A democracia sobreviveu, mas riscos persistem
O Globo
Sem revanchismo, omissões e conivência
diante de ataques golpistas precisam ser investigadas
Passada uma semana do mais violento ataque
à democracia e às instituições brasileiras desde a redemocratização nos anos
1980, o país pode tirar algumas conclusões, mesmo que polícias e órgãos de
controle ainda se dediquem à tarefa óbvia de apurar responsabilidades. A
primeira delas é que, a despeito dos danos, a democracia resistiu bravamente.
Foi simbólica a cena dos chefes dos três Poderes descendo a rampa do Palácio do Planalto juntos, em meio aos escombros deixados pelos vândalos bolsonaristas. Desde o início, Executivo, Legislativo e Judiciário reagiram de forma uníssona para condenar os “atos terroristas”. Ganhou peso a resposta firme de governadores dos 26 estados e do Distrito Federal (DF), independentemente de colorações partidárias.
O repúdio às ações criminosas em Brasília
veio de toda parte, de dentro e de fora do país. Empresários, políticos, chefes
de Estado e de governo, entidades multilaterais como ONU e OEA e até o Papa
Francisco se solidarizaram com o Estado brasileiro, isolando a minoria
golpista. Mesmo rachada, a população brasileira se mostra unida contra a
barbárie. Pesquisa de opinião revelou que a imensa maioria repudia os atos
insanos de 8 de janeiro.
Para que o golpe fracassasse foi
fundamental a resposta rápida e firme do Judiciário. Decisões monocráticas do
ministro Alexandre de Moraes, do STF, como o afastamento do governador do DF,
Ibaneis Rocha (MDB), e os pedidos de prisão do ex-ministro e ex-secretário de
Segurança do DF Anderson Torres e do ex-comandante da PM do DF Fábio Augusto,
foram avaliadas e referendadas pelo plenário da Corte, como deve ser. A
tolerância zero com atos antidemocráticos que bloqueiam estradas ou depredam
patrimônio público também se mostrou eficaz para impor limites aos baderneiros.
Significa que está tudo bem? Não. A
situação ainda exige cautela, pois as ameaças persistem. Está claro que não
foram apenas inépcia e omissão das autoridades que empurraram as hordas
golpistas para a Praça dos Três Poderes. Foi também conivência de quem deveria zelar
pelo patrimônio público. São inaceitáveis as imagens de PMs tirando selfies com
manifestantes enquanto Brasília era saqueada. Ou de militares agindo como meros
espectadores.
“Nosso sistema de freios e contrapesos foi
absolutamente atropelado”, diz o cientista político Carlos Melo. “Instituições
importantes, como as Forças Armadas e a Polícia Federal, foram aparelhadas. A
sociedade não pode permitir que instituições impessoais sejam sequestradas por
quem está no poder. É preciso mais cobrança e mais vigilância”, diz Melo.
Causam perplexidade também as falhas gritantes dos sistemas de inteligência e
segurança. É inacreditável que seja tão fácil invadir, depredar e profanar. É urgente
que se reforce a segurança, e não só das instituições. A derrubada de torres de
transmissão mostrou que o estoque de atos terroristas não se esgotou.
As polícias já prenderam mais de mil
golpistas, e estão em curso investigações para descobrir quem organizou,
financiou ou incentivou os ataques. É fundamental que as apurações sejam
transparentes e que se dê amplo direito de defesa aos acusados, sem qualquer
espaço para revanchismo. No afã de proteger a democracia, não se pode atropelar
a lei. Quanto mais provas consistentes forem colhidas, maior a certeza de que
os responsáveis serão punidos com o rigor necessário.
Ao assumir a Petrobras, Jean Paul Prates
deve evitar os erros do passado
O Globo
Planos de fundo de equalização e refinarias
são criticados. Já ênfase em renováveis é destaque positivo
Se tudo ocorrer dentro do previsto pelo
governo federal, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) assumirá nos próximos dias
a presidência da Petrobras, a maior empresa do país, estatal controlada pela
União, mas com quase metade das ações em mãos privadas, dentro e fora do país.
