Editoriais
A verdadeira herança maldita
O Estado de S. Paulo
Não se sabe quem será o próximo presidente, mas isso não é importante para os que trabalham neste momento para manter o orçamento secreto intacto e sob controle do Centrão
Quem suceder a Jair Bolsonaro na
Presidência da República encontrará um rastro de destruição em áreas essenciais
da administração pública federal, como economia, saúde, educação, cultura,
relações exteriores e meio ambiente. Mas poucos legados do atual mandatário
terão sido tão nefastos para o futuro próximo do País quanto a entrega, pelo
Poder Executivo, da responsabilidade que lhe cabe na gestão do Orçamento a um
grupo de parlamentares oportunistas, que viram na debilidade moral, política e
administrativa de Bolsonaro o ensejo para cobrarem do presidente um alto preço
por sua permanência no cargo, malgrado a miríade de crimes de responsabilidade
que ele cometeu – e segue cometendo.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), é figura de proa na arquitetura e na execução desse arranjo inconstitucional. Sob suas ordens diretas está a destinação da maior parte dos bilionários recursos que compõem o chamado orçamento secreto. Poucos políticos detiveram tanto poder em suas mãos na história recente do País como Arthur Lira detém hoje. E o presidente da Câmara sabe disso. Tanto que, à luz do dia, manobra para conservar não apenas o próprio orçamento secreto, mas, sobretudo, o seu papel central no esquema, seja quem for o vencedor da eleição presidencial em outubro.
Como revelou o Estadão no domingo
passado, Lira pretende incluir um dispositivo na Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) de 2023 – ou criá-lo por meio de uma resolução do Congresso
– que torne obrigatórias as assinaturas do presidente da Comissão Mista de
Orçamento (CMO) e do relator da LDO para as indicações das emendas do orçamento
secreto, em conjunto com a anuência do relator-geral do Orçamento, que hoje é
quem detém essa “prerrogativa”, chamemos assim, com exclusividade.
Até aqui, a ordem das coisas tem atendido
bem aos interesses de Arthur Lira e seu grupo político. Os relatores-gerais do
Orçamento nos últimos dois anos foram aliados do presidente da Câmara. Mas
Lira, não é de hoje, já está com os olhos voltados para 2023, pensando não só
em sua reeleição como presidente da Casa, como também em maneiras de conservar
seu poder pessoal de direcionar a distribuição das emendas do orçamento
secreto, que no ano que vem deverão somar R$ 19 bilhões. A estratégia eleitoral
de Lira para seguir à frente da Câmara na próxima legislatura está
umbilicalmente ligada à renovação de seu mandato pelos alagoanos, por óbvio, e
ao seu poder de distribuir dinheiro entre os pares.
O relator-geral do Orçamento de 2023 será o
senador Marcelo Castro (MDB-PI), um parlamentar que não faz parte do grupo
político de Arthur Lira. Já o presidente da CMO será o deputado Celso Sabino
(União-PA), aliado de Bolsonaro e escolhido pessoalmente pelo presidente da
Câmara para chefiar a comissão. Por fim, o senador Marcos Do Val (Podemos-ES)
será o relator da LDO. Do Val, como os brasileiros puderam acompanhar durante a
CPI da Pandemia, tem forte inclinação governista.
O que funcionou até aqui com
relatores-gerais do Orçamento aliados de Arthur Lira pode não funcionar da
mesma forma em 2023, quando a relatoria-geral estará a cargo de um parlamentar
cuja atuação o presidente da Câmara pode não ter como controlar. É vital para
Lira, portanto, diluir o poder de Marcelo Castro entre seus aliados na
presidência da CMO e na relatoria da LDO e tornar o pagamento das emendas RP-9
impositivo, como é para as emendas individuais e de bancada. Já para o País,
vital é acabar com o orçamento secreto.
O próximo presidente da República haverá de
empreender um grande esforço para recuperar o controle do Orçamento que foi
perdido durante o governo de Jair Bolsonaro. E recuperar esse controle não
apenas para cumprir a transparência inscrita na Constituição, razão fundamental
por si só e já ordenada pelo Supremo Tribunal Federal, mas para também reconciliar
o Orçamento com as grandes prioridades nacionais, que são muito distintas dos
interesses paroquiais dos parlamentares que hoje se esbaldam com recursos
públicos sem prestar contas a ninguém.
