quarta-feira, 1 de março de 2023

Mércio Pereira Gomes* - Possibilidades conflitantes aos Yanomami (6)

Este sexto artigo final contém duas partes. A primeira apresenta a dinâmica dos fatores positivos e negativos mais evidentes que estruturam a questão indígena representada em alto nível de agudeza pelo caso Yanomami, conforme delineado anteriormente. A segunda parte constará da exposição de um quadro estratégico de ação político-cultural que poderia ser implementado, caso houvesse meios políticos para tanto, ficando subentendido o seu alto grau de dificuldade e, por certo, de incertezas.

Será dado um fecho a esta exposição.

Premissa primeira. O ingente e singular povo indígena Yanomami tem enfrentado, resistido e sobrevivido a mais de meio século de acossamento civilizacional. Esta é a primeira realidade a ser constatada. Comparado a outros casos passados, sua sobrevivência é um feito notável, porém não de todo surpreendente, pois consequente às ações da sua parte e da parte de outros agentes e fatores complementares. No núcleo dessa dinâmica estão os seguintes fatores positivos:

1. Os Yanomami são um povo culturalmente resiliente às investidas da sociedade envolvente ao ponto de preservar seu espaço sociocultural distinto, apesar das imensas perdas populacionais sofridas. Do ponto de vista territorial, eles detêm hoje um espaço que jamais detiveram no passado. Sua população, apesar das mortes infligidas de fora por doenças e ocasionais ataques belicosos, bem como auto-inflingidas em suas guerras intestinas, está em nível provavelmente regular em comparação ao seu passado, senão, quiçá, crescente.

2. A política indigenista brasileira, em seu dever moral de proteção e assistência, atuou em atropelos, falhando em muitas ocasiões, como de praxe em todos os casos recentes e passados, porém ao final alcançou uma positividade geral de resultados. Evidentemente precisa ser melhorada.

3. Os amigos externos procedentes de várias nacionalidades conquistados pelos Yanomami, identificados por modos de pensar e agir um tanto distintos, estando, de um lado, missionários, antropólogos, jornalistas e militantes do indigenismo laico, incluindo médicos e advogados; e do outro lado, complementarmente, indigenistas e corpos de  saúde estatais, defensores públicos, militares rondonianos e políticos nacionalistas – têm sido quase sempre competentes, dedicados e leais.

4. A opinião pública nacional, via largos e heterogêneos segmentos da classe média brasileira, tem reverberado sentimentos de empatia e conforto moral aos Yanomami, ao longo de todos esses anos. Suas expectativas maiores compreendem o ideal da sobrevivência dos Yanomami como sociedade e cultura, havendo uma predisposição para propor mudanças culturais consideradas necessárias para torná-los mais perspicazes às realidades nacionais e mundiais. Prevalece um sentimento de reconhecer alguma forma de compensação histórica por suas perdas gerais e pelas pressões de várias naturezas e teores, sem prejuízo de sua inserção no mundo mais amplo. São ideias vagas, sem deslindamento à vista, porém dignas de nota.

5. A massa geral do povão brasileiro acompanha vagamente os acontecimentos, torce por um desenlace feliz aos Yanomami, mas sem maior compromisso com uma solução que não sabe qual seria.

6. O Estado brasileiro ausculta a opinião pública nacional, especialmente a classe média, e relaciona-a com a opinião mundial e suas indisfarçáveis pressões, sobretudo em função do discurso escatológico sobre o papel da Amazônia sobre o meio ambiente do planeta Terra, quiçá do sistema solar.

7. O mundo, principalmente dos poderes euro-americanos, mas também por olhares curiosos de outras partes, configurado em agências privadas de intervenção financeira e ideológica, e em instituições da ONU, avalia corriqueiramente as condições de viabilidade política e militar de controle da Amazônia, imaginando todo tipo de cenário geopolítico atual e em algum futuro próximo.

O conjunto de fatores negativos vêm em seguida. Alguns deles, na verdade, fazem parte da variedade dos fatores positivos acima apresentados. A ambiguidade do Estado, do papel exercido por ONGs e missionários, militares e indigenistas e o panorama internacional também têm atribuições de ordem negativa.

