Erros do passado assombram nova gestão do BNDES
O Globo
Ao defender mudança na TLP e banco ‘mais
atuante’, Mercadante traz de volta fantasmas das gestões petistas
Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva se insurgia contra a autonomia do Banco Central e a taxa de juros, o
economista Aloizio Mercadante assumiu o BNDES avisando que deseja um banco
“mais atuante”, particularmente no apoio à indústria e às empresas de menor
porte. Argumentou que o Brasil não pode ser apenas a “fazenda do mundo”. Há um
sentimento entre economistas ligados ao PT de que o BNDES deve ser o vetor da
“reindustrialização” do Brasil. As ideias e o histórico de Mercadante despertam
o receio de que se repitam erros cometidos no passado.
“Na cabeça do Lula existe um BNDES velho; os tempos são novos, e o banco precisa refletir isso”, disse ao GLOBO o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES. O banco é uma fonte importante de crédito para projetos de longo prazo, incertos para o capital privado. Mas sempre foi usado para favorecer empresários próximos ao poder, criando distorções no mercado de crédito de impacto deletério para todos os demais investidores e consumidores.
Durante as gestões petistas, os desembolsos
anuais do BNDES atingiram o patamar de 4,3% do PIB. Desse montante, 80% foram
destinados a grandes empresas. Entre 2008 e 2014, o BNDES recebeu R$ 570
bilhões em recursos públicos, e o Tesouro teve de tomar emprestado a taxas de
mercado R$ 184 bilhões para financiar os subsídios do banco. Os principais
mecanismos usados pelas gestões petistas para subsidiar o crédito eram a Taxa
de Juros de Longo Prazo (TJLP) — os “juros camaradas” — e programas sob medida
para projetos de interesse político, como o Programa de Sustentação do
Investimento (PSI) ou o Inovar-Auto.
O fim da TJLP, substituída em 2018 pela
Taxa de Longo Prazo (TLP), do PSI e a reorganização do BNDES na gestão Michel
Temer propiciaram o crescimento do mercado de crédito privado e a redução geral
nas taxas de juros. Ao mencionar a necessidade de mudanças na TLP em seu
discurso de posse, Mercadante despertou a preocupação de que o BNDES volte a
ser um instrumento de favorecimento político. Como escreveu a economista Zeina
Latif em sua coluna no GLOBO: “É necessário cuidado para não abrir precedentes
perigosos, como a mudança do cálculo da TLP para setores específicos ou o
aumento do crédito em áreas que fogem à missão do banco”.
Qualquer subsídio deveria, de acordo com o
economista Samuel Pessôa, do Ibre/FGV, ser aprovado explicitamente pelo
Congresso e constar do Orçamento, como acontece com o crédito agrícola. E não
faz sentido investir no fetiche da “reindustrialização” apenas para agradar a
setores dependentes do Estado. O mais sensato, sugere Latif, seria concentrar o
foco em segmentos de risco elevado, portanto subfinanciados, como
infraestrutura, inovação e transição energética. A palavra de ordem, diz ela,
precisa ser “avanço, e não mudança de rumo”.
Os recursos são finitos, e gastar mais que
o recomendado pela sensatez fiscal gera inflação, recessão e desemprego.
Subsídios sempre criam privilégios para uns à custa de todos os demais. “Para
incluir os pobres no Orçamento da União, é preciso retirar os ricos, quer
dizer, retirar diferentes subsídios, ineficientes e custosos ao país”, diz a
economista Maria Silvia Bastos, ex-presidente do banco. O BNDES do futuro
precisa fazer escolhas diferentes das que fez no passado.
Sem meio de sustento, garimpeiros voltarão
para as terras ianomâmis
O Globo
Não se discute a necessidade de retirá-los
da reserva indígena, mas é preciso oferecer-lhes alternativas
O governo começou a operação de retirada
dos garimpeiros das terras ianomâmis cortando suas linhas de suprimento nos
rios e vigiando o espaço aéreo sobre a região. O estrangulamento dos garimpos,
privados de água limpa e alimentos, já cumpre parte importante da tarefa de
retirar 20 mil garimpeiros da região. Se houver remanescentes, as Forças
Armadas terão de entrar em ação. O importante é tratar com urgência de um plano
para ocupar a população de garimpeiros desprovidos do sustento. O maior risco é
o crime organizado presente na região aliciá-los para atuar noutras atividades
ilegais, como desmatamento ou pesca clandestina.
