sábado, 25 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Mercado de crédito exige do governo atenção constante

O Globo

Não parece haver risco sistêmico, mas caso Americanas e rolagem de dívidas corporativas despertam preocupação

A conjunção do tombo das Lojas Americanas com o cenário de juros altos e crescimento econômico baixo fez os bancos ficarem mais cautelosos. Não há uma crise de crédito, mas está claro que a situação exige acompanhamento diário, e o Ministério da Fazenda tem dedicado atenção às movimentações no mercado. O secretário executivo da pasta, Gabriel Galípolo, afirmou estar dialogando com interlocutores dos setores produtivo e financeiro, além do Banco Central. A preocupação é o aumento das exigências para a concessão ou renovação de empréstimos, sobretudo para empresas médias e grandes.

Desde o começo do ano, aumentou a demanda por renegociação de dívidas nas empresas especializadas em reestruturação. Até o início de 2024, companhias dos mais diversos setores deverão renegociar pelo menos R$ 260 bilhões em dívidas, segundo levantamento da assessoria financeira Virtus BR. A título de comparação, na crise do governo Dilma Rousseff o montante rolado chegou a quase R$ 500 bilhões. Numa projeção extrema para 2023 feita pela gestora de ativos em crise Starboard, o valor poderia chegar a R$ 700 bilhões. Não é pouco.

Entender como o país chegou a tal situação é tão importante quanto acompanhar o mercado de crédito. No início da pandemia, os bancos chamaram as empresas para renegociar suas dívidas. Para evitar uma quebradeira geral, os prazos foram alongados. Com o início da vacinação, a recuperação da atividade e os juros ainda em patamar baixo, muitas empresas buscaram empréstimos para se preparar para um cenário de expansão. Não contavam com a incúria fiscal do governo, a crise nas cadeias de suprimentos globais e a guerra na Ucrânia, fatores que contribuíram para a inflação disparar e para os juros atingirem os atuais 13,75%.

Em 2022, as concessões de crédito cresceram 15% (11% para empresas). Depois de queda consistente desde 2020, as provisões nos balanços dos bancos para arcar com a inadimplência e ativos problemáticos subiram ao longo de todo o ano passado. Em dezembro, a previsão do Banco Central era que, em 2023, a alta no crédito seria de 8,3%. Agora essa previsão parece otimista demais.

Uma das possíveis causas da crise nas Americanas é fraude, mas a repercussão das perdas dos bancos ajudou a criar um clima de desconfiança generalizada, mesmo naqueles setores sem indício de irregularidade. No radar das autoridades, dois indicadores são críticos. Um são as recuperações judiciais, que em geral afetam empresas cujos acionistas dispõem de recursos para enfrentar o processo. O outro é a inadimplência. Nenhum deles está em nível preocupante, mas é preciso ficar atento.

O crédito é o oxigênio da economia. Sem ele, as empresas não têm como investir para seguir adiante. Decisões empresariais equivocadas, como as que levaram as Americanas ao buraco, são assunto de controladores, funcionários e fornecedores. Um eventual risco sistêmico é de outra natureza — e merece atenção constante do Estado. Faz bem o Ministério da Fazenda em se dedicar ao assunto.

Suprema Corte americana tem uma oportunidade de disciplinar internet

O Globo

Casos questionam a regra que exime plataforma digital de responsabilidade pelo conteúdo ilegal que veicula

Dois casos examinados pela Suprema Corte dos Estados Unidos podem enfim trazer disciplina ao ambiente permissivo da internet. Ambos exigem que as plataformas digitais se tornem corresponsáveis por conteúdos ilegais que disseminam, ao contrário do que determina a Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações, de 1996. O mesmo princípio, que as isenta de responsabilidade pelo que veiculam, é adotado no Marco Civil da Internet do Brasil e noutras leis mundo afora. Se a Suprema Corte impuser mudança na interpretação da lei, o ambiente digital mudará para melhor.

Nos dois casos, familiares de vítimas de terroristas do Estado Islâmico (EI) acusam as plataformas de contribuir para as mortes ao não impedir a difusão de conteúdos extremistas e, ao contrário, indicá-los em recomendações. O alvo da primeira ação, movida pela família de uma jovem de 23 anos assassinada em Paris em 2015, é o YouTube, do Google. Na segunda, relativa a atentados de 2017 em Istambul, também são citados Twitter e Facebook.