1. Os garimpeiros em grupos e equipes financiados por empresários e políticos locais foram os primeiros a marcar presença destrutiva sobre os Yanomami. Trabalham fora da lei, já que a proposta de legalização, enviada aliás pelo segundo governo Lula, em 2007, não prosperou nas instâncias legislativas. Além do estrago que fazem nos leitos e margens dos rios, destruindo nichos ecológicos de peixes e outros animais ribeirinhos, há o gravíssimo caso de poluição dos rios e consequentemente dos peixes pelo contato com o mercúrio usado no processamento de retirada do ouro dos cascalhos e areias recolhidos.

Para além disso há o contato direto com os próprios índios, atraídos pelo desejo de obter bens industriais ou aliciados como pequenos parceiros para melhor garantir o trabalho sem resistência. O interesse de muitos índios dificulta o controle externo pela Polícia Federal e funcionários da Funai. Por esse contato passam doenças epidêmicas, alimentos malfazejos para a dieta tradicional Yanomami e, com alguma frequência, doenças venéreas e gravidezes indesejadas nas índias. Em diversos casos recentes, os filhos mestiços são rejeitados pelos Yanomami e abandonados nas cidades para adoção ou para a morte. A atração do garimpo, os alimentos da cidade que são fornecidos e a convivência exdrúxula e desrespeitosa, própria de quem se sente superior, provocam mal estar, indisposição ao trabalho de fazer roças e tocar a vida normal, com a funesta consequência de provocar desnutrição, inanição e a morte dos mais frágeis, especialmente crianças. Não há como melhorar essa situação, se não por sua negação.

Se um dia os Yanomami decidirem por garimpar suas terras, de modo legalizado, com a ajuda de garimpeiros, há de ser por outro relacionamento e outras técnicas de produção.

2. Os militares, representando o segmento do Estado brasileiro encarregado de  manter a segurança das fronteiras, a incolumidade do território nacional e a realidade física da soberania nacional, são um fator negativo permanente pairando sobre os Yanomami, já que suas terras estão na fronteira com a Venezuela, do lado da qual estão outras comunidades e grupos locais do mesmo povo. É certo que o Brasil mantém boas relações com seus vizinhos lindeiros; porém os princípios de segurança militar não facultam o relaxamento a esse respeito. De sorte que os militares têm um papel potencialmente negativo sobre os Yanomami, e só com uma boa estratégia é que poderiam criar um relacionamento positivo. No cômputo geral dos anos de relacionamento, avalia-se que tem havido um razoável entendimento entre militares e Yanomamis. Estes fazem pequenas demandas por bens ou serviços aos militares e os militares se comportam com superior condescendência, sem deixar de socorrê-los de modo consistente.

3. Responsável constitucionalmente pela defesa e proteção das terras indígenas e de certo modo pelo bem estar dos índios, o Estado, via órgãos de proteção, assistência, de saúde e educação, bem como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e as Forças Armadas, se apresenta disposto a prestar seus melhores serviços aos Yanomami. Junto a eles vem uma panóplia de auto-oferecidos órgãos e serviços, como segmentos do Judiciário, ministérios da Defesa, Meio Ambiente, Saúde, Direitos Humanos, Promoção da Mulher, Minorias, etc, bem como seus correspondentes estaduais e municipais, todos demonstrando total boa vontade em servir aos Yanomami, como aos demais povos indígenas que estejam com algum tipo de trauma. Entretanto, tanta dedicação raramente produz tantos bons efeitos. Ao contrário, segundo experientes antropólogos, provoca desorientação e desconforto. Esta espécie de prateleira de serviços públicos foi instalada após a redemocratização do país, no fundo como um pleito ou compromisso de compensação. Os índios naturalmente não recusam serviços e bens doados e até exigem-nos quando não os recebem, mas a obsequiosidade transtorna, tal como estamos vendo nesta chamada crise sanitária dos Yanomami.

4. Por interesses díspares, por idiossincrasias ou por outros motivos, os chamados amigos dos índios também se excedem em mesuras, empatia e comprometimento que, em geral, raramente duram e frequentemente provocam conflitos entre si e com outros fatores positivos. É uma questão de dosagem de condescendência, para não dizer, às vezes, de incompreensão de seu papel de amigo dos índios. Conflitos entre antropólogos entre si e entre indigenistas laicos, entre missionários de uma denominação e de outra, entre outros profissionais, são muito frequentes. Às vezes os conflitos são explorados pelos índios em seu favor, frequentemente desorganizando ações combinadas, açulam adversários e provocam consequências desastrosas. Isto acontece no caso dos Yanomami e nos casos mais dramáticos de disputas de índios com fazendeiros, madeireiros e garimpeiros.