Tal plano precisará da mobilização de
vários ministérios. Será necessário levar em conta que Boa Vista, capital de
Roraima, tem ligações estreitas com o garimpo, testemunhou e se beneficiou de
diversas corridas do ouro. No fim da década de 1980, pistas clandestinas também
rasgaram a floresta nas terras ianomâmis, e cerca de 40 mil garimpeiros
chegaram a entrar na reserva. É sugestivo que, na Praça do Centro Cívico, em
Boa Vista, haja a estátua de um homem com uma bateia em homenagem ao
garimpeiro, visto com simpatia pela população e apoiado pelo governador de
Roraima, Antônio Denarium (PP).
A atual corrida do ouro tem, contudo, uma
característica dramática a que todos os brasileiros foram expostos nas últimas
semanas. Ela atinge os indígenas de forma mais direta pela transmissão de
doenças contra as quais eles não dispõem de barreiras imunológicas como os habitantes
das cidades e pela contaminação dos rios com o mercúrio que envenena os peixes
e destrói plantações. O resultado tem sido a fome e a morte de ianomâmis por
inanição, sobretudo crianças.
É imprescindível, por isso, identificar os
donos dos garimpos, que têm capacidade financeira para comprar o caro
equipamento usado na busca do metal por empregados de baixa qualificação, sob o
tacão de capatazes contratados por controladores da exploração, em geral
protegidos por conexões políticas locais.
Reportagem do GLOBO revelou que, até 2020,
o ouro ianomâmi comprado por lojas especializadas nesse comércio em Boa Vista
representava 20% do que a economia de Roraima vendia para fora do estado. Tal
contribuição foi extinta no ano passado, devido às operações policiais. O ouro
não deixou de sair da reserva indígena, mas passou a ser contrabandeado.
Não se discute que os garimpeiros precisam ser retirados da reserva ianomâmi, por espalharem miséria e doenças entre os indígenas. Mas é preciso que o governo, com apoio local, ofereça alternativas econômicas aos garimpeiros, para evitar que retornem à reserva trazendo ainda mais danos à população indígena.
Herança à paulista
Folha de S. Paulo
Tarcísio acerta quando se guia por
interesse público em vez de ideologia
O governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), apoiou-se na responsabilidade orçamentária ao vetar o
projeto de lei que reduzia o imposto sobre doações e heranças (ITCMD) no estado.
Haveria mais argumentos a utilizar, mas o fundamental é que a decisão se
amparou em critérios técnicos, acima de ideologias.
Tarcísio foi diplomático ao justificar
formalmente a medida, mencionando os "elevados propósitos" do
legislador —o autor do projeto é o deputado estadual Frederico d’Ávila (PSL),
identificado com o bolsonarismo que garantiu a vitória eleitoral do governador.
Conforme aponta a mensagem de veto, o
projeto —que pretendia baixar as alíquotas do ITCMD de 4% para 1%, nas
heranças, e 0,5% nas doações— subtrairia R$ 4 bilhões anuais da arrecadação
paulista, sem indicar um corte correspondente de despesas estaduais como
determina a legislação.
A exposição de motivos é caridosa diante da
desfaçatez da proposta aprovada pela Assembleia Legislativa. Tratava-se de
tentativa descarada de favorecer a parcela mais rica dos contribuintes, amparada em
um arrazoado tosco que pretendia emular teses liberais.
O imposto sobre heranças rendeu pouco mais
de R$ 4 bilhões aos cofres paulistas no ano passado, parcela minúscula de uma
receita de R$ 321 bilhões. A alíquota local é metade do teto nacional de 8%,
que nada tem de elevado para os padrões internacionais.
