Revista Veja
No Brasil, ‘até o passado é incerto’, na conhecida frase de Pedro Malan
Primeiro, foi com a regra do teto. Em 2016, o Brasil vivia a sua crise, o PIB cairia mais de 7% em dois anos, e alguns milhões de brasileiros cruzavam, para baixo, a linha da extrema pobreza. Foi aí que o país definiu uma regra fiscal para valer no longo prazo: o Orçamento só pode crescer no limite da inflação do ano anterior. Por vinte anos, com direito a uma revisão no meio do caminho. O problema é que rodamos no marshmallow test. Para quem não conhece, é aquele teste famoso em que se põe uma criança diante de uma guloseima, sabendo ela que se esperar alguns minutos ganhará, logo ali adiante, duas guloseimas. Uma parte das crianças, em geral as mais novas, não consegue esperar. É semelhante ao nosso caso. Pouco mais de seis anos depois de definir a regra, o país-criança decide mudar. Já havíamos furado a regra algumas vezes, mas agora vamos mudar de vez, sem fazer ideia do que colocar no lugar.
É o mesmo caso da Lei das Estatais. Na esteira
da crise, em 2016, nossas estatais tiveram um resultado negativo de mais de 30
bilhões de reais. Havia um rastro de corrupção e o país resolveu fazer uma lei
dura, impondo 36 meses de quarentena a quem comandou campanhas ou partidos
políticos. Apontada como modelo pela OCDE, a lei ajudou o Brasil a melhorar não
apenas no aspecto ético como também na performance das empresas, que atingiram
seu melhor resultado no ano passado. Diante disso, o que faz nosso mundo
político? Ainda na transição para o novo governo, aprova-se a incrível redução
da quarentena de 36 meses para apenas um mês. Alguma avaliação técnica? Os
investidores estão reclamando? Foi reduzido o retorno das empresas para o
governo? As respostas são um tanto óbvias. Nas últimas semanas, Lula resolveu tirar o Banco
Central e seu presidente para Geni. A autonomia do BC foi aprovada com folga no
Congresso, e depois chancelada pelo STF. O ministro Barroso fez um voto
exemplar, dizendo que instituições como o Banco Central não deveriam ser
“submetidas a vontades políticas, mas a compromissos com a Constituição e o
Estado brasileiro”. Tudo isso há menos de dois anos. A aprovação foi saudada
como um avanço institucional, na linha do que fazem as grandes economias
globais. Mas não tem jeito. Eleito, Lula diz que a autonomia do BC é uma
“bobagem” e a presidente do partido diz que o Banco Central é a “última
trincheira do bolsonarismo”. Não se trata de debate técnico sobre juros. É um
sintoma: aceitamos um Banco Central independente, desde que os juros fiquem no
patamar desejado pelo governo.
O tema é o mesmo com as privatizações. Em
2021, a Câmara dos Deputados aprovou a privatização dos Correios. O processo
ficou parado no Senado, e o atual governo terminou por engavetar. Há casos mais
curiosos. A privatização do Porto de Santos foi aprovada pela Antaq, recebeu
parecer positivo da área técnica do TCU e o leilão está virtualmente pronto
para acontecer. Provavelmente não irá. São anos de estudos e tramitação, a um
custo difícil de estimar. E mais: de expectativas de investimentos geradas na
região da Baixada Santista. No zigue-zague brasileiro, nada disso importa.
Ainda agora lemos que o governo mandou a AGU tentar a reversão da privatização
da Eletrobras. É provável que não dê em nada, mas não será pequeno o rastro de
insegurança institucional deixado pelo caminho.
Há quem veja essas coisas como um
retrocesso; há quem veja um avanço. Um “retorno do Estado ao comando da
economia”, como li, por estes dias. A verdade é que não é nem uma coisa nem
outra. Somos apenas um país cindido, sem uma convicção básica que seja em torno
de uma agenda modernizadora. Tivemos um ciclo de reformas, e agora resolvemos
puxar o freio. Dias atrás li um artigo culpando Lula pelo “retrocesso”.
Perfeita injustiça. Na campanha, Lula foi bastante claro sobre o que faria. Ele
expressa o que a maior parte da sociedade pensa, e por isso ganhou. Tudo
perfeitamente democrático, não é esse o ponto. Poderíamos exercitar plenamente
a democracia, com a sabedoria de preservar uma agenda básica de modernização.
De minha parte, o que mais incomoda é o
experimentalismo, o país em que “até o passado é incerto”, na conhecida frase
de Pedro Malan. O prêmio Nobel Douglass North escreveu longamente sobre a
importância das instituições para “reduzir as incertezas próprias da interação
humana fornecendo os incentivos para que haja cooperação e desenvolvimento”.
Isso é perfeitamente lógico. Por que alguém investiria uma enorme quantidade de
tempo e dinheiro desconfiando seriamente que as regras do jogo vão mudar daqui
a dois ou três anos? Há uma extensa literatura sobre esse tema. O próprio North
vai longe, na história moderna, mostrando como boa parte do sucesso econômico
inglês, à época da Revolução Industrial, se deve ao redesenho institucional e à
redução da instabilidade produzida pela Revolução Gloriosa, que fixou alguns
parâmetros na política inglesa: limites claros às prerrogativas reais, sob
a common law;
soberania do Parlamento, na tributação; Judiciário independente; e segurança
quanto aos direitos de propriedade.
A série de reformas que o país fez nos
últimos anos foi precisamente na direção de uma maior estabilidade
institucional. Foi esse o sentido da Lei Geral das Agências Reguladoras,
aprovada em 2019, e do Marco do Saneamento Básico, que abriu o setor para a
competição e vem atraindo uma montanha de investimentos. Ou ainda da reforma
trabalhista. Estudo feito por pesquisadores da USP e do Insper mostrou como a
regra inibindo a litigância de má-fé resultou em um aumento de 1,7 milhão de
vagas no país entre 2017 e 2021. Daria para ir longe nisso. São reformas que
não deveriam ser vistas como deste ou daquele governo, mas como nosso
patrimônio comum. Previsibilidade e a garantia de direitos interessam ao elo
mais frágil da vida social. A quem toma risco, empreende, investe, e a quem
consegue um bom emprego porque alguém investiu. Nossa incompreensão sobre o
tema talvez venha do clássico problema da prevalência do Estado sobre a
sociedade na vida brasileira. Daí a imensa carga tributária, o peso
desproporcional da máquina pública e a burocracia infernal em um país em que os
“donos do poder” ocupam o centro do palco, e o indivíduo e seus direitos dançam
conforme a música.
O problema é que estamos perdendo tempo. Um
país pode sempre mudar de direção, mas ser jovem apenas durante algum tempo. E
o nosso está passando. Há quatro décadas, tínhamos 45 milhões de pessoas com
até 14 anos, e pouco mais de 7 milhões de idosos. Daqui a menos de quatro
décadas, será o oposto. Teremos 73 milhões de idosos, e apenas 28 milhões
abaixo dos 14. Estamos diante de um maremoto. O detalhe é que o caminho para a
prosperidade passa por aumentar a produtividade e promover a abertura de
mercado, a boa regulação, a segurança jurídica e a boa educação de verdade, não
de mentirinha. Era sobre isso que Mario Covas falava, em nossa primeira eleição
presidencial, quando dizia que precisávamos de um “choque de capitalismo”.
Coisa que, trinta e tantos anos depois, parecemos ainda não compreender.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 1º de março de
2023, edição nº 2830
Um comentário:
Pois é.
Postar um comentário