CPI da Educação é um imperativo
O Estado de S. Paulo
Não investigar a corrupção no MEC é compactuar com bandalheira numa pasta fundamental para futuro do País
É imperativa a instalação, pelo Senado, da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre os escândalos relacionados ao
Ministério da Educação (MEC). Com a obtenção de mais de 27 assinaturas, o
direito constitucional da minoria de fiscalizar o Executivo deve ser garantido.
Não há alternativa ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que não a
de ler em plenário o pedido protocolado pela oposição. É esse o papel que a
sociedade espera que o Senado cumpra nos derradeiros meses de um governo que,
malgrado seus inúmeros malfeitos, parece seguro da impunidade.
Se não bastasse o desmazelo com que o
governo tratou a área desde o início do mandato – foi ausente na pandemia e
envolveu-se mais com a pauta ideológica do bolsonarismo do que com problemas
reais da educação –, o MEC é hoje a principal fonte de escândalos da
administração pública. Estupefato, o País tomou conhecimento, por intermédio
do Estadão, que havia no MEC um “gabinete paralelo” integrado por pastores
que negociavam propina para liberar verbas a prefeitos. Nem o negacionismo do
presidente Jair Bolsonaro foi suficiente para impedir a demissão do então
ministro da Educação Milton Ribeiro.
Se o funcionamento do gabinete paralelo no
MEC é algo tão grave a ponto de se tornar alvo da Polícia Federal, o esquema
liderado pelos pastores não é o único motivo a justificar a abertura da CPI.
Merece profunda investigação dos senadores – e uma consequente reforma – a
governança do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), há anos nas
mãos de lideranças do Centrão. Em um País onde há 3,5 mil escolas com obras
paradas por falta de recursos, este jornal mostrou que dinheiro do FNDE tem
sido usado para autorizar a construção de milhares de novas unidades sem
qualquer perspectiva de sair do chão, em um esquema muito semelhante a golpes
aplicados em pirâmides financeiras. Não fosse o trabalho da imprensa, a verba
do mesmo fundo teria viabilizado uma licitação para a compra de ônibus
escolares com sobrepreço.
Ao contrário do que o governo quer dar a
entender, o rol de escândalos relacionados ao Ministério da Educação não é
simplesmente um erro ocasional. Nestes e em todos os outros casos revelados
pela imprensa, há evidente intenção de privilegiar aliados – sejam políticos em
campanha, sejam empresários em busca de enriquecimento, sejam pastores que
atuam como atravessadores de recursos públicos. Há, portanto, muito mais do que
um único fato determinado para justificar a instalação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito.
Ademais, com a Câmara dos Deputados
cooptada por emendas do orçamento secreto, resta ao Senado assumir a atividade
de fiscalizar o Executivo, função que ganha ainda mais relevância quando sobram
indícios de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Não abrir a CPI do
MEC por qualquer razão – pedidos de CPI protocolados anteriormente ou o
calendário eleitoral – seria o mesmo que compactuar com a bandalheira em uma
área fundamental para o futuro do País. Que o Senado não passe novamente pelo
vexame de aguardar ordem expressa do Supremo Tribunal Federal para
instalá-la.
A leniência das Big Techs no Brasil
O Estado de S. Paulo
Pesquisas indicam que no País as plataformas digitais não têm mostrado o mesmo empenho em aplicar regras de moderação, como são obrigadas a fazer nos países desenvolvidos
Levantamento realizado pelo professor
Marcelo Alves, do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, mostrou que o YouTube
removeu só 4,4% dos vídeos com desinformação sobre o sistema eleitoral. O dado
sugere uma defasagem das plataformas no cumprimento de suas próprias regras de
moderação e de compromissos assumidos com o Poder Público.
