Os problemas estão, primeiro, na falta de sintonia e mesmo hostilidade de largas faixas do eleitorado perante o novo governo (as eleições e a transição não cerziram as feridas) mas também perante as instituições e a própria sociedade civil. Aí reside uma anomia latente, que precisa ser superada pela difícil combinação de firmeza institucional e moderação política. Reconectar e apaziguar essas faixas é condição para a estabilidade da república e para a dinâmica da democracia. Soluções possíveis para esse problema estão mais afetas a uma agenda de governo e à formação e consolidação de uma oposição democrática. É fundamentalmente uma questão a ser resolvida por uma política voltada a seus misteres competitivos e representativos e atenta a vasos comunicantes entre si e a institucionalidade do Estado.
Um segundo problema é o que a jornalista Maria
Cristina Fernandes apontou em artigo publicado na terça-feira seguinte às ações
golpistas do último domingo, dia 08/01 (Só falta a Lula tomar posse como comandante
em Chefe – Valor Econômico, 10.01.23) e que se tornou assunto de inúmeras
outras análises, trazendo a público uma variedade de pontos de vista: a
relação tensa do novo presidente, do seu partido e de parte do seu governo com uma
parcela significativa de oficiais das cúpulas militares. Em face disso, o que,
afinal, significa Lula “tomar posse” como comandante-em-chefe das forças
armadas?
No meu entendimento – que suponho
convergente com o da jornalista - trata-se, do ponto de vista político (que
aqui não é o principal), de assumir uma relação que deve ser fluente pela
clareza, firmeza, permanente diálogo e respeito recíproco entre quem lidera e
quem cumpre missões. O imprevisível tempo que levará para a melhora ocorrer (se
ocorrer) não deve comprometer, confundir ou desvirtuar, como se deu durante o
governo Bolsonaro, a relação institucional (essa sim, a principal e
imprescindível para o interesse público) do poder civil, assentado no sistema
político e jurídico, com as forças armadas. Por esse entendimento fixa-se, como
marca de giz, uma questão de Estado, não de governo, uma relação
institucionalmente regrada por critérios não políticos, mas para cuja fluência
benigna um governante político, enquanto tal, contribui, ou não, a depender da
sua postura nessa interação, nos dois níveis. Dou início, por esse segundo
tema-problema, a uma tentativa de análise mais detalhada do que se passa nesse
marcante janeiro. Ao final retornarei ao tema da presente anomia política e da
necessidade de reconectar, ao ambiente agregador de uma nação democrática e
plural, fios que estão desencampados.
Na discussão pública aparece, vinda, geralmente,
do campo da esquerda, lato sensu, interpretação distinta da que aqui
resumi sobre a demanda expressada no título do artigo de Maria Cristina. Também
em sentido amplo, ou a grosso modo, essa outra interpretação é a de que “tomar
posse” significaria, no caso de Lula, enquadrar verticalmente os militares,
dando, por um suposto contraste, um ponto final no que ocorreu durante os anos
de Bolsonaro. Seria, em tese, um contraponto polar, como se o ciclo
bolsonarista houvesse, de fato, valorizado em demasia as forças armadas como suas
tutoras quando, em verdade, tentou dividi-las e enfraquecer, pela politização,
a disciplina que as caracteriza (o resultado da difusão dessa narrativa polarizadora
pode ser perverso, mas isso tentarei argumentar adiante). Em algumas versões
mais duras, a demanda por esse modo de “tomar posse” equivale a não ter visão
lateral para relaxamento de tensões, através de diálogo com vistas a uma melhoria
das relações de confiança. Ao contrário, de acordo com essa visão, o diálogo
levaria certamente a concessões à suposta tutela militar sobre a vida política
do país. Num limite ainda mais extremo, a expressão “desmilitarizar”, seria
aplicada não só a funções civis de governo, mas também a missões institucionais
de Estado. Daí a ideia de extinguir cargos e órgãos ligados à segurança e tradicionalmente
vistos como de cunho militar, assim como cancelar ritos de grande valor
simbólico para as forças armadas, como ocorreu na posse de 01.01.
Esse e vários outros exemplos foram
lembrados pelo ex-ministro Aldo Rebelo, em instrutiva entrevista à CNN na noite
de 11 de janeiro. Tanto ele quanto os também ex-ministros civis da Defesa
Nelson Jobim, Jacques Wagner e Raul Jungmann, assim como o militar Fernando
Azevedo, têm sido precisos em apontar, através de palavras e/ou de gestos
prudenciais, a propriedade e conveniência de se combinar firmeza institucional
e moderação política para lidar com problemas entre poder civil e corporação
militar, na conjuntura inicial de um governo que se dispõe, explicitamente, à reconstrução
nacional.
