quinta-feira, 30 de junho de 2022

Míriam Leitão: O real apareceu no meio do caminho

O Globo

Tanques do Exército na avenida Presidente Vargas, no Rio, carretas blindadas escoltadas por viaturas da Polícia num cortejo que foi até o Galeão, onde fardos foram descarregados nos aviões da FAB que partiram para todo o Brasil. Aquele aparato era visto com esperança de um novo tempo na vida do país. Na quinta feira, 30 de junho, o desafio logístico tinha sido cumprido e, com alegre expectativa, o país foi dormir esperando a sexta-feira, primeiro de julho. O real nasceu após vários fracassos das políticas de controle ou de congelamentos de preços.

Isso foi há 28 anos. Aquela movimentação bélica no centro do Rio, que pôde ser vista no mês de junho de 1994, era a distribuição das novas cédulas que amanheceriam no dia primeiro de julho em todo o Brasil. O que se queria era ganhar também a guerra das expectativas. A visão das novas notas de real tinha que sepultar as cédulas do dinheiro velho. Aquela seria a quinta troca de nome da moeda em oito anos. Mas o que os formuladores do plano queriam é que fosse a última. E o nome ficasse, assim como a moeda. Por isso a promessa era de trocar todo o meio circulante do país e encomendaram à Casa da Moeda 1,15 trilhão de cédulas e 330 bilhões de moedas. Hoje, o mundo monetário mudou radicalmente e já se aposta no fim do dinheiro físico. Mas a inflação voltou a assombrar.

Quando escrevi o livro “Saga Brasileira” contando a luta do país contra a hiperinflação, que consumiu a primeira década após a redemocratização, sabia que o preço dessa estabilidade era a vigilância permanente. Escrevi na quarta capa. “Nessa saga, o inimigo foi vencido. Mas não morreu. Ele está à espreita, atento a qualquer descuido do país.”

O fim da hiperinflação foi conquista da democracia. É bom sempre lembrar. A proposta do desenvolvimento autoritário fracassou redondamente e os militares saíram deixando a herança de uma superinflação indexada como uma bomba que estouraria no colo dos governos civis. As várias tentativas de acabar com a dinâmica da autorreprodução da inflação levaram as taxas a patamares cada vez mais altos. A armadilha monetária foi criada pelos governos militares e foi desarmada pelos civis.

A democracia estabilizou a moeda, equacionou a dívida externa, acumulou reservas, colocou as crianças de 7 a 14 anos na escola, criou o SUS, iniciou o processo de inclusão dos negros, demarcou terras indígenas, modernizou o ato de votar com a urna eletrônica. Há uma longa lista de conquistas para mostrar aos que, ainda hoje, desprezam a democracia.

Atualmente enfrentamos um surto inflacionário, mas nada que se pareça com o passado que foi derrotado naquele plano. O Real usou nova engenharia monetária, especialmente brilhante, com a criação de uma unidade de conta virtual, a URV, que carregava a semente da nova moeda. Mas não foi apenas isso. Os anos que se seguiram foram desafiadores com crises bancária, cambial, fiscal e externa. Mudanças incrementais e reformas tiveram que ser encaradas. As privatizações, feitas principalmente no governo Fernando Henrique, aceleraram a modernização econômica, como na área de telecomunicações.

Na reta final deste infeliz mandato presidencial de Bolsonaro, o que se vê é a volta de truques e controles de preços para tentar conter a inflação. Sabemos de vida vivida que nada disso funciona e provoca perversos efeitos colaterais. Em desespero para reverter o quadro adverso nas pesquisas, o presidente e seus asseclas, na política e na equipe econômica, preparam medidas demagógicas que ferem as leis fiscais e eleitorais do país.

O que ficará do atual governante é o ataque à institucionalidade e a busca de soluções autoritárias que atingiram todas as áreas da vida nacional. Na economia, também. Este governo descumpriu a Lei de Responsabilidade Fiscal muitas vezes mais do que a presidente Dilma Rousseff, que sofreu impeachment por isso. Rompeu o teto de gastos tantas vezes que o limite fiscal virou uma abstração. Está intervindo na Petrobras para controlar preços de combustíveis como antigamente.

O entendimento que esse tempo distópico deixa é que o autoritarismo que está na alma deste governo contamina todas as suas decisões. Suas propostas para o Brasil são obsoletas e provocam retrocessos na política, na área social, na economia.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Míriam Leitão sabe das coisas.