Os dois processos questionam as plataformas por dirigir conteúdos a públicos específicos em busca de audiências crescentes sem poder ser responsabilizadas pelo que difundem. Se um jornal, revista, emissora de rádio ou TV veiculam propaganda terrorista, obviamente terão de arcar com o ônus jurídico, moral e político. Para as plataformas digitais, vale outra regra. Quando questionadas, invocam a célebre Seção 230 para se isentar de qualquer tipo de responsabilidade.

Os advogados das vítimas argumentam que as plataformas violaram a lei antiterrorismo americana e são responsáveis pelo crescimento do extremismo. Cortes inferiores não se mostraram sensíveis aos argumentos e lhes negaram a vitória, mas pela primeira vez a Suprema Corte aceitou julgar recursos que questionam a Seção 230. Os dois processos são uma excelente oportunidade para a mais alta instância da Justiça dos Estados Unidos se pronunciar, num caso cujo precedente deverá ter implicações no mundo todo.

Não se sabe como reagirão os juízes na atual configuração conservadora do tribunal. De um lado, três deles — Samuel Alito Jr., Clarence Thomas e Neil Gorsuch — deixaram claro esperar que a Corte reveja “o poder de corporações de mídia social dominantes de moldar a discussão pública dos assuntos importantes do dia”. Ao mesmo tempo, os círculos de direita consideram que o discurso conservador já é cerceado pelas plataformas e veem com preocupação uma decisão que poderia trazer ainda mais restrições.

A esquerda, em contrapartida, manifesta inquietação com a proliferação do discurso de ódio, propiciada pela permissividade garantida pela Seção 230. Qualquer alteração nesse dispositivo obviamente despertará furor nos meios libertários que criaram a internet. Mas o modo infeliz e arrogante como as plataformas têm tratado sua responsabilidade nos casos de terrorismo e ataques à democracia mostra que já passou da hora de mudar. É preciso estabelecer que liberdade de expressão não pode significar impunidade.

Questão de crédito

Folha de S. Paulo

Aperto no mercado é obscuro; governo ajudaria com clareza na gestão econômica

Há receios cada vez mais disseminados de que a economia brasileira possa enfrentar o que tem sido chamado de uma crise de crédito.

A definição do fenômeno e sua extensão ainda são imprecisas, inclusive porque faltam indicadores gerais do que se passa nos bancos e no mercado de capitais. Mas há indícios de que o arrocho financeiro tenha atingido fase mais aguda.

A taxa de juros do Banco Central está em nível contracionista faz mais de um ano. A polêmica política a respeito do ajuste fiscal e do BC, impulsionada por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), agravou tal quadro a partir de novembro.

Ademais, o escândalo da Americanas contribuiu para aumentar a aversão ao risco de emprestar e investir em papéis de empresas. A ameaça de um calote de dezenas de bilhões da varejista chamou a atenção para outras empresas em dificuldades. Existem sinais de que cresceu a procura pelos serviços de renegociação de dívidas.

Desde janeiro, bancos e investidores conferem balanços e revisam suas carteiras e seus orçamentos. Em alguma medida, raciona-se crédito, suspendem-se provisoriamente aplicações. Empresas que ora vão ao mercado encontram custos de financiamento subitamente mais altos.

É preciso reiterar que não se divulgaram ainda dados consolidados recentes a respeito do mercado de crédito, embora as taxas de juros indiquem estresse. Além do mais, o aperto monetário e financeiro não começou neste ano. A crise inflacionária e a incerteza a respeito de regras fiscais são notáveis desde o trimestre final de 2021.

No entanto, o próprio governo federal diz que começa a discutir medidas que facilitem créditos de emergência ou linhas de empréstimos facilitados para bancos.

Pode ser recomendável que se tomem providências a fim de evitar acidentes maiores ou uma progressiva asfixia financeira. Não faria sentido, porém, valer-se do argumento de que hoje haveria riscos mais elevados com o mero objetivo de expandir o crédito e, assim, derrubar uma restrição que, talvez, seja apenas resultado aceitável da política monetária.

É difícil, sem dúvida, discernir a linha que separa uma crise grave e o efeito regular de um aperto dos juros do BC. É importante que fiquem claros, de todo modo, os motivos de eventuais decisões da gestão da economia.

Importa ainda, sem prejuízo de medidas prudenciais eventualmente necessárias, definir o quanto antes o programa fiscal e dar fim à agitação política estéril que torna o arrocho ainda maior. Uma baixa antecipada dos juros e a perspectiva de retomada de algum crescimento do PIB em 2024 contribuiriam para a dissipação dos temores.

Faces do populismo

Folha de S. Paulo

Como Bolsonaro e Trump, esquerdista do México ataca sistema eleitoral e imprensa

Forças Armadas atuantes no governo; ataques ao Judiciário, ao sistema eleitoral e à imprensa; discurso contra medidas de proteção durante a pandemia de Covid-19.