É uma empresa pública, no sentido mais amplo do termo, e por isso o governo de
turno não deve tratá-la como se fosse de sua exclusiva propriedade.
Qualquer prejuízo da empresa é coberto pelo
Tesouro, ou seja, pelos contribuintes. Nas gestões passadas do PT, a Petrobras
foi aparelhada e administrada como um departamento do gabinete presidencial. O
resultado foi financeiramente desastroso para a sociedade e politicamente
nocivo para o PT.
Economista e ex-secretário de Energia do
Rio Grande do Norte, Prates pretende criar um fundo de equalização de preços dos
combustíveis para atenuar o impacto interno de picos externos nas cotações do
petróleo. Há muitas discordâncias sobre a conveniência de tal medida. David
Zylbersztajn, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), considera
que esses fundos apenas mascaram subsídios pagos por toda a população. “Por que
não fazer fundos compensatórios para os aluguéis ou a carne?”, pergunta ele.
Até agora, não são animadoras as intenções
e ideias que saem do núcleo petista. A primeira iniciativa de Luiz Inácio Lula
da Silva foi pedir à Petrobras para suspender o programa de venda de ativos
iniciada em 2015, com Dilma Rousseff ainda no Planalto, que conseguiu reduzir
pela metade a dívida de US$ 100 bilhões. Outro exemplo é o projeto do Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaguaí, hoje uma fábrica de
lubrificantes perdida em um terreno que bateu o recorde de terraplenagem no
Brasil.
O governo diz querer investir em novas
refinarias. O histórico não é bom. A Abreu e Lima, em Pernambuco, surgiu de uma
conversa entre Lula e o caudilho venezuelano Hugo Chávez, que se comprometeu a
colocar a PDVSA, petrolífera de Caracas, como sócia. Não cumpriu a promessa, e
a Petrobras teve de executar sozinha o projeto. Em 2016, o Tribunal de Contas
da União (TCU) calculou que, do investimento de US$ 26,2 bilhões feito pela
estatal, aproximadamente US$ 19 bilhões não retornarão aos cofres da Petrobras durante
a vida útil da refinaria.
A grande ameaça à Petrobras e aos seus
acionistas é a aplicação da velha fórmula do Estado indutor. Um dos erros que
podem ser cometidos é a estatal voltar a investir em fertilizantes. A melhor
alternativa seria o governo atrair grupos privados.
Correta é a intenção de fazer a Petrobras dar prioridade à geração de energias limpas (eólica e solar), no que ela já está atrasada. Entre as grandes empresas de petróleo, é uma das que menos progrediram na área da transição energética.
Processar e punir
Folha de S. Paulo
Procuradoria, que pediu investigação de
Bolsonaro, é fundamental contra golpismo
A conversão do bolsonarismo num movimento
subversivo violento, culminada há uma semana com a depredação das sedes dos
três Poderes, esgota qualquer margem de dúvida que ainda poderia haver sobre a
necessidade de reprimir os extremistas que, em funções públicas e
representativas, agridem o Estado democrático de Direito.
A triagem deveria começar nos próprios
partidos políticos, até porque no Brasil eles se sustentam com bilionárias
transferências dos pagadores de impostos, que exigem representação democrática.
A acomodação corporativista que nas casas
legislativas bloqueia punições e cassações precisa ser desfeita em nome da
intransigência com a promoção do autoritarismo. O ódio e o nojo à ditadura, na
fala memorável de Ulysses Guimarães (1916-1992), também deveriam nortear os
juízos políticos sobre quebra do decoro parlamentar.
Mas é na operação do direito, sobretudo na
Procuradoria-Geral da República, que uma mudança de conduta poderá render os
mais duradouros frutos contra os líderes da barbárie encastelados em posições
privilegiadas de Estado. Augusto Aras, por muito tempo complacente com tudo o
que concerne a Jair Bolsonaro (PL), dá indicações no sentido correto.
