Valor Econômico
Livro da FGV debate da progressividade
tributária
Não há nada que expresse melhor a
desigualdade social e econômica no Brasil do que o regime tributário nacional,
que taxa excessivamente o consumo e muito pouco a renda dos mais ricos. Os
tributos sobre consumo de bens e serviços _ ICMS, PIS e Pasep _ são pagos por
todos de forma indistinta, a alíquotas entre as mais altas do mundo, senão, as
maiores, no caso de serviços como energia e telefonia e de bens como os
combustíveis. Já o imposto sobre a renda das pessoas físicas (IRPF) é pago por
quem tem renda acima de um limite modesto de isenção (hoje, de R$1.903,98 por
mês), sendo que quem ganha mais paga mais, embora o grau de progressividade
seja muito baixo, o que beneficia os ricos.
Como as classes de baixa renda, por razões
óbvias, jamais atendem plenamente às suas necessidades de consumo, elas gastam
mais com mercadorias e serviços, como proporção da renda, do que as classes
média e alta. Tudo isso faz deste país um lugar onde os pobres pagam mais
impostos do que os ricos.
A maior alíquota do IRPF, de 27,5%, incide sobre renda mensal superior a R$ 4.664,68. Portanto, para a Receita Federal, tanto faz se um cidadão recebe R$ 5 mil mensais e outro, R$ 30 mil. Ambos deduzirão a mesma parcela _ R$ R$ 869,36 _ da base de cálculo do imposto e pagarão alíquota idêntica de 27,5% sobre a diferença. Numa sociedade cuja desigualdade é a principal característica nacional desde sempre _ não sairíamos incólumes de quase quatro séculos de escravidão como fator de acumulação de capital e dos 134 anos subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) _, o sistema tributário reflete o despropósito do nosso “projeto” de nação.
Em 1996, o Brasil passou a isentar do
Imposto de Renda os dividendos recebidos por sócios de empresas e introduziu o
JCP (sigla de juros sobre capital próprio). Este dispositivo é equivalente aos
dividendos e permite às empresas de capital aberto deduzirem, da base de
cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), 15%, a título de juros,
do capital aplicado por cada acionista na companhia. Portanto, isso reduz o
volume de imposto pago ao Fisco.
Em tese, como observa o economista Sérgio Gobetti,
as mudanças tinham o objetivo de desonerar o capital e, assim, incentivar a
capitalização das empresas. Além disso, a ideia era reduzir as distorções
provocadas pelo modelo clássico de tributação, tais quais. “a oneração da
parcela da renda do capital que apenas repõe a inflação” e o incentivo ao
financiamento das companhias por meio de endividamento, uma vez que as taxas de
juros dos empréstimos podem ser abatidas da base de incidência do IRPJ.
Traduzindo em miúdos, a lógica desse modelo
era a de incentivar aos detentores de capital, de poupança, a empreenderem, em
vez de investirem preferencialmente no mercado financeiro (leia-se: em títulos
do governo). O então secretário da Receita, Everardo Maciel, alega que o
capital dos acionistas já é tributado na empresa. Cobrar-se, por conseguinte,
IR sobre dividendos resultaria em bitributação.
O problema, neste imenso território, é o
diabo, que deita morada nos detalhes. Ao isentar os dividendos, o governo
provocou um efeito colateral indesejável: o incentivo à chamada “pejotização”,
isto é, na transformação de executivos abonados de companhias e bancos em
sócios das empresas, de maneira de que eles não pagassem mais Imposto de Renda
sobre seus vencimentos. Eles deixaram de ser PF (pessoa física, sujeita ao
pagamento de 27,5% de IR) e se tornaram PJ (pessoa jurídica). A renda dessa
turma passou a ser os dividendos distribuídos pelas companhias.
No início, a “pejotização” se espalhou
feito erva daninha nos escalões mais altos das organizações. Todo o mundo se
tornou “sócio” das empresas onde trabalhavam. No momento seguinte,
generalizou-se e, aí, o diabo mostrou sua cara: devido aos elevados custos
laborais e encargos sociais existentes no Brasil, as empresas viram na
“pejotização” uma forma de diminuir essa conta, uma vez que, fora da CLT, o
trabalhador não tem direito sequer ao “privilégio” das férias anuais de 30
dias. A conta da metamorfose de pessoas físicas em jurídicas logo chegou ao seu
destinatário: a Viúva, que, de repente, constatou que a arrecadação de IRPF
parou de crescer e a dos tributos que ajudam a pagar, via INSS, a aposentadoria
e os benefícios sociais de milhões de brasileiros, a desacelerar em ritmo que
só não dá inveja ao do PIB na segunda metade deste século (crescimento anual
médio de 0,3%).
Este exemplo mostra que, aqui, antes de se
formular uma nova política pública, seria bom conversar com os russos, na
acepção do gênio Garrincha. Na maioria das vezes, as políticas são desenhadas
para resolver um problema, a solução é genial, mas, no fim, pioram o sistema
geral.
Esta não é uma crítica à decisão tomada em
1996 por Everardo Maciel, que comandou a Receita Federal durante oito anos, nos
dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Sua gestão, entre outras
conquistas, “desfeudalizou” politicamente a Receita _ antes, superintendências
eram controladas por partidos e a corrupção corria solta; modernizou todo o
marco de tributação das empresas _ o IRPJ _, sendo que a isenção de dividendos
foi um dos aspectos; instituiu a declaração do Imposto de Renda pela internet;
ampliou, por meio de medidas inovadoras, a base de contribuintes pessoas
físicas; criou delegacias com know-how para combater fraudes fiscais no setor
financeiro.
A isenção e a taxação de dividendos são
temas controversos. Mas, não se pode afirmar que a decisão tomada em 1996 teve
o objetivo de beneficiar os ricos. Com a devida vênia da redundância, o
problema do Brasil é que o problema do Brasil nunca é um problema só.
O contexto da adoção desse modelo de
estímulo, digamos, ao empreendimento, foi o de uma economia que, durante quase
três décadas, conviveu com elevados índices de inflação, depois de
superinflação e, depois, de hiperinflação, males que desorganizaram
profundamente a economia. Depois da crise da dívida, em 1982, o Estado perdeu a
capacidade de investir. Em 1996, quando a isenção de IR sobre dividendos foi
implantada, o Plano Real, que logrou sucesso no combate à inflação, estava em
vigor há menos de dois anos.
“Os eventuais impactos negativos - da menor progressividade e menor tributação do capital - sobre a distribuição de renda ou não existiriam, segundo a tese do ‘trickledown’, ou deveriam ser compensados por meio de transferências de renda aos mais pobres”, diz Sérgio Gobetti em capítulo do livro “Progressividade Tributária e Crescimento Econômico” (FGV-Ibre, 2022).
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