sábado, 25 de fevereiro de 2023

Fernando Schüler* - O país sem convicção

Revista Veja

No Brasil, ‘até o passado é incerto’, na conhecida frase de Pedro Malan

Primeiro, foi com a regra do teto. Em 2016, o Brasil vivia a sua crise, o PIB cairia mais de 7% em dois anos, e alguns milhões de brasileiros cruzavam, para baixo, a linha da extrema pobreza. Foi aí que o país definiu uma regra fiscal para valer no longo prazo: o Orçamento só pode crescer no limite da inflação do ano anterior. Por vinte anos, com direito a uma revisão no meio do caminho. O problema é que rodamos no marshmallow test. Para quem não conhece, é aquele teste famoso em que se põe uma criança diante de uma guloseima, sabendo ela que se esperar alguns minutos ganhará, logo ali adiante, duas guloseimas. Uma parte das crianças, em geral as mais novas, não consegue esperar. É semelhante ao nosso caso. Pouco mais de seis anos depois de definir a regra, o país-criança decide mudar. Já havíamos furado a regra algumas vezes, mas agora vamos mudar de vez, sem fazer ideia do que colocar no lugar.

É o mesmo caso da Lei das Estatais. Na esteira da crise, em 2016, nossas estatais tiveram um resultado negativo de mais de 30 bilhões de reais. Havia um rastro de corrupção e o país resolveu fazer uma lei dura, impondo 36 meses de quarentena a quem comandou campanhas ou partidos políticos. Apontada como modelo pela OCDE, a lei ajudou o Brasil a melhorar não apenas no aspecto ético como também na performance das empresas, que atingiram seu melhor resultado no ano passado. Diante disso, o que faz nosso mundo político? Ainda na transição para o novo governo, aprova-se a incrível redução da quarentena de 36 meses para apenas um mês. Alguma avaliação técnica? Os investidores estão reclamando? Foi reduzido o retorno das empresas para o governo? As respostas são um tanto óbvias. Nas últimas semanas, Lula resolveu tirar o Banco Central e seu presidente para Geni. A autonomia do BC foi aprovada com folga no Congresso, e depois chancelada pelo STF. O ministro Barroso fez um voto exemplar, dizendo que instituições como o Banco Central não deveriam ser “submetidas a vontades políticas, mas a compromissos com a Constituição e o Estado brasileiro”. Tudo isso há menos de dois anos. A aprovação foi saudada como um avanço institucional, na linha do que fazem as grandes economias globais. Mas não tem jeito. Eleito, Lula diz que a autonomia do BC é uma “bobagem” e a presidente do partido diz que o Banco Central é a “última trincheira do bolsonarismo”. Não se trata de debate técnico sobre juros. É um sintoma: aceitamos um Banco Central independente, desde que os juros fiquem no patamar desejado pelo governo.

O tema é o mesmo com as privatizações. Em 2021, a Câmara dos Deputados aprovou a privatização dos Correios. O processo ficou parado no Senado, e o atual governo terminou por engavetar. Há casos mais curiosos. A privatização do Porto de Santos foi aprovada pela Antaq, recebeu parecer positivo da área técnica do TCU e o leilão está virtualmente pronto para acontecer. Provavelmente não irá. São anos de estudos e tramitação, a um custo difícil de estimar. E mais: de expectativas de investimentos geradas na região da Baixada Santista. No zigue-zague brasileiro, nada disso importa. Ainda agora lemos que o governo mandou a AGU tentar a reversão da privatização da Eletrobras. É provável que não dê em nada, mas não será pequeno o rastro de insegurança institucional deixado pelo caminho.

Há quem veja essas coisas como um retrocesso; há quem veja um avanço. Um “retorno do Estado ao comando da economia”, como li, por estes dias. A verdade é que não é nem uma coisa nem outra. Somos apenas um país cindido, sem uma convicção básica que seja em torno de uma agenda modernizadora. Tivemos um ciclo de reformas, e agora resolvemos puxar o freio. Dias atrás li um artigo culpando Lula pelo “retrocesso”. Perfeita injustiça. Na campanha, Lula foi bastante claro sobre o que faria. Ele expressa o que a maior parte da sociedade pensa, e por isso ganhou. Tudo perfeitamente democrático, não é esse o ponto. Poderíamos exercitar plenamente a democracia, com a sabedoria de preservar uma agenda básica de modernização.

De minha parte, o que mais incomoda é o experimentalismo, o país em que “até o passado é incerto”, na conhecida frase de Pedro Malan. O prêmio Nobel Douglass North escreveu longamente sobre a importância das instituições para “reduzir as incertezas próprias da interação humana fornecendo os incentivos para que haja cooperação e desenvolvimento”. Isso é perfeitamente lógico. Por que alguém investiria uma enorme quantidade de tempo e dinheiro desconfiando seriamente que as regras do jogo vão mudar daqui a dois ou três anos? Há uma extensa literatura sobre esse tema. O próprio North vai longe, na história moderna, mostrando como boa parte do sucesso econômico inglês, à época da Revolução Industrial, se deve ao redesenho institucional e à redução da instabilidade produzida pela Revolução Gloriosa, que fixou alguns parâmetros na política inglesa: limites claros às prerrogativas reais, sob a common law; soberania do Parlamento, na tributação; Judiciário independente; e segurança quanto aos direitos de propriedade.

A série de reformas que o país fez nos últimos anos foi precisamente na direção de uma maior estabilidade institucional. Foi esse o sentido da Lei Geral das Agências Reguladoras, aprovada em 2019, e do Marco do Saneamento Básico, que abriu o setor para a competição e vem atraindo uma montanha de investimentos. Ou ainda da reforma trabalhista. Estudo feito por pesquisadores da USP e do Insper mostrou como a regra inibindo a litigância de má-fé resultou em um aumento de 1,7 milhão de vagas no país entre 2017 e 2021. Daria para ir longe nisso. São reformas que não deveriam ser vistas como deste ou daquele governo, mas como nosso patrimônio comum. Previsibilidade e a garantia de direitos interessam ao elo mais frágil da vida social. A quem toma risco, empreende, investe, e a quem consegue um bom emprego porque alguém investiu. Nossa incompreensão sobre o tema talvez venha do clássico problema da prevalência do Estado sobre a sociedade na vida brasileira. Daí a imensa carga tributária, o peso desproporcional da máquina pública e a burocracia infernal em um país em que os “donos do poder” ocupam o centro do palco, e o indivíduo e seus direitos dançam conforme a música.

O problema é que estamos perdendo tempo. Um país pode sempre mudar de direção, mas ser jovem apenas durante algum tempo. E o nosso está passando. Há quatro décadas, tínhamos 45 milhões de pessoas com até 14 anos, e pouco mais de 7 milhões de idosos. Daqui a menos de quatro décadas, será o oposto. Teremos 73 milhões de idosos, e apenas 28 milhões abaixo dos 14. Estamos diante de um maremoto. O detalhe é que o caminho para a prosperidade passa por aumentar a produtividade e promover a abertura de mercado, a boa regulação, a segurança jurídica e a boa educação de verdade, não de mentirinha. Era sobre isso que Mario Covas falava, em nossa primeira eleição presidencial, quando dizia que precisávamos de um “choque de capitalismo”. Coisa que, trinta e tantos anos depois, parecemos ainda não compreender.

*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830

 

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