quarta-feira, 1 de março de 2023

Zeina Latif - Habitação é coisa séria

O Globo

Além da moradia, é necessário prover vida digna e acesso à cidadania. Mas o poder público não trata o assunto com a devida seriedade

São muitos os benefícios da casa própria, especialmente em um país com elevada informalidade e oscilação da renda familiar. Pode ser um fator de mitigação da pobreza, pois facilita o acesso ao crédito e eleva a renda disponível ao eliminar gastos com aluguel — o ônus excessivo com aluguel representa mais da metade do déficit habitacional.

Diante das dificuldades dos mais pobres — entra na conta o mau uso e ocupação do solo encarecendo o preço da terra —, cabe a ação estatal. O ideal seria corrigir as distorções que inviabilizam o acesso à casa própria, mas, até lá, os pobres precisam ser atendidos.

O desafio vai muito além de garantir a moradia; é necessário prover vida digna e acesso à cidadania. O poder público, porém, não trata o assunto com a devida seriedade. Simbólico disso foi o curioso pedido do presidente Lula para que as moradias do Minha Casa Minha Vida (MCMV) tenham varandas, sem discutir os problemas do programa.

O MCMV — remodelado para incorporar a regularização fundiária e a melhoria das habitações, chamou-se Casa Verde e Amarela na gestão Bolsonaro — é a principal política para o público de menor renda. O dispêndio entre 2009-19 foi de mais de R$ 271 bilhões (a preços de 2022), entre subsídios públicos (Faixas 1, 1,5 e 2) e privados, via FGTS (Faixas 1,5, 2 e 3), com 5,16 milhões de moradias entregues (atualmente, 6 milhões).

O custo-benefício do MCMV deixa a desejar. Não obstante sua envergadura, o déficit habitacional continuou crescendo — está em cerca de 6 milhões.

As crises econômicas cobram seu preço. Os aumentos de desemprego, pobreza, inflação e custos na construção civil elevam o déficit, particularmente aquele decorrente do ônus excessivo de aluguel — mais frequente no Sudeste.

Esse é mais um exemplo da importância de um ambiente macroeconômico estável para a eficácia das políticas públicas. O MCMV acabou enxugando gelo.

Mas não é só isso.

Peca-se pela falha na focalização em quem mais precisa, quadro agravado nos últimos anos com o encolhimento da Faixa 1 (renda familiar de até R$ 1.800) e expansão da Faixa 3 (renda a partir de R$ 7.000). E mesmo na Faixa 1, apenas 39% são enquadrados no déficit habitacional.

Apesar de o governo subvencionar 90% do valor na Faixa 1, a inadimplência é alta, pois as contas de consumo e condomínio pesam no orçamento de famílias que antes não incorriam nessas despesas.

Uma forma de atenuar esse impacto, de modo a contribuir para a sustentação do programa, seria permitir construções de uso misto (fachadas ativas) para a exploração econômica de áreas comuns. Seria ainda uma oportunidade de trabalho aos moradores.

Há muitas outras falhas, como empreendimentos em regiões distantes dos centros urbanos, a má qualidade dos projetos e os defeitos na construção. Muitos acabam vendendo ou abandonando suas unidades. Fica clara a falta de responsabilização dos atores responsáveis que descumprem os normativos do programa.

O MCMV precisa também atacar de forma contundente o déficit qualitativo — 13 milhões de domicílios —, referente a precariedade das moradias, falta de acesso à infraestrutura, adensamento no convívio domiciliar e inadequação fundiária.

Além dos problemas sociais advindos dessas falhas, há graves implicações de segunda ordem, pois os indivíduos tendem a buscar moradia em favelas (menos afastadas) ou loteamentos clandestinos. Muitas vezes caem na rede da criminalidade, pagando aluguel ou comprando terreno de grileiros ou organizações criminosas, que atuam oferecendo moradias irregularmente, em áreas de interesse ambiental ou de risco geotécnico e inundações.

A omissão do poder público engrossa o caldo ao não garantir o cumprimento das leis, que não são poucas. A legislação federal proíbe ocupação em área de risco; o Código Florestal protege as faixas marginais aos cursos d’água e encostas; a Lei de Parcelamento do Solo Urbano proíbe a urbanização de terrenos sujeitos a inundações; e o Estatuto da Cidade exige que os planos diretores mapeiem as áreas de risco e adotem medidas para prevenir desastres.

É necessário premiar os entes subnacionais mais engajados, inclusive no cadastro de famílias vulneráveis, e estimular políticas habitacionais e de desenvolvimento urbano adequadas.

O resultado da falta de seriedade assistimos cotidianamente. Dessa vez, no litoral norte de São Paulo.

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