Em março, o YouTube anunciou uma nova
política para a redução da disseminação de informações enganosas sobre as
eleições. Mas a pesquisa aponta que essa política não tem sido executada de
forma contínua e transparente. Dias antes do anúncio, o levantamento
identificou ao menos 1.701 vídeos com acusações infundadas ao sistema
eleitoral. Dois meses depois, apenas 75 haviam sido removidos. Conteúdos como a
live em que o presidente Jair Bolsonaro resgata boatos já desacreditados para
questionar a segurança das urnas permanecem ativos. No total, os 1.626
conteúdos ativos acumulam 63 milhões de visualizações.
“O YouTube deu um passo na direção de
reconhecer o problema”, disse Alves, “mas é bastante evidente que essa
moderação é insuficiente para dar conta da instrumentalização e de apropriação
da plataforma para fins de ataques antidemocráticos.”
Situação similar foi verificada pelo
pesquisador Guilherme Felitti, da Novelo Data, sobre a propagação de vídeos
enganosos sobre tratamentos ineficazes contra a covid-19. Em abril de 2021
houve uma mobilização inicial, que arrefeceu nos meses seguintes. “De maneira
geral, os indícios sugerem que o YouTube não está interessado em efetividade”,
disse Felitti. “Acho que existe um esforço em livrar a própria
responsabilidade, de mostrar para as pessoas que está interessado quando elas
estão olhando, mas depois é algo que volta ao padrão.”
O Brasil é um dos maiores mercados do mundo
para as plataformas digitais, seja em número de usuários, seja em tempo de
interação. Ainda assim, o desinteresse dessas plataformas pela moderação de
conteúdo e combate à desinformação no País contrasta com o seu empenho em
lugares como EUA ou Europa. Basta comparar, por exemplo, o rigor com que agiram
contra a desinformação disseminada por Donald Trump e seus correligionários
sobre fraudes nas eleições dos EUA com a leniência que têm dispensado às
falsidades sobre o sistema eleitoral brasileiro.
Na Europa, segundo um relatório
confidencial acessado pelo jornal Financial Times, as Big Techs estão a ponto
de assinar uma versão atualizada do Código de Antidesinformação, obrigando-se a
revelar o modo como estão removendo, bloqueando ou desestimulando a
disseminação de conteúdo danoso. Elas terão de desenvolver ferramentas e
parcerias com checadores de fatos, que podem levar à retirada de propaganda
política e à inclusão de “indicadores de confiança” de informações verificadas
independentemente sobre temas como a pandemia ou a guerra na Ucrânia. Além
disso, precisarão fornecer detalhes sobre o número de robôs removidos, os
sistemas de inteligência artificial empregados para ceifar fake news e o número
de moderadores de conteúdo empregados em cada país.
O debate sobre a regulação das redes parte
do pressuposto de que elas têm uma função não meramente comercial, mas pública.
No Brasil, o Marco Civil da Internet protegeu as plataformas contra ações de
responsabilização por conteúdos danosos produzidos por terceiros. Mas as
discussões hoje, especialmente no âmbito do Projeto de Lei das Fake News, se
referem à responsabilização das redes pela difusão e direcionamento de
conteúdos danosos por meio de seus algoritmos.
Independentemente dos resultados dessa tramitação, as plataformas possuem suas próprias regras de moderação, incluindo compromissos assumidos com órgãos do Poder Público, como o Tribunal Superior Eleitoral. O problema é que, diferentemente de outros lugares, no Brasil elas estão se mostrando hesitantes no cumprimento dessas regras. Até porque esse cumprimento exige investimentos. Mas esses investimentos claramente não estão sendo realizados na proporção do volume de negócios realizados no País.
A colheita de Putin
Folha de S. Paulo
Guerra fortalece Otan com novas bases e
membros, em derrota do autocrata russo
Na pedra fundamental da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan), deitada em 1949, residia o imperativo de
conter a expansão soviética na Europa Ocidental. Durante décadas, deu certo. Em
1991, com o colapso do império comunista centrado em Moscou, a vitória poderia
ser declarada.
De lá para cá, a Otan dividiu-se entre
auferir ganhos sobre os derrotados e procurar novas razões para existir. Foi
bem-sucedida no primeiro trabalho, englobando 14 Estados ex-comunistas em cinco
rodadas de expansão desde 1999.