O procurador solicitou ao Supremo Tribunal
Federal abertura de inquérito
contra três deputados bolsonaristas eleitos em outubro,
suspeitos de incitarem a baderna golpista de 8 de janeiro. Na sexta (13), foi a
vez do próprio Bolsonaro, com pronta
concordância do STF.
A Procuradoria também iniciou procedimento
para identificar e responsabilizar a elite do movimento subversivo, em especial
entre os que detêm prerrogativa de foro, caso de deputados e senadores.
A atuação do governador afastado do
Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e do ex-secretário da Segurança Pública
Anderson Torres é objeto de apuração formal, por parte da PGR, no Superior
Tribunal de Justiça e no Supremo.
Se desta vez for mesmo para valer o
conjunto de iniciativas do órgão máximo da acusação penal no Brasil, uma série
de denúncias se sucederá contra os líderes da suposta organização que tentou
sabotar a democracia brasileira.
Se assim for, os processos subsequentes, no
plenário da corte constitucional, prometem ser a resposta firme do regime que
os incautos ousaram tentar derrubar. Aos acusados será garantido o que nenhuma
ditadura oferece —o contraditório e o devido processo legal—, mas não a
proteção que tiranos franqueiam a seus serviçais.
Processar, julgar e punir os que
encabeçaram a aventura golpista vai afastá-los da vida pública e interromper a
alimentação do monstro autoritário no Brasil.
Código Civil 2.0
Folha de S. Paulo
Lei que rege relações privadas foi, em
2003, inovação tardia, a ser atualizada
O Código Civil regula, literalmente, a vida
e a morte dos brasileiros, além de todos os assuntos privados que ocorrem entre
estes dois eventos, como casamento, contratos e herança. A lei, que neste ano
completa duas décadas em vigor, já nasceu ultrapassada, apesar
de conter aspectos inovadores à época.
Por sua abrangência temática, era de
esperar que qualquer revisão completa demoraria anos —o que de fato ocorreu. A
lei formulada em 2002 e implementada em 2003 substituiu a anterior, de 1916,
após anos de debate no Congresso.
O anacronismo do diploma do século passado
era patente, sobretudo em questões de igualdade de gênero, ao privilegiar os
direitos dos homens nas relações familiares.
Parte do aspecto obsoleto foi resolvido
pelo tempo, com regras caindo em desuso na prática. Anulação do casamento
porque a mulher não é virgem, expressão crassa de machismo, já estava
abandonada antes da revisão de 2003.
Se houve avanços na equidade de gênero, o
diploma peca até hoje por não reconhecer expressamente outros modelos
familiares.
O descompasso entre a letra da lei e a
sociedade em constante mutação fica explícito nos pontos em que o Código Civil
é silente. Faltam regras sobre famílias homoafetivas, reconhecidas pelo Supremo
Tribunal Federal em 2011, e sobre famílias monoparentais (de filhos criados por
apenas um genitor).
Temas como multiparentalidade, requisito de
manutenção da fidelidade, adoção por casais homoafetivos, entre outros, são
objetos de debate hoje no Judiciário diante da inação do Congresso —a quem, de
fato, compete formular e alterar as leis do país.
Não é apenas a seara familiar que carece de
renovação. Normas como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, precisam
ser integradas ao código. Desafios atuais como a revisão de contratos quando há
alteração radical de circunstâncias requerem mais dinamismo —assim mostraram os
desafios enfrentados durante a pandemia e seu impacto econômico.
Após 20 anos, o Código Civil mostra rugas
do tempo, algumas delas presentes desde o seu início, outras adquiridas com o
passar dos anos diante de mudanças socioculturais.
Cabe ao Legislativo, por um lado, rever e
simplificar regras, privilegiando a liberdade de escolha dos cidadãos no que
diz respeito à vida privada —sem causar danos a terceiros— e, por outro,
combater desigualdades que persistem na lei.
