segunda-feira, 13 de junho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

É o empobrecimento

Folha de S. Paulo

Dados mostram desigualdade dramática em queda da renda e impactos da inflação

É notável como a recuperação da economia brasileira desde a recessão provocada pela pandemia não se traduz hoje em percepção geral de maior bem-estar, o que também tem consequências sobre a popularidade de Jair Bolsonaro (PL). Novos dados do IBGE sobre a queda do poder de compra em 2021 jogam luz sobre o fenômeno.

O Produto Interno Bruto teve expansão de 4,6% no ano passado, recuperando-se da queda de 3,9% provocada pela Covid-19 em 2020. Esse ganho, apurado a partir da produção de indústria, serviços e agropecuária, não se reflete nos valores declarados pelas famílias.

O rendimento domiciliar per capita —vale dizer, a renda disponível em cada domicílio, dividida pelo número de moradores— teve queda de 6,9% no período. Em valores corrigidos, caiu de R$ 1.454 para R$ 1.353 mensais.

Ressalve-se que essa pesquisa do IBGE, feita por meio de entrevistas em uma amostra de residências, tende a subestimar rendas como as oriundas de patrimônio e aplicações financeiras. Ainda assim, os números bastam para escancarar como as perdas de poder de compra se distribuíram de forma desigual na população.

Para a metade mais desfavorecida dos brasileiros, o baque foi muito maior, de 15,1%, e os valores mensais per capita encolheram de R$ 489 para R$ 415. Se considerados os 5% mais pobres, a queda chega a brutais 33,9%, de R$ 59 para R$ 39.

Em contraste, o topo da pirâmide social declara danos menores, de 6,9% no 1% mais rico, cujos rendimentos per capita ficaram em R$ 15.940 mensais —provavelmente subestimados, repita-se.

Grande parte da discrepância pode ser atribuída ao fim do auxílio emergencial de R$ 600 pago durante a pandemia, que contribuiu para um considerável incremento da renda dos mais pobres em 2020, mesmo durante a paralisação das atividades econômicas.

O outro fator principal é a escalada da inflação, que, como sempre, tem impacto muito mais dramático sobre o poder de compra dos que dependem do trabalho menos qualificado. Mesmo com alguma recuperação do emprego a partir do ano passado, os salários perderam para os preços.

A resposta da política pública foi precária. A criação do Auxílio Brasil se justificava pela necessidade de ampliar a rede de proteção social, mas serviu de pretexto para uma elevação geral de gastos públicos de objetivos muito menos nobres.

Se Bolsonaro não pode ser responsabilizado pela onda inflacionária global, seu governo agrava os efeitos e dificulta o controle da carestia ao desorganizar as finanças públicas e minar a credibilidade da política econômica. Os mais prejudicados têm domicílio conhecido.

Suspeitos de sempre

Folha de S. Paulo

STJ exige critérios para abordagens policiais, mas resposta das forças é incerta

"A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar", diz a lei brasileira.

O texto, no artigo 244 do Código Processual Penal, versa sobre a abordagem policial, que muitos brasileiros conhecem, alguns mais de perto, como "baculejo".

Apesar da exigência legal de fundada suspeita, resta pouco claro o que deve basear aos olhos da lei o critério das forças de segurança para abordar um suspeito.

Diante dessa opacidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou ilegal a busca pessoal ou em veículos fundamentada em impressões subjetivas por parte da polícia a respeito do indivíduo abordado, em especial quanto às suas aparência e atitude.

Recai, portanto, sobre os agentes o dever de justificar a abordagem de forma objetiva, em particular no que se refere às razões para que o alvo da ação pareça possuir objetos ilícitos. Sem isso, provas resultantes da busca são consideradas inválidas —como ocorreu no caso examinado pelo STJ.

Não se discute que a busca pessoal é tática importante de policiamento. Cumpre, porém, reforçar sua eficácia e evitar abusos.

