sábado, 25 de fevereiro de 2023

Oscar Vilhena Vieira* - Resiliência tem limites

Folha de S. Paulo

Sofrimento e perdas com chuvas recaíram desproporcionalmente sobre mais pobres

Temos abusado de nossa resiliência. A palavra, que originalmente era empregada para designar a propriedade de certos materiais de recobrar sua forma original após serem submetidos a deformação, ganhou terreno, sendo hoje amplamente empregada pela psicologia, economia, estudos de clima e mesmo no direito (eu mesmo participei de um livro intitulado "Resiliência Constitucional").

A primeira vez que ouvi a expressão fora de uma aula de física foi na Praça da Sé, há mais de 30 anos. Após constatarmos a condição degradante a que estavam submetidos inúmeros jovens em situação de rua, no centro de São Paulo, muitos deles dependentes, minha colega de Comissão Teotônio Vilela, Cenise Monte Vicente, disse: "Esses jovens são incrivelmente resilientes; se tiverem apoio e oportunidades, conseguirão retomar suas vidas".

Nesse sentido, não me queixo pelo emprego generalizado da palavra para designar essa formidável capacidade, partilhada por alguns organismos e sistemas sociais, de recobrar o equilíbrio —e mesmo superar traumas— após serem submetidos a situações de extrema privação, sofrimento, pressão ou violência. Ela tem uma conotação de esperança. E isso é bom.

O fato é que a resiliência tem limites. Pessoas, comunidades, meio ambiente, assim como regimes democráticos, especializados em se adaptar, podem simplesmente colapsar ou se desvirtuar quando esses limites são ultrapassados.

Na tragédia do litoral norte, neste Carnaval, as diversas dimensões de nossa negligência com os limites da resiliência social, climática e política ficaram expostas. Se o evento climático extremo, associado ao nosso modelo de produção e consumo, foi a causa inicial da tragédia, o sofrimento e as perdas irreparáveis recaíram de maneira absolutamente desproporcional sobre os mais pobres. Mais pobres que, nas diversas partes do mundo, se encontram desproporcionalmente expostos aos efeitos da mudança climática.

No Sahy não foi diferente. Foram os que se apertam em habitações de um cômodo, em comunidades desprovidas de serviços públicos básicos, em busca de uma oferta de trabalho na riviera paulista, que perderam seus familiares, barracos e bens essenciais.

A mudança climática intensifica as brutais injustiças sociais e econômicas, não apenas no Brasil. A injustiça climática impacta o acesso a água, alimentação, infraestrutura básica de saneamento, educação, além de eletricidade e moradia de cerca de um terço da população ao redor do mundo. No que se refere especificamente a desastres naturais, estima-se que, apenas no Brasil, cerca de 10 milhões de pessoas vivam em áreas de risco e 2 milhões em áreas de risco extremo (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).

As democracias precisam ser capazes de dar respostas mais eficazes à profunda e persistente desigualdade, assim como à mudança do clima. Embora haja uma consciência cada vez mais ampla sobre esses desafios, a incapacidade ou indisposição de muitos governos de incidir sobre as questões da desigualdade e do meio ambiente, bem como de levar a sério a necessidade de implementar medidas de adaptação à mudança do clima, coloca as próprias democracias numa posição de extrema vulnerabilidade.

O declínio no número de regimes democráticos ou a degradação das democracias existentes, como sabemos, apenas contribuirá para aumentar a intensidade e gravidade de novas tragédias.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

5 comentários:

Fernando Carvalho disse...

Oscar Vilhena Vieira tocou no busílis. Democracia já foi uma bandeira da burguesia. A esquerda marxista-leninista condenava a democracia como um instrumento da burguesia, chamava-a de democracia formal. A burguesia, malandra, apresentava a democracia como sendo sua forma de governo. Quando na verdade era uma ditadura de classe. Para a esquerda clássica, averdadeira democracia seria a ditadura do proletariado. Acontece que a democracia não pertence a nenhuma classe social. "Demos" de democracia é povo. E povo é a maioria. E agora em pleno século XXI. O capitalismo em sua atual fase de desenvolvimento (cadáver insepulto) está apelando para o neofascismo (Trump. Viktor Orbán, Bostonaro). Cabe ao povo segurar firme em suas mãos a bandeira da democracia. E lutar pelo seu aperfeicoamento. Quanto mais democrática for a democracia, mais socializante, mais ecológico, mais fraterno e solidário será o mundo.

ADEMAR AMANCIO disse...

Comentário de alto nível.

Fernando Carvalho disse...

Ademar Amancio, querido. Muito obrigado! Um grande abraço do seu amigo. Aproveitando o ensejo, já fui cartunista e publiquei um livrinho. Me mande um endereço que mando um exemplar pra você.ferdocarvalho@gmail.com

Carla Lessa -ABJ/RJ disse...

