O Estado de S. Paulo.
Na invasão da Ucrânia, a Rússia retomou os seus protocolos militares empregados nas guerras da Chechênia e da Geórgia
As
imagens de bombardeios russos a populações civis na Ucrânia são aterradoras.
Impossível não sentir desgosto e indignação moral. Se houve algum progresso na
Europa, após a Segunda Guerra Mundial, ele se deveu a um dizer não a soluções
militares, privilegiando conversações diplomáticas, mesmo no período mais agudo
da guerra fria. Formou-se um consenso em torno do Estado de Bem-estar Social,
voltado para o atendimento das necessidade individuais e coletivas. Logo, o
continente europeu – e não outras partes do mundo – foi preservado de conflitos
propriamente militares, podendo os membros dos vários Estados se dedicarem a
seus afazeres privados.
A Europa do século 19, durante décadas, conseguiu privilegiar soluções diplomáticas, graças a diplomatas da mais alta estirpe como Metternich, Castlereagh e Talleyrand, conhecedores da história e da arte da negociação. Após a destruição deste mundo, no final do século 19 e, depois, nas duas guerras da primeira metade do século 20, parecia que um mundo novo viera para ficar, com um não rotundo sendo dito às atrocidades da Segunda Guerra Mundial.
Este
novo mundo começou a ser construído baseado na prosperidade social, no
bem-estar dos seus cidadãos e na consolidação de instituições democráticas.
A
exceção foi a União Soviética, que enveredou para a conquista dos países do
Leste Europeu, na afirmação do comunismo, com o Gulag, suas misérias e violências
daí decorrentes, garantindo conquistas territoriais pela força do Exército
vermelho, após sua luta contra o nazismo. Tais conquistas se traduziram pela
formação de uma aliança militar, o Pacto de Varsóvia, que se contrapunha à
Otan, voltada, por sua vez, para combater o comunismo. Foi o período que veio a
ser conhecido como o da guerra fria, sem que, contudo, tenha havido qualquer
confronto direto pondo em questão a estabilidade reinante. A diplomacia foi
privilegiada, as forças militares permanecendo, basicamente, dissuasivas.
Com
o desmoronamento da União Soviética e a consequente dissolução do Pacto de
Varsóvia, parecia que os progressos de então poderiam ir ainda além, com os
países bálticos e do Leste Europeu enveredando para uma economia de mercado e a
democracia. Tendo desaparecido o espectro do comunismo, seria de esperar um
desarmamento correspondente das forças militares ocidentais. Se a Otan foi
criada para conter o comunismo, o desaparecimento deste tiraria daquela a sua
razão de existir. A Rússia enfraquecida já nada podia fazer.
Ocorre,
porém, que os EUA optaram por fortalecer a Otan em função de seus próprios
interesses geopolíticos. Começaram a cooptar os países bálticos e do Leste
Europeu, convidando-os a ingressarem na aliança atlântica. O resultado foi o
cerco militar da Rússia, que viu suas fronteiras sendo ocupadas por mísseis e
forças militares adversárias. Os seus próprios medos históricos de ser invadida
foram mobilizados. Outra solução poderia ter sido, reiteremos, um desarmamento
generalizado, o que levou o grande estrategista americano George Kennan a
dizer, nos anos 90 do século passado, que esta reorientação da Otan foi um
“erro trágico”. Analogicamente, imagine-se se os EUA iriam permitir mísseis
russos em sua fronteira com o México em nome da soberania dos povos, algo que
não admitiu com os mísseis instalados pelos soviéticos em Cuba.
A
Rússia, porém, em vez de privilegiar a diplomacia, inclusive flexionando suas
forças militares para avançar na negociação, voltando-se para garantir que a
Ucrânia não ingressaria na Otan – algo, aliás, que nem estava no horizonte
próximo, graças a opositores importantes como a Alemanha –, decidiu partir para
o confronto militar. E, ao fazêlo, não se orientou somente por sua posição
geopolítica anti-eua e anti-europa, mas, principalmente, por suas próprias
ideias de uma “Grande Rússia”, não somente a soviética, mas a tzarista. Tudo
indica que suas orientações geopolíticas se amparam em pretensões hegemônicas,
procurando a médio prazo recuperar o Leste Europeu e os países bálticos, sendo
a Ucrânia somente a sua primeira etapa.
Ao
invadir este país, num momento inicial, a Rússia, apesar de romper com o
consenso europeu estabelecido, baseado no reconhecimento de fronteiras e na
ideia de soberania nacional, parecia seguir padrões de uma guerra “civilizada”
– se é que se pode empregar essa expressão –, preservando as populações civis e
privilegiando alvos propriamente militares.
Na
medida em que seu avanço foi contido, seja pela resistência ucraniana, seja
pela primavera, que, com o degelo, faz com que os tanques atolem na lama, seja
por seus erros militares e logísticos, os seus “cuidados” iniciais foram
desaparecendo. Retomou os seus protocolos militares empregados nas guerras da
Chechênia e da Geórgia, passando a bombardear pesadamente as populações civis,
não resguardando nem hospitais e maternidades. As imagens de morte e destruição
dos habitantes das cidades são chocantes. É o retorno à barbárie.
*Professor de filosofia na UFGRS
Nenhum comentário:
Postar um comentário