Embora eleito com apoio decisivo do
bolsonarismo, Tarcísio mostra sinais positivos de moderação e pragmatismo neste
início de governo. A demonstração mais evidente é a proeminência do secretário
de Governo, Gilberto Kassab (PSD), cujo partido faz parte da base aliada ao
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O governador, até aqui, parece disposto a
manter relação institucional com Brasília. Um exemplo são as negociações para a
privatização do porto de Santos, que enfrenta a oposição do governo federal.
Foi positivo o recuo no intento de
abandonar o programa de câmeras corporais para os policiais militares, mesmo
tendo nomeado um nome da linha-dura da corporação, Guilherme Derrite (PL), para
a Secretaria da Segurança Pública.
Tarcísio também se pautou pelo interesse
público ao sancionar a lei que permite a distribuição pelo SUS no estado de
medicamentos produzidos a partir de derivados de maconha, um tema que poderia
gerar desgaste com a parcela mais conservadora do eleitorado.
É cedo, claro, para uma avaliação de seu
governo. Pode-se afirmar, ao menos, que as chances de ser bem-sucedido
crescerão se houver respeito ao conhecimento e à experiência administrativa.
Mais que o terremoto
Folha de S. Paulo
Contexto político dramático se mistura ao
sismo que atingiu Turquia e Síria
Eventos geológicos inevitáveis de um
planeta formado por placas tectônicas que se atritam enquanto flutuam sobre
mares de massa incandescente, terremotos por vezes trazem mais do que
destruição e morte ao registro histórico.
O mais famoso sismo europeu, o de Lisboa em
1775, marcou a psiquê do continente com debates filosóficos acerca da natureza
divina e do cenário português —com o projeto arquitetônico do despotismo
esclarecido de Marquês de Pombal, o reconstrutor da capital.
Geralmente, contudo, apenas aspectos
trevosos são colocados em evidência com essas tragédias, como comprova
a que se abateu sobre Turquia e Síria, na segunda (7).
Ali, a expressão idiomática inglesa ganha
sentido claro mesmo em português: foi adicionado insulto à injúria. Não
bastassem os mais de 20 mil mortos contados até agora, o incidente
se mistura à turbulência política da região.
A situação é mais grave na Síria, país
assolado por uma guerra civil desde 2011. O efeito do conflito se espraia sobre
o do terremoto.
Primeiro, porque segundo a ONU as áreas
afetadas concentram cerca de 4 milhões de sírios dependentes de ajuda externa,
além de 64% dos 5,4 milhões de refugiados dos combates, que procuraram abrigo
justamente na vizinha Turquia.
Somadas a vítimas com vulnerabilidades
diversas, a Organização Mundial da Saúde verifica 23 milhões de pessoas sob
risco imediato de desabastecimento e doenças.
Segundo, a ditadura de Bashar al-Assad
impôs a centralização dos esforços de ajuda, o que impede na prática o alcance
a regiões ainda dominadas por rebeldes jihadistas.
Já na Turquia, mais estruturada, a
resposta vista como fraca pela população coloca pressão sobre o governo
autocrático de Recep Tayyp Erdogan,
homem-forte desde 2003.
É possível que o presidente adie as
eleições gerais de 14 de maio, nas quais deverá concorrer, sob o pretexto da
prioridade humanitária. Isso irá demonstrar o temor do impacto do sismo sobre
sua posição, até aqui desafiada, mas considerada forte o suficiente para a
vitória.
Ancara está no centro de tensões regionais, equilibrando-se entre o apoio à Ucrânia e a boa relação com a Rússia. Ademais, enfrenta a maior inflação dos últimos 25 anos. Erdogan, por fim, olha a própria história: sua ascensão ao poder veio justamente na esteira de quatro anos de descontentamento com a reação oficial ao terrível terremoto de 1999 no país.
Caso no STF resume mazelas nacionais
O Estado de S. Paulo.