Já a segunda tarefa redundou mais em
resultados fracos do que bons. Houve o fracasso de controlar a implosão da
ex-Iugoslávia e o sucesso na criação do Kosovo independente. A intervenção na
Líbia removeu uma ditadura, mas o que veio depois foi ainda pior.
Ao fim, como a presença acessória no
Afeganistão e na Síria demonstrou, a aliança basicamente seguiu os passos
erráticos do presidente americano de plantão.
Em 2014, ano em que Vladimir Putin mostrou
que falava sério quando disse que não permitiria uma Ucrânia ocidentalizada,
com a anexação da Crimeia e a guerra civil, os EUA gastavam com defesa mais que
o dobro de todos os então outros 27 membros do clube.
Em 2021, com 30 integrantes, a proporção
havia caído um pouco, para 2,24 vezes, ou cerca de 70% do US$ 1 trilhão
despendido. A Guerra na
Ucrânia levará a uma explosão dos valores, como indica o novo Conceito
Estratégico da Otan.
No documento, primeiro do gênero desde
2010, a aliança reencontra no velho rival razão existencial e promete uma
grande expansão, com novas bases, aumento de contingente pronto para agir e,
por fim, englobando as historicamente neutras Suécia e Finlândia.
O último item foi dádiva da esquiva
Turquia, buscando vantagens pontuais em troca de não vetá-lo. Outras fissuras
permanecem, como a responsabilidade pela conta; com efeito, é dos EUA a
principal assinatura nos cheques.
Nada disso ofusca o fato de que Putin
colheu um fruto diverso daquele pretendido. Em vez de cindir a aliança, crente
no poder de todo modo ainda robusto de sua indústria energética, ele a viu
justamente crescer rumo a suas fronteiras.
Essa é uma derrota do russo, mesmo que seu
objetivo de inviabilizar a Ucrânia como Estado esteja bem encaminhado. Finda a
batalha, seja em meses ou anos, o embate de Moscou com o Ocidente prosseguirá e
poderá ser ainda ampliado.
E isso provavelmente, como explicita a
menção à China como ameaça pela Otan, no escopo do conflito entre Pequim,
aliada de Putin até aqui, e Washington.
Racionalizar a Justiça
Folha de S. Paulo
Texto que limita recurso ao STJ tem
objetivo correto de evitar processos sem fim
O sistema de Justiça brasileiro é
excessivamente caro —custando, como fatia do Produto Interno Bruto, não
raro mais de sete
vezes o que se observa em países desenvolvidos—
e entrega à população um serviço de baixa qualidade.
Aqui a Justiça é lenta, falha e não oferece
previsibilidade jurídica, indispensável para a paz social e o desenvolvimento
econômico.
Não há causa única para esse estado de
coisas. São décadas ou séculos de distorções em áreas tão variadas quanto
administração de pessoal e sistema recursal. Melhorar o panorama exigirá
múltiplas mudanças, de variados calibres, que deveriam fazer parte de qualquer
projeto de nação.
Uma dessas medidas está em discussão no
Congresso. É a chamada PEC da Relevância, que cria filtros adicionais para a
tramitação de recursos especiais no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Um sistema judicial funciona bem quando a
esmagadora maioria das demandas se resolve na primeira e na segunda instâncias.
No Brasil, porém, o STJ e o Supremo Tribunal Federal acabaram se tornando
cortes recursais de terceira e quarta instâncias, respectivamente, o que
explica muito da infindabilidade dos processos.
Deveria ser desnecessário dizê-lo, mas os
mais altos tribunais do país não deveriam perder tempo revisando brigas entre
vizinhos e outros casos cujo impacto não vai além das partes envolvidas.
Pelo menos no papel, o STJ deveria
dedicar-se a unificar as interpretações da legislação infraconstitucional, para
o que deveria cuidar de casos paradigmáticos, com repercussão para além das
partes.
É mais ou menos o que busca fazer a
proposta de emenda constitucional ao exigir que os recursos especiais
demonstrem a relevância das teses jurídicas ali tratadas para serem apreciados
pela corte.