Essa poderia ser uma descrição da gestão direitista de Jair Bolsonaro (PL), mas o personagem é o presidente esquerdista do México, Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, como é conhecido.
O que os une é o velho populismo em novas roupagens, adaptadas ao tempo das redes sociais. Mais uma vez, o líder personalista, que se pretende representante do povo, afronta as instituições que limitam seu poder e sua vontade.

No caso de AMLO, sua mais recente investida foi a aprovação, no Senado, do projeto de lei do Executivo que reduz o orçamento do Instituto Nacional Eleitoral (INE), que organiza as eleições e fiscaliza a lisura do processo, atribuições similares às do TSE no Brasil.

Os cortes de verbas e de profissionais dificultam a estruturação dos postos de votação e a contagem de votos. Ademais, o órgão perde a função de punir políticos por infração às leis eleitorais.

Segundo opositores e acadêmicos mexicanos, a medida é inconstitucional e ameaça a independência do INE, além de servir a propósitos eleitoreiros para o partido do presidente, o Morena, e seus correligionários no pleito de 2024.

Assim como o americano Donald Trump e Bolsonaro, AMLO também lança torpedos contra a imprensa. Todas as manhãs, reúne-se com um grupo escolhido de jornalistas e fala por horas, em eventos chamados de "mañaneras". Invariavelmente, há ataques a profissionais e veículos de comunicação que criticam o governo.

Esse falatório diário não apenas estimula a polarização política como incentiva agressões a jornalistas, que vêm crescendo de modo preocupante nos últimos anos.

Segundo relatório da ONG Artigo 19, de 2022, nos três primeiros anos de governo (entre 2019 e 2021), os ataques à imprensa cresceram 85% em relação ao mesmo período da gestão anterior. Só em 2021, foram 644 agressões.

No mesmo ano, sete jornalistas foram mortos em razão do exercício da profissão. O primeiro triênio de AMLO acumula 33 homicídios —desde 2000, foram 190.

Como também o demonstram os bolsonaristas que agridem covardemente profissionais de imprensa, o populismo varia de grau e de ideologia, mas nunca está muito distante do autoritarismo.

A inflação resiste e demanda prudência

O Estado de S. Paulo.

O IPCA-15 reforça a tese de que não há espaço para o BC iniciar um ciclo de corte de juros tão cedo e a necessidade de que o governo apresente de uma vez a nova âncora fiscal

Em mais uma demonstração da resiliência da inflação e do desafio que o Banco Central (BC) terá para aproximar a inflação da meta, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) subiu 0,76% em fevereiro. O indicador avançou em relação a janeiro, quando havia ficado em 0,55%, e registra alta de 5,63% no acumulado de 12 meses, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não foram estes, no entanto, os números que mais preocuparam os analistas.

Dos nove grupos que compõem o IPCA-15, oito registraram alta – a exceção foi Vestuário. Puxado por reajustes sazonais registrados no início do ano em mensalidades escolares, o grupo Educação teve a variação mais elevada, com 6,41%. Alimentos e Bebidas também subiram mais do que o esperado, assim como os aluguéis residenciais.

A média dos núcleos da inflação avançou 0,68%, ante 0,58% em janeiro. Ao captar a tendência geral dos preços e eliminar os efeitos de choques temporários que até afetam o índice de forma imediata, mas que são rapidamente revertidos – caso das mensalidades escolares –, os núcleos expõem a força da inflação dos demais itens, cujos comportamentos são mais estáveis. O índice de difusão, por sua vez, atingiu 67,03% em fevereiro, mesma variação de janeiro, delineando o alto grau de espraiamento da inflação entre os itens que compõem o índice.

O IPCA-15 reforça a tese de que não parece haver espaço para o Banco Central iniciar um ciclo de corte de juros tão cedo. As projeções de inflação pioram há semanas; para 2023, atingiram 5,89%, segundo o último boletim Focus, e para 2024, 4,02%. Já há quem preveja que o IPCA deve ultrapassar os 6% em 2023.

Muito desse resultado está relacionado a ações destrambelhadas para tentar reeleger o presidente Jair Bolsonaro, principalmente as desonerações tributárias, que reduziram a inflação de forma artificial e geraram perda de receitas sem qualquer contrapartida. Mas parte desse pessimismo é uma resposta ao discurso que o presidente Lula da Silva tem pregado em relação à política econômica – desde o menosprezo à responsabilidade fiscal até as críticas à autonomia do Banco Central.