Frequentemente as disputas entre amigos são abafadas, a bem da preocupação que os une. Em outros momentos, a união levanta entusiasmo acima das possibilidades e termina provocando a reação dos fatores negativos. Às vezes, acontece de uma ONG indigenista exagerar num acontecimento de violência entre garimpeiros e indígenas na expectativa de chamar a atenção e providências devidas, quando na realidade o acontecimento é irreal. Um exemplo externo aos Yanomami vem à baila. Na luta quieta que, por muitos anos, a FUNAI manteve para estabelecer novas terras indígenas para os Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva, do Mato Grosso do Sul, um grupo de antropólogos se uniu a um grupo de missionários e ao Ministério Público para fortalecer a proposta de demarcar largos territórios para estes índios, o que levaria à retirada de uma quantidade imensa de fazendas de soja, algodão e cana de açúcar existentes nessas propostas áreas.

Convenceram um presidente da FUNAI a dar-lhes respaldo e um dia baixaram em Campo Grande, propalando que estavam com todos os requisitos formais e razões para demarcar quase um milhão de hectares de terras. Os fazendeiros se levantaram, criaram suas plataformas de defesa e ataque e nunca mais se conseguiu demarcar um palmo de terras naquele estado. Bem, as terras Yanomami já estão garantidas, mas seu problema é outro com gravidade correspondente. Que não surjam salvadores em confraria para resolver os problemas dos Yanomami!

Como vimos, os fatores positivos e os fatores negativos existem como tais, mas também funcionam em modos ambivalentes, conflitantes interna e externamente, ora de um jeito, ora de outro. A dinâmica desse relacionamento não pode ser extraída de um programa tipo CHAT-GPT. Os seres humanos e suas circunstâncias falam mais do que modelos criados em laboratório. Há que haver sabedoria e capacidade de distinção de problemas, convoluções potenciais e especialmente os acontecimentos inesperados e circunstanciados. Quem diria que Collor de Mello ousasse contrariar os militares,  políticos, empresários, grandes interesses de mineradores e garimpeiros - e mandar demarcar a Terra Indígena Yanomami inteiriça e não em ilhas? Só conhecendo a história e a cultura brasileiras para vislumbrar essa possibilidade. Rondon o fez quando tratou com Getúlio. Os antropólogos que estavam lutando pela proteção dos índios no auge da ditadura militar o fizeram, quando ajudaram os deputados e juristas a elaborar o Estatuto do Índio, em 1973. A experiência humana diversificada e, no caso, a experiência indigenista comprovada constituem fatores essenciais para discernir os grandes problemas indígenas em sua relação com a sociedade brasileira envolvente.

Este é o principal vetor de ação a ser identificado neste momento da crise dos Yanomami, e, por certo, em qualquer outra crise. E também na bonança, ou na preservação do que pode continuar a dar certo.

Passemos agora à parte final, que é o objetivo dessa série de artigos sobre os Yanomami. Qual seja, apresentar as propostas para encaminhar a resolução da crise atual e de outras crises que certamente virão.

1. Os garimpeiros devem ser removidos imediatamente. O governo deve tomar a decisão de legalizar o garimpo ou não. Caso decida por não legalizar, deve tomar medidas fortes de segurança da terra indígena, o que implica persecução de garimpeiros e de negociantes de ouro em Boa Vista, que vivem do ouro retirado de terras indígenas, bem como instalação de pontos de vigilância em diversas partes da terra indígena, inclusive nos limites mais evidentes com a Venezuela. A disputa sobre quem é culpado pela presença de garimpeiros na Terra Yanomami é irreal. A proposta de legalização de mineração em terras indígenas nasceu no segundo governo do presidente Lula, em 2007; por sua vez, foi naquele governo que os postos de vigilância foram fechados, facilitando com isso a entrada de novos garimpeiros. Por sua vez, Bolsonaro considera que já existe legislação suficiente para os garimpeiros se unirem em cooperativas e unirem-se aos índios para garimpar, o que não é suficiente para se colocar a favor de garimpagem tal como vem sendo realizada. De todo modo, dada a complexidade da cadeia de interesses, tradições e conexões financeiras e institucionais envolvida na produção de ouro no Brasil, algum tipo de legalização vai ter de ser efetivado em futuro próximo.