Os acontecimentos do dia 8 e seguintes –
conspiração e atos golpistas; firmes ações unitárias para derrotar, mais uma
vez, o golpismo - resultaram, até aqui, em fortalecimento da democracia.
Emergiu, porém, uma agenda de estado em aberto, para concorrer, em urgência, como
agenda distinta, ao modo de uma retroalimentação mútua, com uma agenda
governamental esboçada por um ministério ainda em seus primeiros passos e que
é, ele mesmo, fonte de grande expectativa, feita de esperanças e temores. Se a
incerteza já marcava essa agenda de governo e a fazia despertar grande atenção
do público e da mídia, com a emergência da segunda agenda a incerteza aumenta e
o contexto fica ainda mais complexo. Reforça-se a percepção, já presente nos
dois meses da transição de governo, de que a democracia ainda corre perigos sérios
no Brasil, senão imediatos, ao menos num médio prazo não bem delineado.
Esse é o sentido de um também certeiro
artigo do cientista político Fernando Abrucio (A batalha pela democracia
ainda não acabou – O Globo, 10.01.23). O ponto de observação – os desafios
e a conduta das instituições e da sociedade diante da questão democrática - é
mais panorâmico que o do artigo de Maria Cristina, que tem foco na relação
entre o presidente Lula e os militares. Mas suas percepções, longe de
conflitarem, complementam-se. Quanto ao texto de Abrucio a única ressalva que
faço é simbólica, quase estética, quanto ao uso, no título, da palavra batalha.
Ela talvez sugira, além de enfrentamento, uma ideia de provisoriedade e com
isso deixa de comunicar o
caráter intermitente da busca de preservação e aprofundamento da democracia, um
gerúndio que sugere convívio permanente com circunstâncias adversas. Batalha,
rotina, seja lá que nome o entendimento de cada um dê à lida cotidiana com a
instabilidade relativa da democracia, o ponto a enfatizar é que não acabou nem
acabará, no Brasil e em todo lugar. Ameaças e perigos constituem desde sempre a
experiência democrática, mais ainda a sua versão poliárquica, na qual vivemos.
A intensidade contemporânea dessas ameaças e perigos é um fato global. Seria insensato
- e impossível - suspender juízos críticos aos governantes democráticos à
espera do momento em que esse fato desapareça da cena com a derrota completa,
ou duradoura, dos inimigos da democracia. Ela não ocorrerá. Alívios tendem a
ser sempre como o que acabamos de ter: breves e seguidos de novas incertezas,
criadas por inimigos e também por condutas, reativas ou estratégicas, de amigos
da ordem democrática, que não são vacinados contra erros. Devemos aceitar as incertezas
como inerentes ao processo e nos manter ativos no cultivo do que vivifica a
democracia. Crítica, por exemplo.
Como todas as pessoas democratas, sinto
alívio pela não reeleição de um autocrata. Nesse preciso sentido, penso que as eleições
tiveram o melhor resultado possível. A crítica que se faz útil neste momento
não é ao resultado das urnas, pois os desdobramentos desse tipo de disposição
podem levar a, ou quando menos estimular, acontecimentos como os do dia 8. Mas
há um novo governo em Brasília, dentro e fora dele há fatos novos ocorrendo e
em relação a esses fatos decisões estão sendo tomadas. Cabem, sim, escrutínio
meticuloso e análise independente das decisões e fatos, do governo e demais
atores políticos. O conteúdo do artigo de Abrucio é pano de fundo adequado a
isso e também serve aqui, nesta coluna, de mote para transitar nos vasos
comunicantes entre a agenda de Estado que busca estabilidade institucional e a
do atual governo, com o qual contracenará uma futura oposição política, da qual
o extremismo de direita tende a ser uma ala identitária ruidosa, mas não
fatalmente a mais relevante, do ponto de vista eleitoral. Governo e oposição
democráticos podem, juntos e enquanto competem politicamente pelo aval
eleitoral, encarar o tema da anomia e da reconexão dos fios da nação.
Nas circunstâncias objetivas do vértice em
que as duas agendas se encontram, Lula poderia ter, como chefe do Poder
Executivo, uma relação mais mediatizada por uma frente de aliados e partidos,
para que pudesse gastar mais energias e usar seu peso pessoal nas questões de
Estado. Quanto mais o presidente quiser ser (ou for pressionado, com sucesso, a
ser) o centro de gravidade da política econômica, social e até das setoriais,
mais se mostrará a lacuna de poder que Maria Cristina Fernandes apontou. Seu
papel central na agenda de Estado importa em missões que não pode nem deve
terceirizar ao STF ou ao Congresso. Precisará ser cada vez mais Presidente da
República e menos chefe onipresente do governo. Nesse plano da agenda da
política governamental interna ao país, Lula tem plenas condições de se
preservar para intervir diretamente apenas se e quando houver, em sua equipe
ministerial, dissensões sobre políticas públicas que o ministro-chefe da Casa
Civil não possa coordenar. Ou então dificuldades não resolvíveis pelo ministro
das Relações Institucionais na viabilização política, junto ao Congresso ou à
sociedade, das políticas relevantes consensuadas. A ação do líder pode ser
decisiva sem ser frequente.