Decisão do Supremo sobre eficácia da coisa
julgada explicita a urgente necessidade de um novo sistema tributário, simples
e funcional, e de um Judiciário menos lento e menos imprevisível
A recente decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre a eficácia da coisa julgada em matéria tributária traz
problemas sérios. Empresas que recorreram ao Judiciário com boa-fé e obtiveram
suas decisões definitivas favoráveis terão seus direitos perdidos por força de
um posterior posicionamento do Judiciário em processo com repercussão geral.
Aquilo que parecia definitivo – que a própria Justiça tinha dito que era
definitivo – já não é tão definitivo assim. Sempre estará sujeito a uma nova
avaliação do Supremo. A sensação é de perplexidade. Há ainda alguma segurança
jurídica?
Ao mesmo tempo, é de reconhecer que, caso o
Supremo desse uma decisão em sentido oposto, autorizando a prevalência da coisa
julgada em ação individual sobre a orientação em processo com repercussão
geral, outros sérios problemas seriam criados. Haveria duas classes de
contribuintes: a dos que têm de se submeter ao regime geral (e precisam pagar
seus impostos) e a dos que conseguiram um regime especial pela via judicial (e
não precisam pagar impostos que todos os outros têm de pagar). A decisão
desrespeitaria o princípio fundamental da igualdade de todos perante a lei.
Além disso, essa diferenciação seria profundamente disfuncional, ao criar um
fortíssimo estímulo à judicialização das questões tributárias.
Não havia solução fácil. No entanto, mais
do que uma disputa entre argumentos favoráveis e contrários, a decisão do STF
sobre a coisa julgada suscita outra série de questões. De forma muito viva, ela
explicita o caráter absolutamente insustentável da situação dos tributos no
País.
É preciso ter, com urgência, um sistema
tributário mais simples e funcional, que não gere tantas dúvidas, tantas áreas
cinzentas, tantas possibilidades de interpretação. O atual regime é ruim para
todos, exceto talvez para quem vive da judicialização das questões tributárias.
A responsabilidade por prover um novo sistema tributário é da sociedade e, de
forma muito concreta, do Congresso e do Palácio do Planalto.
A revolta suscitada pela decisão do Supremo
deve ser estímulo para que a sociedade civil exija do Legislativo e do
Executivo federal a aprovação urgente de uma reforma tributária séria, simples
e clara. Esse é o caminho para que o Judiciário não precise ser tão acionado –
para que se torne contraproducente acioná-lo – e, assim, ele tenha, na prática,
menos poder sobre os tributos. Mas para isso o Congresso precisa trabalhar.
A decisão do STF desvela também a incrível
disfuncionalidade do sistema de Justiça: lento, caro e arbitrário. Ao
privilegiar a eficácia dos processos com repercussão geral, o STF explicita um
velho problema da Justiça brasileira. Com enorme frequência, os juízes e
tribunais não seguem a jurisprudência e as orientações dos tribunais
superiores. Muitas vezes, a independência dos magistrados é entendida como
sinônimo de autonomia absoluta. Cada vara seria um feudo. A decisão do STF é um
chamado, sob pena de colapso do sistema, para uma aplicação do Direito mais
uniforme, menos randômica, mais fundamentada. É dessa insegurança que os contribuintes,
com toda a razão, se queixam. A Justiça não pode ser uma loteria.
A decisão do STF é também alerta para os
próprios ministros da Corte. Se as ações com repercussão geral têm tanta força,
prevalecendo até mesmo sobre decisões transitadas em julgado, é preciso prover
um novo patamar de estabilidade à jurisprudência. Não é possível mudar tanto e
com tanta velocidade. O exemplo de respeito pelas decisões do Supremo deve
começar no próprio tribunal, também por uma compreensão mais institucional da
colegialidade.
O recente julgamento do Supremo joga luzes
sobre a demora da prestação jurisdicional. Ela é tão drástica, com efeitos tão
perversos sobre muitas empresas, não porque seus fundamentos estejam
equivocados, mas porque a Justiça demora muito.
Com sua decisão, o STF exige, com razão, o
respeito de todos às suas orientações. Que ele e toda a Justiça respeitem o
cidadão, sem tantos atrasos e tanta imprevisibilidade.
É preciso aperfeiçoar o MEI
O Estado de S. Paulo.