Dados da Secretaria da Segurança Pública paulista apontam que, no primeiro trimestre de 2022, as polícias do estado realizaram 2,4 milhões de revistas pessoais, das quais 574 mil na capital. Daí resultaram 26 mil prisões em flagrante (1,09% das abordagens) e 2.608 armas de fogo apreendidas (0,1%).

Sabe-se que as abordagens estão sujeitas a vieses. Atitudes corriqueiras como parecer nervoso ou o uso de vestimenta simples podem, aos olhos da polícia, justificar uma suspeita, ao arrepio da lei.

O relatório "Elemento Suspeito", produzido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania com pesquisa do Datafolha, apontou que, na cidade do Rio, pretos e pardos são 63% dos abordados, enquanto representam 48% da população. Ressalve-se que nem todos os contatos relatados são negativos.

Em reunião recente, os secretários estaduais de Segurança Pública concordaram em manter as buscas pessoais, sem indicar com clareza como pretendem seguir o entendimento restritivo do STJ. A questão, ao que parece, ainda vai gerar mais disputas judiciais.

A aflição de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Pedido absurdo para que supermercados não subam preços, com aval do ‘liberal’ Guedes, mostra umpresidente atônito ante a possibilidade de derrota eleitoral

O absurdo apelo do presidente Jair Bolsonaro e de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, para que os supermercados congelem os preços até o fim do ano para conter a inflação revela um candidato em pânico diante das pesquisas que mostram seu principal adversário se distanciar na liderança. A despeito de tudo o que tem dito e feito para controlar alguns preços essenciais da economia, a posição de Bolsonaro no quadro eleitoral piora a cada novo resultado, pois suas pretensas soluções ou são danosas ou inócuas. Além disso, o apelo expõe um ministro que se dizia liberal, mas que, como cabo eleitoral de seu chefe, propõe o controle de preços, de que ele foi, com razão, um crítico incansável.

“Um apelo que faço aos senhores, para toda a cadeia produtiva, é para que os produtos da cesta básica, cada um obtenha o menor lucro possível para a gente poder dar uma satisfação a uma parte considerável da população, em especial os mais humildes”, pediu Bolsonaro, com sua sintaxe peculiar, ao falar para os participantes de um evento da Associação Brasileira dos Supermercados (Abras). Guedes foi mais enfático: “Nova tabela de preços, só em 2023. Trava os preços. Vamos parar de aumentar os preços por dois ou três meses. Estamos em uma hora decisiva para o Brasil”.

São frases que lembram os tempos do governo Sarney (1985-1990), que, sob a alegação de combater a inflação, tabelou e/ou congelou preços e apelou à população para denunciar estabelecimentos que estivessem praticando aumentos. Era o tempo dos “fiscais do Sarney”. Seus resultados mais óbvios foram a desorganização da economia e a hiperinflação.

Bolsonaro está obcecado com as pressões inflacionárias, por causa de seu forte impacto eleitoral. A maioria da população aponta o governo como responsável pela alta dos preços. Por isso, Bolsonaro viu na tentativa de conter os preços dos combustíveis um meio de dar alguma resposta aos eleitores prejudicados pela alta da gasolina, do óleo diesel e do gás de cozinha. Tem culpado os governadores, atribuindo a alta dos preços aos impostos estaduais, ou a Petrobras, por sua política de preços que considera “insensível”, omitindo ou ignorando deliberadamente os fatores externos que fazem subir a cotação do petróleo e seus derivados.

Sem saber o que fazer diante da inflação, que corrói suas pretensões eleitorais, o presidente parece estar perdido, como também parece estar seu ministro da Economia. Com o apelo para que o comércio varejista congele seus preços, passa a mostrar também desespero. Se a inflação continuar alta, parece argumentar, o populismo lulopetista pode voltar. 