É natural que os advogados tendam a
resistir a essa ideia, apontando, não sem alguma razão, que um dos riscos da
PEC seria fechar portas da Justiça aos mais vulneráveis.
Para minorar tal perigo, o Senado introduziu no texto uma lista de casos em que
a relevância é presumida.
Ela inclui matéria penal, ações de
inelegibilidade e improbidade administrativa, contestação de jurisprudência
dominante no STJ e causas com valores superiores a 500 salários mínimos.
A Câmara, para onde a PEC voltou, pode
fazer novos aperfeiçoamentos, mas é importante que algum filtro seja adotado.
Os processos judiciais precisam ter começo, meio e, principalmente, fim.
Aumento de armas não foi a causa de queda
na violência
O Globo
O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP) divulgado nesta semana mostra que, em 2021, o Brasil registrou,
para cada 100 mil habitantes, 22,3 mortes violentas intencionais — categoria
que reúne homicídios, latrocínios e lesões fatais. O número caiu 6,5% em
relação a 2020. Houve, portanto, queda expressiva na violência letal.
Ao mesmo tempo, o levantamento constata
que, desde o início do governo Jair Bolsonaro, os registros de armas de fogo
dispararam. Só os concedidos a caçadores, atiradores desportivos e
colecionadores (CACs) cresceram 474%. Pelos cadastros do Exército (Sigma) e da
Polícia Federal (Sinarm), havia em março 64% mais armas de fogo legais em poder
dos brasileiros que em 2019, ano da posse. Considerando acervos de segurança e
registros irregulares, o total chegava perto de 4,5 milhões.
O bolsonarismo costuma relacionar os dois
indicadores: a perigosa escalada das armas de fogo e a redução das mortes
violentas intencionais. Trata-se de um equívoco sem tamanho. Para entender por
que, basta analisar com atenção os dados do Anuário.
Se houvesse associação entre o armamentismo
e a queda da violência, ela estaria presente nos números regionais: estados e
regiões onde a população tivesse comprado mais armas teriam alcançado queda
maior nos índices de violência. Não foi o que ocorreu.
Considere o Amazonas. O estado foi palco de
crescimento brutal no arsenal em poder de civis. Os novos registros no Sigma
passaram de 160, em 2014, para 2.666 no ano passado, um salto de 1.566%. No
entanto a violência também explodiu. Só entre 2020 e 2021 houve alta de 53,5% nos
homicídios dolosos. Uma análise dos dados feita pelo FBSP a pedido do GLOBO não
constatou nenhum “padrão definitivo que sustente de forma robusta” a associação
do armamentismo com a queda na violência. No linguajar dos estatísticos, não há
correlação detectável entre as duas variáveis.
Os exemplos regionais parecem, ao
contrário, desmentir a tese bolsonarista. Na 12ª Região Militar (RM) — AM, AC,
RO e RR —, os registros de armas cresceram 80% entre 2019 e 2021, e as mortes
violentas aumentaram 17%. Na 9ª RM —MT e MS—, onde houve o maior salto nas
armas em poder da população (114%), o indicador cresceu 4%. Na 11ª RM, que
engloba o resto do Centro-Oeste, houve o menor crescimento no armamentismo
(36%), e as mortes violentas caíram mais de 18%.
Para o FBSP, a queda nessas mortes está
vinculada a outros fatores: mudanças demográficas (menos adolescentes e jovens,
principais vítimas dos crimes); políticas locais; criação do Sistema Único de
Segurança Pública (SUSP) pelo governo federal; redução de conflitos entre
facções; e o próprio Estatuto do Desarmamento, por mais que tenha sido
desfigurado. Antes dele, segundo o anuário, os assassinatos cresciam 6,5 vezes
mais rápido.
De acordo com o FBSP, 76% das mortes
violentas intencionais são cometidas com armas de fogo. Estudos do mundo todo
mostram que, quanto mais armas e munição, maior a chance de crimes. O que reduz
a violência são políticas públicas: equipar as forças de segurança e dar
condições para que trabalhem com tecnologia e inteligência. Facilitar compra e
porte de armas não é política de segurança. É tão somente uma forma de
ludibriar a população com a mentira de que, armada, estará mais segura — ilusão
que pode ser fatal.