Essa possibilidade sustenta-se, em parte,
na existência de uma frente política com a qual o presidente pode, se quiser,
estreitar mais laços de afinidade, cooperação e confiança, agindo para atenuar sabidas
ambições hegemônicas presentes no comando e também na militância do PT. Pode
ter ajuda, caso procure, de quadros do partido que desenvolveram habilidade e
mesmo alguma sintonia de atitude com políticas de aliança bem mais amplas do
que aquelas políticas de identidade partidária que marcaram as origens
petistas. Essas políticas autorreferentes ensaiaram um revival durante
e, mais ainda, após os governos de Dilma Rousseff e os contextos do impeachment,
da Lava Jato e da prisão de Lula. É evidente, e até certo ponto lógico,
que novos laços identitários e refratários a alianças amplas se formaram na
lida com essas experiências de purgatório. Mas permitir a expansão dessa lógica
agora, na presunção de que a facção redimida acessará o céu, seria algo capaz
de fazer governo e presidente descerem a infernos políticos que a imaginação
pode não alcançar, mas uma razão contida certamente pressente.
Outro fator que permite considerar a
hipótese benigna é a qualidade política e técnica de uma parte importante do
ministério, aquela que cuida das cruciais áreas econômica e social. Para ficar
no primeiro escalão, consideremos que ali estão, no ministério do Planejamento
e no da Indústria e Comércio duas personalidades políticas relevantes externas
ao PT, ninguém menos que, respectivamente, a candidata que chegou em terceiro
lugar na disputa presidencial e o próprio vice-presidente da República. Além do
peso político de ambos e da vasta experiência administrativa de Alckmin, ele e Simone
Tebet têm, a seu favor, perfis políticos respeitáveis, que não desprezam -
valorizam - os componentes técnicos, além de já terem dado fartas demonstrações
de engajamento resoluto, atando, por ora, seus destinos políticos ao do
governo. Consideremos também que nas
duas áreas há três quadros petistas (Fernando Haddad, Camilo Santana e
Wellington Dias, na Fazenda, Educação e Desenvolvimento Social) igualmente respeitáveis
e com grande experiência política e administrativa, dois deles senadores
eleitos e todos incluídos entre os quadros de atitude política mais ampla a que
aludi há pouco, dando o desconto de que nunca é pequeno o teor de paixão
identitária que afeta políticos e militantes petistas. Há ainda Ester Dweck,
ministra da Gestão, também petista e de excelente reputação técnica. Para
completar a moldura com bastante brilho tem-se a presença não partidária de uma
ministra da Saúde com o gabarito profissional, institucional e moral de Nísia Trindade.
Atuando transversalmente nessas áreas também estará, supõe-se, a ministra do
Meio Ambiente, Marina Silva, outra personalidade estelar do ministério. Sua
pasta será anfíbia, com papel relevante na agenda de governo, porém, mais ainda,
na de Estado.
Por qualquer ângulo que se olhe, esse
recorte do ministério mostra um time de primeira linha. Somente um ceticismo
radical, ou uma torcida negativa, poderia cravar a aposta de que essas pessoas
públicas optarão por bater cabeça e não por cooperarem pragmaticamente para o
êxito do governo, que interessa a todas elas e a cada uma, além de ao país. As
presumidas ambições, de várias dessas pessoas, a sentarem um dia na cadeira em
que hoje se senta Lula não é prenúncio de desastre, mas de prudência. Diante de
conflitos que certamente haverá, por colisão de ambições ou ideias, o também
petista que é ministro-chefe da Casa Civil possui predicados equivalentes aos de
seus três correligionários para fazer a coordenação política e administrativa,
em sintonia com o presidente. Quando ele não puder, Lula interviria para
resolver pendências sérias e se momentos de impasse se amiudarem, haveria
adultos na sala para mudar o método ou o centro de coordenação, antes de se cortar
na carne um time de primeira. A medida do êxito de Rui Costa na missão
coordenadora e de anteparo ao presidente será dada pela sua habilidade em
aparar arestas e pela de não introduzir algumas em razão de suas presumidas
ambições políticas próprias, também legítimas, mas que para se realizarem não
podem, ao contrário das dos ministros do econômico e do social, serem
satisfeitas através de protagonismo seu nessas duas áreas.