Seu esforço para se mostrar competente e determinado na defesa dos menos favorecidos – cujo número, como se sabe, aumentou exponencialmente sob seu governo, como mostra o total de brasileiros que passam fome – tem sido comoventemente hercúleo. No entanto, longe de estar preocupado com a situação da população, que nunca levou em conta, Bolsonaro está mesmo preocupado consigo e com seus familiares.

Sabe que, quanto maior for a diferença entre ele e o líder das pesquisas eleitorais, o igualmente populista (com sinal trocado) Luiz Inácio Lula da Silva, maior será a perda de aliados, aqueles que lhe evitaram dificuldades políticas no Congresso em troca do domínio de boa parte do Orçamento da União. E já surgem sinais de desunião, para dizer o mínimo, até no grupo de confiança do presidente.

E eles surgem justamente no núcleo mais próximo do chefe do governo, o núcleo familiar. Têm sido frequentes informações de que os dois filhos mais velhos do presidente, Flávio e Carlos, já estão se desentendendo a respeito da qualidade das peças publicitárias da campanha pela reeleição. 

Ainda há tempo para que os responsáveis pela campanha de Bolsonaro ajustem os parafusos soltos, mas os obstáculos são muitos – a começar não pela inflação, mas pela cada vez mais evidente incapacidade do presidente de governar. Se a melhor resposta que Bolsonaro pode dar à alta dos preços é o congelamento, não há razão nenhuma para reelegê-lo. 

‘Greenwashing’, ou o mau capitalismo

O Estado de S. Paulo

A adoção de valores e práticas de ESG, reflexo das crescentes preocupações ambientais, não pode sercompromisso vazio

A crescente preocupação ambiental, impulsionada por evidências cada vez mais robustas sobre o risco de colapso do planeta se nada for feito, vem mudando o comportamento de consumidores, investidores, empresários e governos mundo afora. Com razão, a agenda da sustentabilidade avança, à medida que mais pessoas tomam consciência de que a proteção do meio ambiente envolve tanto os seus próprios hábitos de consumo quanto a atuação de agentes econômicos ao longo de todas as etapas de produção. 

Em maior ou menor grau, a humanidade vem encarando o desafio de conciliar desenvolvimento econômico e proteção ambiental. O que passa por decisões de ordem macro, como rever a matriz energética, e outras de caráter individual, que exigem mudanças de comportamento.

Diante de consumidores e investidores cada vez mais atentos à sustentabilidade, empresas abraçaram o conceito de ESG, sigla em inglês para “environmental, social and governance” (ambiental, social e governança, em tradução livre). A ideia é que o mundo corporativo assuma responsabilidades bem maiores em relação às questões ambientais, sociais e de governança. O que pode incluir, por exemplo, decisões como não comprar insumos de quem desmata, adotar práticas de compliance ou promover a inclusão social, de maneira que o perfil dos colaboradores reflita a diversidade da sociedade.

O pano de fundo, claro, é a sustentabilidade, começando pela do planeta, mas não só. O que está em jogo parece ser também o futuro dos próprios empreendimentos. A longo prazo, empresas que se guiam por ESG podem ser mais resilientes – além de atraírem a simpatia de clientes preocupados com a preservação ambiental, o que resultará em maior volume de negócios. 

Nesse cenário, infelizmente, não falta quem tente tirar vantagem da conscientização ambiental, travestindo-se de adepto de ESG, sem, na verdade, seguir a cartilha. O fenômeno se espalhou de tal maneira que ganhou até um termo próprio, também em inglês: greenwashing. A tradução literal seria “lavagem verde”, mas “maquiagem verde” soa melhor. O que, em bom português, quer dizer propaganda enganosa.

É isso que ocorre quando uma empresa dá a entender que faz mais pelo meio ambiente do que a verdade dos fatos permitiria afirmar. Sem dúvida, há diferentes formas de greenwashing: desde apregoar virtudes ambientais a um produto sem que necessariamente existam evidências disso até deliberadamente falsear dados para enganar o consumidor. Outra possibilidade é desenvolver um produto ou investir em uma ação ambientalmente responsável para encobrir ações devastadoras e sem compromisso ambiental por parte do mesmo grupo. O mesmo vale para fundos de investimentos que se apresentam com selos ESG ou similares − a fim de atrair a atenção de quem se preocupa com a agenda verde −, mas injetam recursos em projetos poluentes.