Há novas pressões no caminho. Em março, o governo federal – assim espera-se – deve voltar a tributar a gasolina e o etanol, medida acertada sob o ponto de vista fiscal e ambiental, mas que inegavelmente afetará o bolso dos consumidores. Em abril, será a vez do reajuste anual dos medicamentos, que já subiram, em muitos Estados, em razão do aumento das alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Em maio, o salário mínimo chegará a R$ 1.320 – piso que tem muita relevância nos serviços, retroalimentando o comportamento de preços do setor que foi o último a se recuperar, mas que tem aproveitado o arrefecimento da pandemia de covid-19 para repassar custos mais altos.

Domar a inflação não é um desafio exclusivamente nacional. Nos Estados Unidos e na Europa, o mercado de trabalho continua aquecido e a inflação resiste, a despeito do aumento dos juros. No caso brasileiro, ainda há outras especificidades. Os juros altos elevaram o temor sobre uma crise de crédito e levaram o governo a avaliar medidas de apoio para reduzir a inadimplência e prover liquidez ao mercado, tudo para evitar o risco cada vez maior de uma recessão.

Mais importante do que isso seria apresentar de uma vez a nova âncora que substituirá o teto de gastos. Quem diz isso não são operadores de mercado, mas o economista Heron do Carmo, professor sênior da FEA/USP e profundo conhecedor da inflação. “Poderíamos ter uma inflação mais baixa desde que houvesse uma sinalização do governo em relação ao novo arcabouço fiscal”, disse ele, ao Estadão, do alto de uma experiência de mais de 20 anos na coordenação do Índice de Preços ao Consumidor da Fipe (IPC-Fipe), um período em que diversos planos econômicos para controlar a inflação foram lançados sem sucesso. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prometeu anunciar a nova âncora em março. Que o faça o quanto antes.

Muito ajuda quem não atrapalha

O Estado de S. Paulo.

É legítimo reivindicar lugar nas articulações pela paz entre Rússia e Ucrânia, mas para isso o Brasil não pode sugerir um ‘clube da paz’ que supõe ‘neutralidade’ entre criminoso e vítima

O presidente Lula da Silva tem perambulado por estúdios e fóruns internacionais apresentando-se como o articulador de um “clube da paz” para atuar no conflito entre Rússia e Ucrânia. A diplomacia russa disse que está “estudando a proposta”. Para a tietagem petista, foi um sinal de que, com Lula, “o Brasil voltou”, e em grande estilo. Para a Rússia foi a deixa para posar como aberta a negociações. Afinal, Vladimir Putin também quer a “paz”. Mas nos seus termos. Sabe-se bem em que consiste essa paz: a castração militar da Ucrânia e a cessão de um quarto de seu território, no mínimo. Isso por ora, pois Putin já explicou que a Ucrânia não tem nem sequer o direito de existir.

“Como ponto de partida” da posição do Brasil, disse, em artigo no Estadão, o chanceler Mauro Vieira, “é inequívoca a condenação da invasão russa e da violação de um Estado soberano.” Mas essa posição, longe de ser inequívoca, está coalhada de ambiguidades, cultivadas desde quando Jair Bolsonaro prestou uma embaraçosa “solidariedade” à Rússia. O Brasil votou no Conselho de Segurança da ONU por condenar a invasão, mas condenou igualmente as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia e se absteve de condenar a anexação de territórios e até de deixar o líder ucraniano Volodmir Zelenski discursar na Assembleia-Geral da ONU. É revelador que nessa questão Lula e Bolsonaro convirjam.

Zelenski “é tão responsável quanto o Putin”, disse Lula à revista Time quatro meses após a invasão. Aparentemente, demorou um ano para ter “mais clareza” e admitir, ante o chanceler (premiê) alemão, Olaf Scholz, que a Rússia cometeu “um erro”. Mas – há sempre um “mas” – “a razão dessa guerra (...) precisa ficar mais clara”. Na época da entrevista à Time, a coisa parecia, aí sim, inequívoca: “Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a Otan? Os EUA e a Europa poderiam ter dito: ‘A Ucrânia não vai entrar na Otan’. Estaria resolvido o problema”. Na lista de desejos de Putin essa é só uma parte do problema, e nada convincente, pois não havia perspectiva iminente dessa entrada. Mais problemática é a anexação dos territórios, mas não está claro que sua desocupação integre as propostas de Lula. Talvez esse seja só um dos mal-entendidos que Lula resolverá “tomando cerveja” com russos e ucranianos, como disse em 2022: “Até acabarem as garrafas a gente ia fazer um acordo de paz”.

