quinta-feira, 30 de junho de 2022

Pedro Cavalcanti Ferreira, Renato Fragelli Cardoso*: Regras contra a arbitrariedade populista

Valor Econômico

Lula é hoje o grande beneficiário das importantes reformas institucionais, aprovadas ao arrepio do PT

A menos de quatro meses da eleição, o país assiste a um presidente desesperado, diante da provável derrota, partir para o tudo ou nada, mediante uma intervenção no ICMS incidente sobre combustíveis e várias outras medidas arbitrárias e populistas. Paradoxalmente, a ação flagrantemente eleitoreira do governo estaria sendo ainda mais intensa se o PT tivesse conseguido impedir a aprovação de importantes avanços institucionais, implantados após o afastamento de Dilma Rousseff.

Embora o Brasil seja hoje exportador de petróleo bruto, a capacidade nacional de refino é de apenas 80% do consumo de combustíveis, de modo que os 20% restantes precisam ser importados. Devido à guerra na Ucrânia, o preço do petróleo bruto e dos combustíveis disparou no mercado internacional. Nenhuma distribuidora privada importaria combustíveis caros no exterior, caso tivesse que vendê-los com prejuízo no mercado nacional. Para que os preços domésticos da gasolina e diesel ficassem abaixo da paridade internacional, como deseja Bolsonaro, seria necessário que a Petrobras assumisse toda a importação, vendendo-a com enorme perda no mercado doméstico.

Outra alternativa é a redução da tributação sobre os combustíveis, como busca neste momento o governo. Mas esta é condenável por diversos motivos. Ela reduz pontualmente a inflação neste ano eleitoral, mas elevará no futuro, em igual magnitude, a inflação do ano em que a isenção tributária for revista. Compromete recursos públicos que poderiam ter usos muito mais eficientes em outras áreas. Tem caráter regressivo, pois pobres não possuem automóvel. Trata-se de um subsídio a uma energia ambientalmente condenável. Além disso, no caso do teto de 17% para o ICMS, além de comprometer o equilíbrio fiscal dos Estados, a alíquota cria um parâmetro que dificultará a implantação de uma futura boa reforma tributária do consumo, baseada num IVA em alíquota uniforme sobre todos os bens e serviços.

O caráter populista da iniciativa ilustra por que amarras institucionais são tão importantes para bom funcionamento da democracia. Em 2016, o governo Temer aprovou duas regras que hoje contêm o ímpeto presidencial de manipulação de políticas públicas com fins puramente eleitoreiros: a Lei das Estatais e o Teto de Gastos. Em 2021, o Banco Central ganhou independência operacional, passando sua presidência e diretoria a ter mandatos fixos que não podem ser abreviados por uma deliberação arbitrária do presidente da República.

A Lei das Estatais é o instrumento jurídico que vem impedindo Bolsonaro de usar a Petrobras para baixar temporariamente a inflação, mediante congelamento de preços de combustíveis. Sendo a União o acionista controlador, o chefe do Executivo até conseguiu derrubar três presidentes da empresa que se recusaram a abandonar a paridade de preços domésticos com os internacionais. Mas se a Lei das Estatais não estivesse em vigor, Bolsonaro estaria repetindo a mesma manipulação de preços adotada por Dilma Rousseff em 2014, que impôs imensas perdas à empresa, mas lhe assegurou vitória sobre Aécio. Não é surpresa que o presidente, o Centrão e o PT se movimentem para derrubar a lei.

Analogamente, o Teto de Gastos, ou o que sobrou dele após a flexibilização motivada pela surpresa dos precatórios, é a amarra institucional que hoje limita uma gastança eleitoreira ainda maior. Junto com a PEC dos precatórios, Bolsonaro transformou o bem focado programa Bolsa Família no atabalhoado e caro Auxílio Brasil, com o qual pretende conquistar os eleitores de Lula no Nordeste. Quantas outras despesas com forte impacto eleitoral, mas pouco foco na melhoria da distribuição de renda, estariam atualmente em curso se o Teto não existisse?

A independência operacional do Banco Central é um terceiro exemplo de aprimoramento institucional que impede a manipulação eleitoreira de uma importante política pública. Diante da forte pressão inflacionária observada desde o ano passado, o Banco Central elevou gradualmente a taxa básica de juros, entre março de 2021 e junho de 2022. O aumento total foi enorme, de 2% ao ano a 13,75%, seguindo parâmetros técnicos à revelia de pressões políticas. Alguém acredita que Bolsonaro estaria assistindo resignado a essa contínua alta dos juros se o Banco Central ainda fosse um mero apêndice do governo, cuja diretoria pudesse ser trocada por um simples decreto seu? Essa era a regra do passado que provocou inúmeros episódios de alta inflação.

Os três aprimoramentos institucionais citados acima, ao retirarem do governante de plantão instrumentos que poderiam ser usados para ajudá-lo a se reeleger, são exemplos de amarras institucionais que fortalecem a democracia. Curiosamente, os três, quando estavam sob tramitação no Congresso, foram acirradamente combatidos pelo PT e seus aliados. Populistas, à esquerda ou à direita, não gostam de regras, pois preferem a discricionariedade que lhes gera ganhos no curto prazo, mas comprometem o bom desempenho da economia no médio e longo prazo.

Diante da polarização entre Lula e Bolsonaro, o petista é hoje o grande beneficiário das importantes reformas institucionais, aprovadas ao arrepio do PT, que limitam a capacidade de Bolsonaro manipular a economia a favor de sua reeleição. Entretanto, uma primeira versão do programa do partido aponta para um grande retrocesso nessa direção. Altos dirigentes do PT, e o próprio Lula, não cansam de mandar sinais dúbios sobre a Lei das Estatais, o Teto dos Gastos - sem dizer o que colocarão no lugar - e outros avanços institucionais, como se eles fossem impedimento ao crescimento econômico e boas políticas sociais. Ao contrário, são justamente eles que permitirão, a quem quer que seja eleito, implementar políticas consistentes capazes de reduzir a inflação de forma permanente e retomar o crescimento sustentável.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).

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