A economista e gestora de patrimônio Fernanda Camargo resumiu o problema em recente artigo no E-Investidor do Estadão. O título do texto diz tudo: A agenda ESG e o G de Ganância. A economista se referia a uma reportagem do jornal Financial Times sobre a recusa de investidores a apoiar maiores restrições ao financiamento de combustíveis fósseis em alguns dos principais bancos dos EUA. “O mundo está cheio de boas intenções e investidores gananciosos”, resumiu ela.

O presidente do Conselho de Administração do Santander, Sérgio Rial, bateu na mesma tecla. Conforme o jornal Valor, ele chamou de “hipocrisia ética” o comportamento de investidores que defendem a agenda ambiental, mas não estão dispostos a abrir mão de uma ínfima parcela da taxa de retorno, na hora de canalizar dinheiro para os chamados investimentos verdes no mercado de capitais. “O investidor não está preparado para receber menos por bônus verde”, disse Rial no Congresso Mercado Global de Carbono – Descarbonização & Investimentos Verdes, no Rio de Janeiro.

A busca pelo lucro é a essência do capitalismo e da livre-iniciativa, e os únicos limites para isso são os de caráter ético e legal. Assim, não há nada de errado quando empresas adotam medidas ambientalmente responsáveis sem abrir mão do lucro; o problema é quando empresas simulam preocupação ambiental apenas para lucrar. 

Brasil fica atrás na corrida mundial

O Estado de S. Paulo

Efeito da guerra e da covid é global, mas o desempenho brasileiro segue inferior ao da maioria dos emergentes e ricos

O mundo vai mal, com as condições econômicas afetadas pela invasão da Ucrânia e pelos novos casos de covid-19. O Brasil, sem surpresa, continua em condições piores que as da maior parte dos países emergentes e avançados, como estava antes da pandemia e da guerra iniciada pelo presidente russo, Vladimir Putin. O Banco Mundial até elevou o crescimento estimado para o Brasil em 2022, mas de 1,4% para 1,5%, pouco mais da metade da taxa prevista para a produção global, agora reduzida de 4,1% para 2,9%. Bem mais fraco é o desempenho calculado para a economia brasileira pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico: expansão de apenas 0,6% para o Produto Interno Bruto (PIB), um quinto do esperado para o produto mundial, 3%, contra 4,5% projetados em dezembro.

Mais inflação, piores condições de financiamento, menor crescimento e maiores provações para as populações mais pobres compõem o cenário apresentado pelas duas instituições. Segundo o presidente do Banco Mundial, David Malpass, em muitos países será difícil evitar a recessão. O mais urgente, agora, é evitar uma crise de alimentação ocasionada pela alta de preços, escreveu a economista-chefe da OCDE, Laurence Boone.

Inflação, desemprego elevado e perda de renda do trabalho estão entre os grandes obstáculos ao crescimento brasileiro neste ano, segundo a análise da OCDE. A forte retomada inicial da economia, favorecida no ano passado pela vacinação, perdeu impulso neste ano. O ritmo poderá aumentar para 1,2% em 2023, mas ainda continuará bem abaixo das médias global e do Grupo dos 20 (G-20), ambas estimadas em 2,8%.

Os preços ao consumidor continuarão subindo velozmente no Brasil, embora em ritmo inferior ao atual. As projeções da OCDE apontam variação de 9,7% neste ano e de 5,3% no próximo. São números pouco superiores aos do mercado, citados no boletim Focus do Banco Central: 8,9% em 2022 e 4,4% em 2023. Mas são bem mais altos do que aqueles previstos para quase todos os membros da Organização. Nove países aparecem com taxas maiores que as do Brasil, nas estimativas para este ano. A maior alta é a da Turquia (72%), seguida por aquela calculada para a Argentina (60,1%). O nono país em pior posição que a brasileira, nesse conjunto, é a Hungria, com inflação esperada de 10,3%.