2. A crise sanitária, ainda que em grau menos acentuada do que as encenações midiáticas dão a entender, deve ser combalida de imediato. Os meios de preservar a saúde dos Yanomami devem ser ampliados em relação a enfermarias, presença de médicos e enfermeiras e auxiliares, além de um treinamento contínuo e renovado dos modos terapêuticos que devem adquirir.

Isto deve incluir um entendimento das noções de doença e cura dos próprios Yanomami. Por sua vez, dadas as imensas dificuldades em cuidar pessoalmente dos Yanomami nas condições de isolamento em aldeias, há que se criar um espírito de corpo sanitarista mais efetivo para produzir resultados satisfatórios em face desta realidade. Este é um problema generalizado no indigenismo brasileiro da atualidade.

3. O governo brasileiro deve tomar para si a responsabilidade das ações nas terras indígenas, incluindo o papel de quaisquer agências presentes, sejam missões, associações indigenistas, ONGs ou institutos de pesquisa, além, naturalmente, das bases militares presentes. Esta responsabilidade será efetivada em forma de conselho com a presença de todas essas agências e outras necessárias à compreensão dos problemas que existem e dos que surgirão. A presença de lideranças indígenas será fundamental, incluindo tanto os que são a favor como os que são contra atividades econômicas fora das tradições indígenas. Em outras palavras, é chegada a hora de reinventar o indigenismo brasileiro tomando em conta suas tradições, suas vitórias e derrotas passadas, mas com nova clareza, especialmente pelo fato de que os povos indígenas sobreviveram e estão presentes na nação para todo o sempre.

4. Ao assumir esta posição, o governo brasileiro deve deixar claro ao mundo que sempre esteve pronto para vencer suas dificuldades e se projetar no mundo com um novo espírito civilizacional.

5. Por fim, a grande questão que assombra antropólogos e afiliados, pensadores pós-modernos e seus seguidores, meio-ambientalistas e escatologistas, cultuadores do multiculturalismo e identitaristas de toda sorte: deveriam os índios, para poder viver melhor e mais confortavelmente, se integrar na nação maior, arriscando, ao final, perder, não sua identidade étnica, mas os milenares hábitos de vida, a simplicidade de viver, os costumes e tradições, alguns dos quais que dificultam a vida e os fazem sofrer, os rituais exóticos e custosos que fortalecem a identidade – para melhor se aproximar da vida civilizada, em todo seu anárquico e desestruturado esplendor, e se preparar para contribuir com o Brasil para ultrapassar as dificuldades que já se apresentam assombrosas, especialmente para um país com sonhos de grandeza mas eternamente devedor desse potencial? Ou, deveriam fazer de tudo para preservar suas tradições e viver o máximo que puderem leais aos ensinamentos de seus antepassados?

Se for possível dar uma resposta realista, me parece que este é um dilema irreal. Não será por escolha consciente a passagem que os índios haverão de fazer do seu mais tradicional ao mais hipermoderno. Pelo que sabemos do Brasil, eles serão atraídos para deixar de ser índios, não mais pela força, mas pela sedução do mundo contemporâneo.

Suas possibilidades de permanecer índios surgirão da incapacidade do Brasil de cumprir as promessas que faz com seus gestos sedutores.

Ao contrário de culturas imigrantes, que logo são deglutidas pela cultura básica brasileira, o Brasil já se abriu para as culturas indígenas porque considera os índios os verdadeiros brasileiros. Gostemos ou não gostemos. Portanto, os índios farão o que lhes for possível fazer. Esta, creio, será a dinâmica mais profunda que moverá a história pelos próximos anos.

*Mércio Pereira Gomes. Antropólogo, professor da UFRJ, ex-presidente da Fundação Nacional do Indio (Funai – 2003-2007), autor de vários livros, em que se destacam Democracia em Convulsão (2020), O Brasil Inevitável: Ética, mestiçagem e borogodó (2019), Para Conhecer e Amar os Indios (2014), Os Indios e o Brasil (1988 e 2012) e Darcy Ribeiro (2000).

Um comentário:

Anônimo disse...

Chegamos ao final da série. Agradeço ao autor pelo esforço para nos mostrar sua visão, certamente de alguém com bastante experiência nas questões indígenas. Também agradeço ao blog por divulgar os 6 textos aqui disponíveis. A tentativa de elencar pontos positivos e negativos neste último capítulo pode ter alguma lógica, mas, como o próprio autor reconhece, muitos destes pontos se misturam e se confundem, tornando-os pouco eficientes como forma de exposição das certamente complexas situações que o autor tentou nos mostrar.