Economia deve seguir sendo dor de cabeça
para campanha de Bolsonaro
O Globo
Faltando pouco mais de 12 semanas para as
eleições, é cada vez menor a chance de o presidente Jair Bolsonaro receber um
empurrão da economia. O acumulado da inflação em 12 meses segue em dois dígitos
(12% em junho), e não será surpresa se chegar a outubro assim. É pouco provável
que o desespero de Bolsonaro para baixar o preço dos combustíveis, ainda que de
forma artificial e semeando ruína, resulte em alívio para a população.
Nem mesmo a permissão para o saque
extraordinário de até R$ 1 mil do FGTS e a antecipação de 13º salário a
aposentados e pensionistas do INSS, duas das poucas medidas sensatas adotadas
pelo governo neste ano, deverão ter o efeito esperado. Um levantamento da
Fundação Getulio Vargas (FGV) revelou que 67% dos consumidores dizem que usarão
esses recursos para quitar dívidas ou poupar.
Nenhuma das opções é motivo para otimismo.
Entre os mais pobres, famílias com ganho mensal abaixo de R$ 2.100, é maior o
percentual dos que pretendem pôr as contas em dia. Entre os mais ricos, com
renda acima de R$ 9.600, a maioria diz que guardará o dinheiro, sinal de
preocupação com o futuro.
Bolsonaro pode tentar culpar a guerra na
Ucrânia e a alta do barril do petróleo, mas a inflação já vinha alta antes de
os tanques russos invadirem o país. Dois fatores ligados ao presidente
contribuíram para isso. Primeiro, a mania de gastar energia em brigas quase
diárias com inimigos imaginários, em vez de usá-la para governar. Isso sempre foi
fator de instabilidade, comprovável na depreciação do câmbio, que encarece os
produtos importados. Segundo, o casamento com o Centrão aumentou os gastos do
governo, também pressionando os preços.
O Banco Central começou a subir os juros na
tentativa de segurar a inflação em março do ano passado. De lá para cá, houve
11 anúncios consecutivos para cima até chegar aos 13,25% atuais. É possível que
em agosto a taxa aumente um pouco mais. Com Bolsonaro fazendo anúncios de “pix
caminhoneiro” e aumento do Auxílio Brasil, sabe-se lá onde vai parar o ciclo de
alta do Banco Central.
Parte dos saques do FGTS e da antecipação
do 13º salário é destinada ao consumo e tem efeito positivo na atividade
econômica. O problema é o tamanho do impacto. Em tempos normais, com um presidente
minimamente sensato e competente, seria possível imaginar que os brasileiros
mais pobres, uma vez quitadas as dívidas, voltassem ao mercado em busca de
novos empréstimos para fazer compras, e os mais ricos, com o dinheiro extra,
não adiassem mais planos de adquirir produtos e serviços. Só que o Brasil sob
Bolsonaro é tudo menos normal. Com a taxa de juros nas alturas e subindo, obter
crédito ficou mais difícil. Com um presidente dando sinais públicos de querer
atacar o resultado da eleição em caso de derrota, até os mais abastados estão
receosos.
Bolsonaro amplia liberação de recursos para
se reeleger
Valor Econômico
Se as manobras financeiras irresponsáveis
do presidente serão suficientes para reelegê-lo, só o eleitor poderá responder
A conta das despesas eleitorais do
presidente Jair Bolsonaro não para de crescer e se aproxima dos R$ 300 bilhões.
Ontem, o senador Fernando Bezerra, então relator da PEC dos Combustíveis,
apresentou um pacote maior do que os R$ 29,6 bilhões previstos para furar o
teto de gastos, para zerar a fila (1,7 milhão, pelos números oficiais) das
pessoas que aguardam ingresso no Auxílio Brasil. A soma foi a R$ 38,7 bilhões,
com o contrabando de um estado de emergência que legalmente não para em pé em
ano eleitoral. Para tentar eximir-se de possíveis responsabilidades pelo
esforço eleitoreiro questionável, o presidente atribuiu à Advocacia Geral da
União a tarefa de dizer o que pode ou não pode em relação aos dispositivos
legais que regem finanças públicas e eleições.