Também se mencionam as incertezas da fase eleitoral e a piora dos sentimentos. Essas incertezas devem desestimular o investimento neste ano, baixando o ritmo de atividade e retardando o aumento da capacidade produtiva. Desajustes nas cadeias produtivas e aumentos de preços de matérias-primas estão entre os efeitos atribuídos à guerra na Ucrânia. O quadro inclui também a irregularidade das chuvas e suas consequências na agricultura e na geração de eletricidade.

Problemas podem variar, como o surgimento, por exemplo, da guerra na Ucrânia ou de uma pandemia, mas chama a atenção a constância, há cerca de dez anos, do desempenho brasileiro abaixo das médias internacionais. Eis um bom tópico para as eleições deste ano. 

Maquiar dados não acabará com tragédia ambiental na Amazônia

O Globo

Os dados que atestam o avanço da devastação na Amazônia, produzidos por órgãos oficiais de competência reconhecida, se tornaram ainda mais incômodos para o Planalto neste ano eleitoral. Por isso não surpreende que o governo procure sufocá-los a todo custo. É o que faz ao criar uma Câmara Consultiva Temática “para qualificar os dados de desmatamento e incêndios florestais”.

O objetivo, segundo a resolução publicada no Diário Oficial da União, é “diferenciar crimes ambientais de outras atividades, utilizando bases de dados oficiais já existentes”. A câmara será coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente e terá representantes das pastas de Agricultura, Defesa, Economia e Justiça. Poderá convidar especialistas de instituições públicas e privadas, além da sociedade civil, mas eles não terão direito a voto. Curioso é que o prazo de vigência é de apenas um ano.

A iniciativa despertou críticas de ambientalistas. Primeiro, porque estão fora da comissão órgãos como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que têm reconhecida capacidade técnica no assunto. Segundo, porque ela se propõe a fazer o que já é feito. O Inpe reúne há décadas dados detalhados sobre desmatamento, até em tempo real, permitindo uma fiscalização imediata. Além disso, essa burocracia pode atrasar a divulgação dos dados.

Desde que assumiu, Bolsonaro se empenha para desqualificar os dados do Inpe. No primeiro ano de mandato, demitiu seu diretor, o físico Ricardo Galvão, porque não gostou dos números apontados com base em métodos científicos. Disse que eles faziam campanha contra o Brasil. Galvão saiu, e as estatísticas só pioraram, porque é impossível mudar a realidade. Em 2020, o vice Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia Legal, chegou a afirmar que um opositor do governo no Inpe só divulgava dados negativos.

No universo paralelo de Bolsonaro, os sucessivos recordes de devastação na Amazônia não condizem com a realidade. No encontro com o empresário Elon Musk no mês passado, o presidente repetiu essa fantasia ao anunciar a intenção de usar a Starlink de Musk no monitoramento da Amazônia (depois não se tocou no assunto). Bolsonaro disse que contava com Musk para mostrar como a Amazônia “é preservada” e “quanto malefício causam aqueles que difundem mentiras sobre a região”.

No mundo real, os números do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mostram que, entre agosto de 2018 e julho de 2021, o desmatamento na região cresceu 57%. Cenário previsível, diante da leniência com madeireiros, grileiros e garimpeiros ilegais, do desmonte dos órgãos ambientais, do alívio na legislação e da redução das multas. Bolsonaro pode criar comissões para “qualificar” os dados ambientais que quiser, à revelia das instituições idôneas que há anos os coletam. Mas não adianta maquiar os números às vésperas da eleição. Os danos da política antiambiental não desaparecerão num passe de mágica.