Embriagado com seu ego, Lula nada aprendeu com as lições do passado. Em 2008, chegou a mandar seu chanceler convocar uma reunião emergencial da ONU para acabar com o conflito árabeisraelense. Em 2010, engendrou com a ditadura turca um acordo com o Irã no qual o regime dos aiatolás se comprometeria a não avançar seu programa nuclear além de fins médicos. Na prática, não havia garantias de que a construção da bomba seria freada e seu efeito seria unicamente dar tempo à teocracia de Teerã para consumá-la. Pouco depois, o Conselho de Segurança da ONU fez letra morta de seu acordo e aprovou mais sanções contra o Irã. O que deveria ser o apogeu da diplomacia “ativa e altiva” de Lula revelou-se mero voluntarismo e megalomania.

A lição, segundo o falecido Luiz Felipe Lampreia, que foi chanceler no governo FHC, é que o Brasil deveria considerar seus limites e buscar protagonismo nos setores em que é forte, como o meio ambiente, ou em questões regionais. Mas a julgar pelo silêncio de Lula em crises regionais – como, por exemplo, a do Peru – e sua verborragia sobre a Ucrânia, ela não foi aprendida. Talvez porque seu ponto de partida seja outro do que o sugerido por Mauro Vieira. Em entrevista ao canal russo RT, em 2019, Lula disse que “uma coisa que me deixa orgulhoso é o papel desempenhado por Putin na história mundial, o que significa que o mundo não pode ser tomado como refém pela política dos EUA”.

Se Lula desdenha tão olimpicamente do princípio constitucional do respeito à autodeterminação dos povos e da lição de Ruy Barbosa – “entre os que destroem a lei e os que a observam, não há neutralidade possível” –, não é só por voluntarismo ou megalomania, muito menos por ingenuidade ou idealismo, mas por uma ideologia tacanha e perniciosa, infensa aos interesses do Brasil.

A lei vale para plataformas digitais

O Estado de S. Paulo.

STF decide que provedores estrangeiros devem entregar dados requisitados pela Justiça, como qualquer empresa local

No dia 23 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que as autoridades nacionais podem solicitar dados diretamente a provedores de internet estrangeiros que prestam serviços no Brasil. Ao ratificar a constitucionalidade do art. 11 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), a decisão do Supremo assegura um ponto fundamental do Estado Democrático de Direito. Todas as plataformas digitais e empresas de tecnologia que atuam no País, mesmo que suas sedes ou seus provedores estejam situados no exterior, se sujeitam à lei brasileira.

A autora da ação, uma federação de empresas de tecnologia, defendia que o acesso judicial a dados de usuários da internet por provedores sediados no exterior deveria, necessariamente, seguir os trâmites previstos no Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT, em inglês), assinado entre o Brasil e os Estados Unidos. O argumento da ação era um tanto absurdo. Tentava-se usar um acordo de cooperação entre dois países, firmado precisamente para facilitar investigações criminais, como uma forma de dificultar o acesso da Justiça brasileira a dados relacionados a serviços prestados no País.

Corretamente, o MLAT prevê que as solicitações relativas a questões penais devem passar por uma autoridade central designada por cada país; no caso do Brasil, o Ministério da Justiça. Essa sistemática, que se aplica a informações e eventos ocorridos no exterior, é o reconhecimento da soberania de cada país sobre seu respectivo território.

No entanto, a hipótese de solicitação de dados analisada pelo STF era diferente, referindo-se a fatos ocorridos no Brasil. E aqui está a importância do Marco Civil da Internet, que define quando atos praticados no mundo digital estão sujeitos à jurisdição brasileira. Segundo o art. 11 da Lei 12.965/2014, toda operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros e dados feita por provedores de conexão ou de aplicações de internet, “em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional”, deverá respeitar “a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”.

Atuando como terceiro interessado na ação, a empresa Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, defendeu no STF que o MLAT seria o “procedimento correto” para obtenção de dados controlados por empresas norte-americanas. É realmente peculiar que uma empresa que atua tão intensamente no País (são cerca de 116 milhões de contas no Facebook, 99 milhões de perfis no Instagram e 147 milhões de usuários de WhatsApp no Brasil) pretenda que a Justiça brasileira, ao precisar de algum dado relativo a essas contas, tenha de recorrer a um acordo de cooperação internacional.

Seja qual for o setor de atuação, toda empresa que opera no Brasil está sujeita à lei e à jurisdição brasileiras. Tentar escapar dessa realidade (ou limitar sua incidência) não é apenas uma manobra judicial pouco honrosa. Representa um desrespeito ao País.

 

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