Uma boa estreia foi o anúncio do primeiro
pacote para equilibrar as contas do governo. O ministro Haddad guiou-se pelo
realismo e pela moderação e evitou o populismo, no que foi secundado por Simone
Tebet e Ester Dweck, sem sequer nuances visíveis entre ambas, o que em si já é
animador, diante das posições originais de uma e de outra. Já estava previsto
que esse primeiro pacote se concentraria na busca de aumento de receitas e não
no corte de gastos, por ser um caminho mais curto e não dependente de complexas
negociações políticas. Críticos um tanto apressados viram aí opção programática
de cunho doutrinário ou o velho e pragmático apetite patrimonialista. É
possível, mas há maior número de sinais em contrário. O ministro admitiu que
haverá frustração de parte das receitas adicionais previstas no pacote, avisou
que pode não haver alteração no salário mínimo agora e no dia seguinte iniciou
conversas de quem quer, de fato, viajar ao outro lado da lua, para fazer a
reforma tributária andar mais rápido do que céticos e críticos supõem. Foi só uma estreia, quase um treino, mas foi
além de um mero ensaio de orquestra porque a cacofonia foi praticamente zero. A
área social ainda não pisou em campo coletivamente, seja separada da área
econômica ou em conjunto com ela. Mas poderá interagir mais facilmente se a
área econômica se mantiver afinada, em cooperação. É torcer para que Lula deixe
essa equipe jogar solta e não altere o samba por iniciativa própria ou por
pressão de companheiros alérgicos a consensos e a diálogos - ainda que aos
soluços - com liberais em economia.
Na hipótese da divisão mediatizada de
trabalho entre Lula e seus ministros dessas áreas de governo vir a ser adotada,
a outra agenda, a de Estado, agradecerá. Lula precisará exercer aí um
protagonismo intransferível na complexa e delicada coordenação entre os
ministérios da Justiça, da Defesa, da Segurança Institucional, da Cidadania e
Direitos Humanos e o das Relações Exteriores, tendo, no caso desse último, a
participação em cooperação intensa, espera-se, da titular do Meio Ambiente e também
da agregação internacional que o ministério da Cultura puder fazer, caso se
capacite para tanto.
Tudo isso (ou parte disso) poderia ser uma
tradução prática da demanda de que Lula "desça do palanque" para conquistar
a liderança do sistema de poder civil e uma autoridade segura e confiável sobre
a corporação militar. Ele é quadro constituinte do sistema e seu maior
representante legítimo, o que lhe dá o dever e a condição de comandar corporações
de Estado, civis e militares, afetas à Presidência. O presidente da República,
ainda mais em contexto conflitivo como o atual, não é ator político capaz de se
relacionar institucionalmente e eficazmente com elas e com o sistema jurídico-político
do poder civil, se falar e agir como aliado, ou como adversário de uma dessas
partes. Polo, parte, partido são termos cujos significados precisam tornar-se
bissextos na gramática presidencial.
Posso adivinhar leitores e ouvintes
julgando-me uma Poliana. Eu mesmo hesito diante desse juízo. Mas considero a
mensagem deste artigo fundamentalmente realista. Assim como seria impossível, a
partir de 2003, Lula governar o Brasil caso ainda fosse o Lula de 1989, do
mesmo modo ele não conseguirá, a partir de 2023, governar para valer o Brasil
se ainda for o Lula de 2003. Ficará preso a uma nostalgia e arderá num fogo
amigo que pretende fazê-lo andar no tempo tão somente para retomar e completar
o mandato interrompido de Dilma Rousseff. O momento cobra do inquilino do
Planalto uma renascença, não uma ressurreição. Sabemos que é muito difícil,
mas, dentro do que é possível, não há algo melhor a desejar. Ou orar. Assim, acredito ser possível [com o tempo e o Caetano Veloso de 1989]
reunirmo-nos num
outro nível de vínculo. Ou, ao menos, acredito que vale – quem puder - trabalhar por
isso.
No tempo presente, o presidente Lula está
sendo testado e acha-se em situação de xeque, ainda que esteja, por ora,
protegido por torres e bispos, além de cavalos fazendo L. Para evitar um xeque-mate
terá que mover muito e proteger muito a democracia, sua rainha, sem a qual não
terá futuro no tabuleiro onde nós, peões, contamos muito nas eleições, mas não
tanto na hora do mate, caso venha. Pensemos
sem catastrofismo: a reação forte e precisa das instituições e da sociedade
civil aos fatos do domingo fortaleceu a posição da Presidência, assim como as
do Congresso e do STF. A Lula da Silva deu
mais uma chance de protagonismo num plano acima de competições e facções. É
pegar ou largar.
*Cientista político e professor da UFBa
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