Estudo do FGV Ibre aponta distorções e
falta de foco no programa criado para promover a inclusão previdenciária de
trabalhadores que atuam na informalidade
Políticas públicas bem-intencionadas podem
gerar distorções e consumir recursos que seriam mais eficazes na redução de
desigualdades se fossem aplicados de forma diferente. De fato, fazer o dinheiro
do Orçamento chegar a quem mais precisa não é nada fácil − e o Brasil,
infelizmente, coleciona exemplos de boas ideias que acabam produzindo efeitos
inversos aos desejados. Um novo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da
Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre) joga luz sobre a necessidade de
aperfeiçoamentos no regime do Microempreendedor Individual (MEI), tema que
merece atenção do governo e do Congresso.
Criado em 2008, o MEI foi concebido para
induzir a formalização de trabalhadores autônomos de baixa renda, viabilizando
a sua inclusão previdenciária e incentivando o microempreendedorismo. Mas o que
deveria ser uma iniciativa focalizada nas parcelas mais vulneráveis dos
empreendedores informais tem servido também a trabalhadores com perfil de
escolaridade e renda superior ao de quem tem emprego formal. Eis o que indica a
pesquisa realizada pelos economistas Fernando Veloso e Fernando de Holanda
Barbosa Filho, que se valeram de um modelo estatístico para superar a falta de
dados socioeconômicos detalhados nos registros do governo.
As estimativas, referentes ao segundo
trimestre de 2022, apontam para uma realidade distinta daquela que inspirou a
criação do MEI: enquanto 31,3% dos microempreendedores individuais tinham
ensino superior completo, esse índice era de 15,7% entre o conjunto de
trabalhadores por conta própria, de 12,7% entre empregados sem carteira
assinada e de 22,4% entre quem tinha carteira assinada. No quesito renda, repetiu-se
padrão semelhante, com 56,4% dos microempreendedores individuais ganhando acima
de dois salários mínimos por mês, ante 32,1% dos trabalhadores formais, 27,6%
do total de trabalhadores por conta própria e 15,6% dos empregados sem
carteira. Resta evidente que o perfil socioeconômico de quem era MEI superava o
de outros trabalhadores informais. Uma distorção.
Vale notar que o regime de MEI depende de
subsídios para existir, pois a contribuição cobrada dos microempreendedores
individuais é insuficiente para cobrir os benefícios que o regime oferece:
aposentadoria no valor de um salário mínimo, auxílio-doença, aposentadoria por
invalidez e salário maternidade, entre outros. A conta só fecha com recursos
adicionais.
Em artigo publicado na revista Conjuntura Econômica,
o pesquisador Luiz Guilherme Schymura, do FGV Ibre, lembrou que o número de
participantes do MEI saltou de 44,2 mil, em 2009, para 14,8 milhões no ano
passado. À medida que essas pessoas se aposentarem, o subsídio deverá aumentar.
Sem falar que mais da metade dos filiados é inadimplente, fazendo crescer a
necessidade de aportes cada vez maiores. Schymura criticou as regras atuais:
“Trata-se de um subsídio maciço e um grande custo fiscal que se joga para as
próximas gerações, em relação a um programa que tem todos os indícios de
focalizar muito mal o seu público pretendido.”
A preocupação com a falta de foco do MEI
também foi explicitada pelos especialistas em previdência Rogério Nagamine
Costanzi e Otávio Sidone, em capítulo do livro Para não esquecer: políticas
públicas que empobrecem o Brasil, organizado por Marcos Mendes. A despeito das
boas intenções e de avanços viabilizados pelo MEI, eles observaram que somente
16% dos participantes estavam entre os 50% mais pobres do País. Alertaram ainda
para outro problema: a indesejável migração de contribuintes regulares da
Previdência atraídos pelas condições mais favoráveis do regime para
microempreendedores individuais, algo que vai na contramão da proposta de
inclusão previdenciária, além de afetar negativamente as contas do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS).
Um princípio elementar de qualquer política
pública é basear-se em evidências, e elas estão à vista de todos: há motivos de
sobra para rever e aperfeiçoar o MEI, se o objetivo é realmente ajudar os que
mais precisam.