O Estado de S. Paulo.
Minuta de decreto é mais um elemento a
indicar envolvimento do governo Bolsonaro em atos antidemocráticos. Não cabe
impunidade a quem viola acintosamente as leis e a Constituição
Não cabe impunidade a quem viola
acintosamente as leis e a Constituição.
Jair Bolsonaro deixou o País no dia 30 de
dezembro. Mas nem por isso está imune às leis brasileiras. Suas ações e
omissões continuam passíveis de ser responsabilizadas juridicamente. No domingo
passado, hordas de bolsonaristas – acampados desde o resultado do segundo turno
das eleições – invadiram as sedes dos Três Poderes, destruindo e vandalizando o
patrimônio público. Ainda que o ex-presidente tenha tentado se distanciar do
caráter violento dos atos de 8 de janeiro, é evidente a conexão entre a ação
dos vândalos no domingo passado e a reiterada campanha de Bolsonaro contra as
instituições republicanas, em concreto contra o Supremo Tribunal Federal (STF)
e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Uma das autoridades cuja omissão se mostrou
mais decisiva nos acontecimentos de domingo passado em Brasília foi o ministro
da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, que havia sido nomeado neste
ano Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Na segunda-feira,
Anderson Torres, que estava nos Estados Unidos, foi exonerado do cargo. No dia
seguinte, a pedido da Polícia Federal, o ministro Alexandre de Moraes decretou
sua prisão preventiva.
A reiterar o vínculo entre os atos
antidemocráticos de 8 de janeiro e o governo Bolsonaro, nas diligências de
busca e apreensão na casa de Anderson Torres, agentes da Polícia Federal
encontraram uma minuta de decreto presidencial a respeito de um estapafúrdio
estado de defesa no TSE, com o objetivo de “garantir a preservação ou o pronto
restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano
de 2022”. Segundo o texto, seria constituída uma “Comissão de Regularidade
Eleitoral” composta por 17 membros, dos quais 8 seriam militares oriundos do
Ministério da Defesa.
Uma rigorosa investigação se impõe. Se for
confirmada, a tentativa de atropelar o processo eleitoral, usando as
atribuições da Presidência da República, é algo muito grave, que viola os
fundamentos da República. Não cabe impunidade a quem desrespeita tão
acintosamente a Constituição e as leis do País.
Em novembro do ano passado, dissemos neste
espaço e agora, diante de novos e mais graves indícios, reiteramos: “É preciso
apurar a responsabilidade jurídica de Jair Bolsonaro e, nos casos cabíveis,
aplicar as penas correspondentes. Toda impunidade é prejudicial ao País, mas
ainda mais grave seria a eventual impunidade de quem ocupou o mais alto posto
da República. Representaria um tremendo mau exemplo para toda a sociedade” (A
responsabilidade jurídica de Bolsonaro, 14/11/2022).
A apreensão da minuta de um decreto de
estado de defesa com o exclusivo propósito de alterar o resultado das eleições
presidenciais é gravíssima. Expõe a audácia e prepotência da cúpula do governo
Bolsonaro, que, pelo visto, não queria ser apeada do poder pelo voto popular.
Mas é preciso reconhecer: o texto é absolutamente coerente com o espírito
antidemocrático e antirrepublicano que Jair Bolsonaro vem demonstrando ao longo
de toda sua vida pública.
Não se pode tapar o sol com peneira. A cada
dia que passa, surgem mais elementos a indicar o envolvimento de Jair Bolsonaro
e membros do primeiro escalão do seu governo no desenho e realização de atos
que atentam contra o regime democrático. É preciso investigar, indo até o fim
na apuração de tais condutas. O Estado Democrático de Direito – em concreto, o
respeito aos direitos e liberdades de cada cidadão – merece esse cuidado.
Na trajetória de responsabilizar os
agressores do regime democrático, há um aspecto especialmente importante.