Brasil precisa de mais racionalidade nas suas prisões

O Globo

A pandemia levou o Brasil ao recorde histórico de 919.651 presos. Entre abril de 2020 e maio de 2022, os presídios brasileiros receberam 61 mil novos detentos, aumento de 7,6% segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tal população encheria uma cidade como São Borja (RS). Saltaria facilmente a casa do milhão se somados os 352 mil mandados de prisão em aberto (24 mil de foragidos).

A primeira — e óbvia — conclusão é que não há espaço para tanta gente na prisão. As cadeias estão abarrotadas, e a chegada de novos presos cresce mais que as vagas. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), os presídios brasileiros dispõem de metade das necessárias (453.942). Desde o início do governo Bolsonaro, foram criadas míseras 12.587.

Claro que a impunidade é uma chaga nacional. Numa sociedade aterrorizada pela violência, bandidos que matam, roubam, estupram ou desviam verba pública precisam ser presos. Também é fato que a legislação penal brasileira é demasiado leniente com criminosos e bandidos poderosos que pagam a bons advogados para aproveitar brechas da lei. Por isso o pacote anticrime acertou ao tornar mais rigorosas as regras para progressão de regime. Mas, ao aumentar o tempo médio de encarceramento — de três a cinco anos para seis a dez anos —, ampliou também a população carcerária.

Simplesmente pôr mais gente na cadeia pode ser contraproducente, sobretudo quando se trata de gente presa por infrações menores, como porte de drogas ou pequenos furtos. O Brasil gasta com prisões o quádruplo do que destina à educação básica, segundo um levantamento da Universidade de São Paulo (cada preso custa R$ 1.800 por mês; cada aluno, R$ 470).

Dominados pelas facções criminosas, os presídios se tornaram fornecedores de mão de obra para o crime organizado. Traficantes e milicianos comandam seus negócios de dentro das prisões. Difícil imaginar que alguém se ressocializará num ambiente desses.

Cerca de 45% dos presos são provisórios, ainda não sofreram condenação definitiva, diz o desembargador Mauro Martins, responsável no CNJ por contar a população carcerária. Muitos permanecem presos mais tempo do que ficariam em caso de condenação. Isso acontece também porque os juízes tentam compensar as falhas da legislação penal, afastando do convívio social presos reconhecidamente perigosos.

O contingente de presos poderia ser menor se os presídios fossem controlados pelo Estado e reservados a criminosos que representam ameaça real à sociedade. Estima-se que 42% das mulheres e 24% dos homens presos estão atrás das grades por ter sido flagrados com pequenas quantidades de drogas, resultado de uma Lei Antidrogas que não distingue traficante de usuário.

O encarceramento maciço, é forçoso constatar, também não tem reduzido a criminalidade, como reconhece o próprio CNJ. Como os crimes não cessam, a tendência é os presos aumentarem indefinidamente. Mais que lamentar o tamanho da população carcerária (434 presos por 100 mil habitantes, que colocaria o país em nono lugar no ranking do World Population Brief), o Brasil deveria se perguntar se todos realmente precisariam estar num presídio, gerando custos ao Estado e servindo de mão de obra ao tráfico. Talvez a solução não esteja no aumento de vagas, mas em buscar um sistema de encarceramento mais racional e eficaz.

Antecipar receita futura do pré-sal cria ilusão fiscal

Valor Econômico

Governo federal enviou ao Congresso Nacional projeto de lei que, se aprovado, autoriza a venda, por meio de leilões, do excedente de petróleo e gás ao qual a União tem direito

Na semana passada, o governo federal enviou ao Congresso Nacional projeto de lei que, se aprovado, autoriza a venda, por meio de leilões, do excedente de petróleo e gás ao qual a União tem direito nos contratos de exploração de petróleo pelo regime de partilha. A proposta é polêmica, uma vez que, na prática, resultará na antecipação de receitas que só entrariam no caixa do Tesouro Nacional no futuro, à medida que, efetivamente, houvesse excedente de produção em relação ao previsto nos contratos originais.