A transparência não é opcional
O Estado de S. Paulo.
Lula pode dispensar o porta-voz da
Presidência, mas não pode se desobrigar do escrutínio da sociedade
É lamentável a decisão do presidente Lula
da Silva de seguir o movimento de inflexão promovido por seu antecessor e
dispensar os serviços de um porta-voz da Presidência. Perdem Lula, a sociedade
e a democracia.
Em agosto de 2020, Jair Bolsonaro exonerou
o general Otávio Rêgo Barros da função de porta-voz porque o militar era em
tudo diferente dele, razão pela qual ganhou mais projeção do que deveria –
pecado mortal para qualquer pessoa que tenha trabalhado próxima ao “mito”.
A cordialidade e o espírito público
demonstrados por Rêgo Barros no curto período em que foi a voz oficial da
Presidência não tinham lugar em um governo marcado pela hostilidade ao
jornalismo profissional, pela aversão à transparência e pela instigação de
confrontos incessantes com segmentos da sociedade.
Desde então, a figura do porta-voz foi
abolida da vida política nacional.
No atual governo, ainda que por razões
presumivelmente diferentes – afinal, Lula é um sujeito verboso por natureza –,
o porta-voz também parece carecer de prestígio. “No momento, não sentimos a
necessidade específica do cargo de porta-voz”, afirmou a Secretaria de
Comunicação Social da Presidência (Secom) em nota ao Estadão. Ora, ter ou não
um porta-voz da Presidência não se trata de uma “necessidade específica” do governo
de turno, mas, antes, de uma boa prática democrática.
A figura do porta-voz da Presidência é tão
imbricada com a própria ideia de democracia, por seu evidente liame com o
princípio da transparência na administração pública, que ninguém consegue imaginar,
por exemplo, um dia normal na Casa Branca sem os briefings regulares conduzidos
pela Secretaria de Imprensa dos EUA.
Até Donald Trump, personificação das
maiores ameaças à democracia norte-americana na história recente, teve não um,
mas quatro press secretaries ao longo do mandato. Dia sim e outro também, esses
servidores tinham de confrontar as perguntas dos jornalistas – a rigor, da
sociedade – e prestar contas das decisões e das omissões do governo federal.
Não ter um porta-voz, portanto, pode ser uma
decisão bastante confortável para Lula se o presidente não quer ser escrutinado
diariamente por suas decisões, mas é péssima para o vigor democrático da
sociedade e para o registro histórico.
Ademais, como disse o general Rêgo Barros
ao Estadão, a figura do porta-voz é “ferramenta necessária à estrutura do
poder” por servir como espécie de anteparo da autoridade presidencial aos
“embates desnecessários” com os jornalistas.
Na República, o governante tem de prestar
contas aos cidadãos. Em encontros periódicos com o portavoz da Presidência,
jornalistas fazem as perguntas que estão nas ruas, vocalizando receios,
dúvidas, angústias e esperanças da sociedade. Por óbvio, esse escrutínio há de
ser respeitoso, mas nem sempre é agradável, razão pela qual, tradicionalmente,
a função de porta-voz é exercida no Brasil por diplomatas e jornalistas,
comunicadores hábeis por dever de ofício.
Lula não deveria, mas pode dispensar o porta-voz para dialogar institucionalmente com a sociedade. O que não pode, jamais, é se desobrigar da transparência.
Além da lei das estatais, agências correm
risco
Valor Econômico
O presidente parece disposto a pagar o
preço dos acordos com o Centrão
A abertura do governo aos partidos aliados
e mesmo recalcitrantes, pelas vias formais de cargos e ministérios, está
fazendo o Executivo e o Legislativo ampliar de tal maneira as possibilidades de
acomodação a ponto de tornar inevitáveis no futuro problemas de coordenação e
agilidade na tomada de decisões. O governo de Lula voltou às origens, com 37
ministros alojados em 30 ministérios, mais três secretarias e quatro órgãos
equivalentes a pastas. Seis deles foram reservados ao PSD, MDB e União Brasil,
partido dividido que ainda não se sente representado no governo. Agora,
parte-se para a divisão no segundo escalão, autarquias e estatais.