Seguindo o devido processo legal, todos aqueles que tiverem comprovada sua
participação em atos criminosos e antidemocráticos devem ser alijados do
processo eleitoral. Merecem tornar-se inelegíveis. A Constituição prevê essa
possibilidade precisamente para que a defesa da democracia seja efetiva.
A barbárie de 8 de janeiro não foi fruto de
geração espontânea. É preciso investigar não apenas os loucos acampados, mas
também os graúdos – estejam onde estiverem.
Saneamento no caminho certo
O Estado de S. Paulo.
Questionado pelo novo governo, o marco do
saneamento sintonizou o Brasil às melhores práticas internacionais. Resultados
dos últimos dois anos mostram que ele funciona
A comparação internacional revela a
dimensão do problema do saneamento no Brasil e a complexidade dos desafios que
o País precisa enfrentar para atingir a meta da universalização.
Segundo o ranking da JMP global database,
uma parceria da Organização Mundial da Saúde e do Unicef, entre cerca de 130
países, o Brasil está na 85.ª posição na oferta de água potável, com 86% da
população atingida, e na 76.ª posição em esgoto tratado, com 49% da população.
Por trás das cifras há uma catástrofe humanitária. Em termos absolutos, são
cerca de 35 milhões de brasileiros sem água e 100 milhões sem esgoto. Em
relação a este último quesito, por exemplo, o Brasil não está atrás apenas dos
países desenvolvidos, mas de países em desenvolvimento como Jordânia, Turquia,
Butão ou Senegal, incluindo vizinhos como Chile, Peru, Paraguai, México e
Bolívia.
“A experiência internacional reforça a
noção de que não há um modelo único para o sucesso”, aponta o estudo da
Confederação Nacional da Indústria Comparações Internacionais: Uma agenda de
soluções para os desafios do saneamento. “É possível, contudo, identificar três
ingredientes fundamentais para o desenvolvimento do setor: planejamento, regulação
e gestão. Para desenvolvê-los no contexto brasileiro, a maior participação do
setor privado se reveste de grande importância.”
Foram precisamente essas soluções que o
marco do saneamento, aprovado em 2020, buscou aportar, em pelo menos cinco
pontos principais: a definição de metas para a universalização até 2033; a
obrigatoriedade de licitação para todas as empresas; maior segurança jurídica
para a privatização de companhias estaduais; estímulo à prestação regionalizada
dos serviços; e um papel de destaque para a Agência Nacional de Águas e
Saneamento Básico (ANA) na regulação dos serviços.
Num momento em que o novo governo assinala
a intenção de reverter algumas dessas disposições, convém apontar os resultados
obtidos desde a aprovação do marco.
Uma das medidas saneadoras foi obrigar as
empresas a comprovar capacidade econômico-financeira ante as metas impostas.
Dos municípios compelidos a apresentar comprovação, quase 40% estão em situação
irregular.
Segundo o instituto Trata Brasil, entre
2016 e 2020, a média anual de investimentos foi de cerca de R$ 17,1 bilhões. As
estimativas conservadoras são de que esse valor precisaria dobrar para atingir
a meta de universalização. Um estudo desenvolvido pela consultoria KPMG calcula
que ele precisaria quadruplicar.
A ANA tem um papel crucial. É notória a
necessidade de padronizar as regras do saneamento, atualmente pulverizadas
entre dezenas de agências reguladoras estaduais, regionais e municipais. O
marco atribuiu à ANA a tarefa de estabelecer padrões de qualidade e eficiência,
regulação tarifária, critérios para a contabilidade regulatória, mediação de
conflitos e a metodologia para a comprovação da capacidade econômico-financeira
das empresas contratadas. Para tanto, seria necessário ampliar sua capacidade
técnica e capacitar seus quadros, com a precondição de que eles sejam
independentes e livres de pressões políticas ou econômicas. Por isso, preocupam
as manobras do governo para transferir as atribuições da ANA à administração
direta.