Perfeito, Oscar. Resiliência tem limite e em verdade, o termo parece estar sendo adaptado à falência das políticas públicas, onde, à priori, deveriam incidir, senão na solução, ao menos na origem e de modo preventivo, aos problemas resultantes e enfrentados pela população.

Falou-se em dados relacionados à perdas e associados à favelização das encostas: um problema antigo , datando do Brasil-Império e arrastado à atualidade, porém no caso das desocupações em andamento nas décadas de 60/70/80, as políticas de habitação foram implantadas como viés de um "saneamento" previo para a reestruturação do cenário urbanidade, da outrora capital, gerando a polêmica remoção das famílias, alinhadas em áreas consideradas de interesse, pelas elites governamentais daquela época. Exemplifico com a conhecida desocupação do Morro da Catacumba, na Lagoa entre outras áreas. Mesmo ali, ainda se via alguma medida, vero, associada a juízos econômicos, mas necessária e direcionada por algum programa capaz de atender os sem-teto alojados de modo inadequado e ao abandono de direitos básicos como saneamento e água potável.

A geração suburbana é marca deste processo de crescimento degenerado e não planejado, porém desdobramento de uma profunda desigualdade, onde o direito social do trabalho tece uma linha divisória das moradias e suas profundas diferenças de condições.
A Barra da Tijuca, onde hoje se assenta uma população economicamente emergente, reflete bem a discriminação econômica como pano de fundo para que o estado conssinta ou não as áreas invadidas, tendente o poder público a garantir serviços públicos e tributação ou não.

Fato é que o desordenamento urbano, mesmo em áreas de prevalente poder econômico, passa a figurar como um grave problema a ser enfrentado. O projeto de urbanização da cidade do Rio de Janeiro expirou o longo prazo das suas construções que, quando pensadas, formularam período válido para a cidade pudesse se adaptar ao seu crescimento.

Durante as chuvas passadas, foi nítido o quanto precisaremos reformular as grandes cidades para que o sistema pluvial e de saneamento adequados não inundem as vias ou coloque em risco as populações com menor capacidade de moradia adequada.

Ainda enfrentamos a cruel realidade das empreiteiras, hoje também nas mãos de milicianos, dominando não apenas os bairros como o setor da construção civil e promovendo edificações inadequadas e pouco "resilientes" às intempéries climáticas e ações geológicas.

Se já achávamos que com Sérgio Nader a irresponsabilidade criminosa era o seu àpice, vivemos agora o pior pesadelo que a política de moradia e segurança já enfrentou!

Uma cidade "resiliente" passa por governos firmes e técnicos, além de comprometidos com o bem estar social, eivado por coragem e consciência, através de um povo lúcido e preparado para exercer o seu papel transformador, enquanto agente histórico. Nisto, a educação é o pilar! E como não se investe neste salvo-conduto, o Brasil do século XXI ainda convivem com as mesmas mazelas daquele Brasil-Império.

Triste realidade a nossa!

Fernando Carvalho disse...

Boa, Carla Lessa. Uma vez eu disse ao Gilvan que se neste blog as pessoas começassem a trocar ideias justamente na seção de comentários, ele seria a melhor tribuna de discussão das grandes questões que atormentam nosso país. Acho que chegamos lá. Esses problemas que sempre caem nas costas do povo, seja uma enchente no Brasil ou o terremoto na Turquia e na Síria. No caso do terremoto ficamos sabendo que devido à canalhice capitalista foram construídos muitos edifícios sem a tecnologia que já existe para as construções resistirem a terremotos. Os empreiteiros ganharam mais dinheiro e os cemitérios mais corpos. Quanto ao Brasilzinho está cada vez melhor: temos no Brasil urbano povo "com menor capacidade de moradia adequada" (permita-me fazer humor com suas palavras, Carla Lessa), moradias que a enxurrada leva. Moradias construídas por milicianos empreiteiros. E na Amazônia milicianos garimpeiros (ouro), madeireiros, farmacêuticos (drogas da amazônia). Etc., etc., etc. E essa nossa "profunda desigualdade" Carla, começou no século XVI. Nos anos 1530, segundo César Benjamin (Marx e a Transformação Social), organizou-se uma empresa territorial(...), com administração portuguesa, capital e tecnologia europeus, e mão de obra africana (escravos). Tais elementos foram articulados numa 'holding' multinacional, regida pelo cálculo e pela busca do lucro. O Brasil ainda não é um país, é uma empresa privada gigantesca. E negros escravizados, índios, favelados e moradores de rua é tudo combustível queimado por essa empresa dirigida por bilionários.