talkey? Funcionou: milhares de
trotskistas e anarquistas caíram presos — e mortos.
Ainda
convalescente, Orwell, para não acabar como Nin, se escondeu dos franquistas e
da polícia manietada pelos stalinistas. Dormiu nos escombros de uma igreja sem
teto, nos canteiros de estradas, andou de esguelha pelas ruas, novamente passou
fome. Mas não chorou. Tentou salvar seus companheiros, presos sob falsas
acusações, mas, sem sucesso, teve de fugir da Espanha — dos franquistas e dos
comunistas de Stálin.
A
traição dos comunistas na Guerra Civil Espanhola custou a derrota da República,
a vitória de Franco e uma ditadura sanguinária que matou milhares (entre eles,
o poeta Federico García Lorca). Só terminou em 1975, com a morte do déspota.
Orwell
chegou socialista. Mas saiu da Guerra Civil espanhola com a ideia de escrever
“1984”, espécie de epitáfio do totalitarismo em nome da causa.
Putin é a sombra.
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