Em apenas dois anos do marco, já foram
realizados 21 leilões de concessões no setor. A Abcon, uma associação de
concessionárias privadas, estima que foram beneficiados cerca de 24 milhões de
pessoas em 244 municípios, com investimentos da ordem de R$ 82,6 bilhões. Só em
2021, mesmo sob o impacto da pandemia, os investimentos no setor cresceram 27%
em relação ao ano anterior, e os investimentos privados tiveram alta de 41%. Os
leilões esperados para 2023 devem gerar R$ 24,4 bilhões em investimentos.
O marco do saneamento é resultado de um
longo processo de deliberação que consumou o processo de modernização iniciado
com a Lei 11.445 de 2007. Obviamente, ele é passível de aprimoramentos. Mas os
resultados até o momento mostram que ele está no caminho certo.
O urgente resgate do Cadastro Único
O Estado de S. Paulo.
Para ampliar o alcance e a eficácia dos
programas sociais, o País precisa ter um banco de dados amplo e atualizado
O ministro do Desenvolvimento e Assistência
Social, Wellington Dias, disse que o governo encontrou indícios de
inconsistências no cadastro de nada menos que 10 milhões de famílias hoje
atendidas pelo Bolsa Família. Segundo o ministro, esses beneficiários serão
convocados a comparecer aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras)
ao longo dos próximos meses para comprovar sua situação e evitar o bloqueio dos
pagamentos.
Ainda é cedo para fazer uma previsão segura
sobre as fraudes que o recadastramento poderá revelar. Independentemente do
resultado final, o ministro faz bem em iniciar seu trabalho pela necessária
revisão dos dados do Cadastro Único (CadÚnico), um banco de dados com mais de
20 anos de história. Esta foi uma das principais recomendações do relatório
final do grupo técnico de transição de Desenvolvimento Social. Do total de
benefícios sob suspeita, quase 6 milhões se referem a famílias formadas por uma
única pessoa, talvez a maior das distorções criadas pela sistemática
eleitoreira do Auxílio Brasil.
Ao estabelecer um piso de R$ 600 por
família, independentemente do número de componentes e de crianças, o governo de
Jair Bolsonaro estimulou a população a fazer cadastros individuais para a obtenção
de mais benefícios. Os dados oficiais mostram que esse incentivo foi bem
compreendido. O número de famílias unipessoais no programa social saltou de 1,8
milhão em dezembro de 2018 para 5,5 milhões em outubro do ano passado, segundo
o grupo técnico da equipe de transição. Boa parte desses beneficiários foi
incluída no auge da campanha eleitoral.
Sob Bolsonaro, diversas políticas públicas
foram destruídas, mas o que foi feito na assistência social configura um caso à
parte. Simplório, fragmentado, ineficaz e sem um mínimo de foco, o Auxílio
Brasil evidenciou o quanto é importante tratar a temática do combate à pobreza
com a profundidade que ela requer. Sua disfuncionalidade mostra que é preciso
ir muito além da inclusão das famílias ou do aumento das verbas públicas.
Afinal, nunca se gastou tanto com um programa social e nunca tantas pessoas
foram incluídas sem que houvesse resultados efetivos na redução da miséria.
Basta ver a recorrência com que as filas para acesso aos benefícios são
formadas.
O governo federal precisa articular as
diversas políticas sociais existentes nas áreas de saúde e educação e
restabelecer a rede de serviços, atuando em conjunto com Estados e municípios.
É necessário considerar a realidade de cada família de forma individualizada e
criar condições para que os beneficiários alcancem a autonomia e a emancipação.
Mas, sobretudo, é essencial dar prioridade àquelas que mais precisam de ajuda:
as mais pobres, quase sempre formadas por mães com filhos pequenos. O redesenho
do Bolsa Família é urgente, assim como garantir mais eficiência ao gasto
público. Para tanto, o País precisa ter um cadastro com informações precisas e
atualizadas periodicamente. Os beneficiários dos programas sociais são
cidadãos, e não massa de manobra eleitoral.
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