O Brasil tem dois marcos legais de exploração de petróleo: o regime de concessão e o de partilha. O primeiro estabelece que todo o petróleo encontrado na área leiloada pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) pertence à empresa ou consórcio que venceu o leilão. Neste modelo, a União é remunerada pelo valor da outorga e pela cobrança de participações especiais e royalties ao longo da exploração daquele campo - as PEs e os royalties são pagos também aos Estados e municípios onde estão localizadas as áreas de exploração.

O regime de partilha foi instituído no início da última década. Como a quantidade de petróleo encontrada nos primeiros campos de pré-sal leiloados superou com folga as estimativas, foi estabelecido na lei que instituiu o novo regime que os excedentes descobertos são propriedade da União.

Até o ano passado, os excedentes foram modestos e, por isso, não chamaram a atenção de Brasília. Chama-se óleo-lucro a parte que o governo federal tem direito a receber quando se comprova a ocorrência de excedentes na extração de petróleo e gás natural. Em 2021, o óleo-lucro somou apenas R$ 1,2 bilhão, mas, novas estimativas indicam que possa a chegar a R$ 92,26 bilhões em 2030, o equivalente a 0,9% do PIB.

A estimativa é a de que, em 2030, dois terços da extração de petróleo do Brasil venham do pré-sal. Especialistas calculam que a receita de óleo-lucro contribuirá para dobrar a receita bruta da União com o setor extrativo mineral até o fim desta década, quando comparada ao período entre 2011 e 2020.

Da maneira como o governo Bolsonaro pretende antecipar receitas futuras do óleo-lucro, conforme indica no projeto de lei enviado ao Congresso, essa receita pode somar R$ 332,1 bilhões no período de 2023 a 2030, em valores de 2021, considerando o preço barril do petróleo (Brent) a US$ 65 a partir de 2024. Equivale a 3,8% do PIB de 2021. Este cálculo é do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre).

As projeções consideraram as previsões de produção divulgadas pela PPSA, a estatal responsável pela comercialização da parte da União no petróleo e gás produzidos no pré-sal. “Além de haver grau de contingência envolvido, essas receitas começaram a se materializar no ano passado, mas passarão a ganhar mais relevância na segunda metade desta década”, disse Borges ao Valor.

O projeto, segundo justificou o governo, pretende desvincular a arrecadação da destinação estabelecida na lei do pré-sal para gastos com educação e saúde.

O problema é que objetivo do governo pode ir além do aspecto positivo da proposta. Bráulio Borges lembra que ao fim de 2021 a flexibilização no teto de gastos da União envolveu o adiamento da despesa com precatórios. Essa conta, lembra, deve ser paga em 2027. Se houver antecipação de receitas, essa despesa virá de uma só vez e há risco de o governo federal não ter mais o acréscimo de arrecadação que o aumento de produção de petróleo pelo regime de partilha permite projetar.

Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre, aponta que toda antecipação de receita é uma forma de antecipar resultado fiscal ou de antecipar recursos para financiar despesas.

Segundo o Ministério da Economia, a cessão de direitos da União só poderá se concretizar “se houver anuência do consórcio operador do respectivo contrato”. O objetivo da regra é “garantir o respeito aos contratos de partilha e a segurança jurídica da transação”.

A pasta ainda esclarece que as receitas obtidas “não estarão vinculadas ao Fundo Social”. “Essa medida é importante porque, caso mantida essa vinculação, haveria ineficiência na gestão fiscal”, diz o ministério, afirmando que, “dado o volume de recursos esperados, eles não teriam contrapartida de previsão de despesas no Orçamento”. “Porém, não haverá qualquer prejuízo à execução das políticas públicas abrangidas pelo Fundo Social, uma vez que os recursos serão alocados normalmente no Orçamento público conforme as prioridades definidas pelo Congresso Nacional”, diz o ministério.

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