O loteamento do Estado, que no primeiro
governo de Lula privilegiou o PT, agora é mais “democrático”, pois a coalizão
governista é minoritária em uma Câmara dominada pelas legendas fisiológicas do
Centrão. A moeda corrente das alianças voltou a ser a distribuição de cargos,
depois que o PT flertou com a aceitação do orçamento secreto, antes dele ser
fulminado pelo Supremo Tribunal Federal.
Para arrumar espaço a indicações
político-partidárias, as restrições existentes têm de ser derrubadas, ou
tornadas flexíveis a ponto da inocuidade. Um dos mais sólidos pilares da
racionalidade administrativa, a lei das estatais, ruiu na Câmara ao apagar das
luzes da legislatura anterior, com uma emenda de última hora a um projeto que
tratava de publicidade das estatais. O fim prático da quarentena de 3 anos para
ocupar cargos de direção das empresas estatais abrirá espaço para aventureiros
e politicagens de sempre e o clima é propício a considerar a vedação legal como
“criminalização da política”.
O projeto está parado no Senado e não serão
os partidos do Centrão ou o PT que se oporão a distorcer a lei das estatais se
as mudanças podem beneficiá-los. São mais de 450 cargos influentes e bem
remunerados em jogo e da parte do governo não parece haver o menor interesse em
preservar os limites legais.
Um alvo próximo são as agências
reguladoras. Logo no início de seu primeiro governo, Lula se estranhou com
elas, por não estarem subordinadas ao governo. Lula não interferiu em seus dois
mandatos, mas depois as agências foram sendo aparelhadas por indicações
políticas e diluindo seu caráter técnico. Uma das formas corriqueiras de
miná-las por dentro foi a indicação para órgãos reguladores de participantes
que trabalharam na iniciativa privada em setores econômicos por elas regulados.
Mesmo assim, sua independência provou-se
valiosa, como mostrou o exemplo da Anvisa durante a pandemia, opondo-se ao
charlatanismo homicida do então presidente Jair Bolsonaro. Agora, o deputado
Danilo Forte (União Brasil-CE) pegou carona na MP 1154, que estabelece nova
organização da Presidência e dos ministérios, e apresentou a emenda 54,
subordinando as agências reguladoras aos ministérios, retirando-lhes a edição
de “atos normativos” e entregando-os a conselhos políticos. Em sua composição
entrariam representantes das pastas, de setores regulados, da academia e dos
consumidores.
Decisões técnicas e especializadas, se a
emenda vingar, serão contornadas ou escamoteadas por influências políticas e
privadas, esvaziando os órgãos reguladores e reduzindo seus pareceres a mais
uma opinião entre outras. A emenda anula poderes das agências, estando
implícito que os ministérios estão muito mais abertos a influências políticas
do que as agências em sua configuração legal. Ainda que isso possa não redundar
em cargos para loteamento (ao que se sabe até agora), abre caminho para lobbies
variados em decisões vitais para o funcionamento da economia.
A Câmara dos Deputados, dirigida por Lira,
reeleito para o cargo com apoio quase unânime dos partidos (apenas dois não
votaram nele), está tendo problemas para contentar todo mundo, em especial o
maior partido da Casa, o PL, inchado pelos bolsonaristas e que conta com 99
deputados. Ontem a Câmara aprovou projeto de resolução para criar mais cinco
comissões, levando o total a 30. No início eram 12 comissões. O relator, Hugo
Motta (Republicanos), deu justificativa original: o aumento levava em conta a
proliferação dos ministérios. Um efeito é que os projetos terão de passar por
mais comissões do que antes.
“Quanto mais a gente demora para encontrar
uma solução, seja para MP ou projeto de lei, mais fica caro aprovar aquelas
coisas e fica cravada a desarmonia”, disse Lula aos líderes da base aliada. O
presidente parece disposto a pagar o preço dos acordos com o Centrão.
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