Não é a primeira vez que Bolsonaro utiliza
a AGU para defender interesses pessoais e não os da União. Recentemente, dispôs
da AGU para a defesa de Wal do Açaí, funcionária fantasma de seu gabinete
durante 15 anos, quando ele era deputado, que trabalhava em seus negócios com a
fruta em Angra dos Reis, e nunca foi a Brasília. A situação agora é mais grave:
o presidente, em campanha desesperada pela reeleição, pretende usar como escudo
contra as leis outra instituição do Estado.
Os R$ 38,75 bilhões fora do teto podem não
ser a última investida contra o limite de gastos, especialmente se vier junto
com um matreiro estado de emergência feito sob medida. Na ausência de ideias
produtivas para amenizar o impacto da alta internacional dos preços dos
combustíveis, Bolsonaro e os líderes do Centrão, que o sustentam, resolveram
distribuir dinheiro país afora para ver se melhoram as chances do chefe em
outubro.
Bezerra deixará de lado a PEC dos
Combustíveis para alterar a PEC 1/2022, do senador Carlos Favero, de mesmo
objetivo, com o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. A manobra
também tenta apagar a responsabilidade de Bolsonaro em criar gastos eleitorais
proibidos, ao buscar vender o mesmo pacote da PEC dos Combustíveis em outra PEC
e carimbá-la como uma iniciativa do Legislativo.
O governo aproveita-se do crescimento da
arrecadação (9,9% reais até maio), bem maior do que o dos gastos (5,8% reais no
período) para fazer o “bem” e ao mesmo tempo proclamar que não prejudica as
contas públicas. O governo central, porém, não tem superávit primário. O
déficit previsto antes do pacote é de R$ 65,5 bilhões e maio cravou rombo de R$
34 bilhões, o segundo maior da série histórica. A erosão fiscal vem pela conta
dos juros, que está disparando - o Tesouro paga em novas emissões 11,69% em 12
meses, com viés de alta. Despesas com juros subiram a 6% do PIB, mas não são
contabilizadas no déficit primário. A situação fiscal conta com a ajuda
equívoca da inflação. O denominador da relação dívida/PIB é o PIB nominal, que
deverá fechar o ano em 11,7% (segundo a Instituição Fiscal Independente),
reduzindo obviamente o resultado.
No curto prazo, a precariedade deste
equilíbrio pode ser camuflada. Mas não passa desapercebida nos mercados, que
têm elevado os juros, nem ao BC, que os aumenta para conter a demanda enquanto
o governo a estimula, retardando os efeitos da enorme carga de aperto monetário
já realizada.
Uma conta aproximada do estímulo
fiscal/parafiscal mostra que não é pouco dinheiro. O ano eleitoral começou com
duas emendas constitucionais que driblaram o teto e abriram espaço para gastos
de R$ 113 bilhões. O adiantamento do 13º salário para aposentados antecipou R$
34,6 bilhões à disposição do consumo antes das eleições. O corte do IPI de 35%
reduziu receitas em R$ 7,6 bilhões este ano (segundo a IFI). A liberação do
FGTS trouxe para a economia mais R$ 30 bilhões. Os Estados deixarão de
arrecadar (logo, o consumidor não pagará) algo entre R$ 50 bilhões a R$ 65
bilhões este ano com a redução de tarifas de energia, combustíveis,
telecomunicações e transportes a 17% - os Estados alegam que a conta é maior. A
redução do PIS-Cofins sobre combustíveis adiciona outros R$ 17,6 bilhões. E por
fim o pacote de Bezerra, elevado a R$ 38,7 bilhões.
Ainda que o cálculo seja aproximado, há
injeção direta de cerca de R$ 300 bilhões ou 3,3% do PIB. As previsões do PIB
para 2022 saíram de 0,3% para a casa dos 1,5% rapidamente. Se as manobras
financeiras irresponsáveis do presidente serão suficientes para reelegê-lo, só
o eleitor poderá responder. As pesquisas até agora não se moveram desde março e
não são favoráveis a Bolsonaro.
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