O Estado de S. Paulo.
Um bom jornal cultiva uma compreensão de mundo que vai além de sua posição ideológica, além de seu lugar na luta política
“Em nenhum momento de sua história, o
Estado deixou de estar engajado na luta político-ideológica”, disse, em 1998,
Ruy Mesquita, então diretor do jornal, em entrevista à revista O Onze de
Agosto, publicação do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da
USP. “Desde o princípio, a preocupação de Julio Mesquita (avô de Ruy) era
contribuir para o aperfeiçoamento das instituições brasileiras”, disse.
Na entrevista, publicada em outubro de 1998
na edição comemorativa dos 95 anos do XI de Agosto, Ruy Mesquita defendeu que
um bom jornal deve, em primeiro lugar, ter “objetividade na informação, tanto
quanto seja humanamente possível ser objetivo”, sem deixar que “suas opções
ideológicas influam” no noticiário. No entanto, “isso não quer dizer que um
jornal deva ser neutro diante dos conflitos políticos e sociais. Imparcial na
transmissão das notícias, sim. Neutro nos conflitos políticos, não”.
Essa compreensão de jornalismo levou o
Estado a publicar, por exemplo, o editorial Instituições em frangalhos
(13/12/1968), no dia do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), criticando severamente
o regime militar. “Foi o último editorial que meu pai (Júlio de Mesquita Filho)
escreveu”, contou Ruy. “Naquele dia 13 de dezembro, o jornal foi apreendido e,
desde então, o espaço do editorial começou a sair em branco. Logo depois, meu
pai caiu doente, vindo a morrer em junho de 1969.”
Sobre os tempos da ditadura militar, Ruy Mesquita lembrou: “O Estado, o Jornal da Tarde e o Pasquim foram os únicos órgãos da imprensa que tiveram a presença de censores em suas redações”. Nos outros, o regime não precisou colocar censores, já que suas ordens sobre o que não devia ser publicado eram obedecidas.
Questionado se o mercado – o que fazia
sucesso no momento – ditava a ética do Estado, Ruy Mesquita foi enfático: “Em
nossos jornais, a ética é nossa, decorrente de nossa formação moral, da
tradição e da cultura de minha família”. E admitiu que atuar “em função do que
consideramos interesse público, e não em função do interesse do público”, gera
críticas.
Mas essa reação adversa parecia não lhe
importar. “Se achamos que o governo está certo, pode ser o mais impopular do
mundo, ele será defendido por nós. O contrário também vale. Se achamos que o
governo enveredou por um caminho errado, pode ser o mais popular do mundo, ele
será atacado por nós. O jornal tem de ser fiel a seus princípios”, disse.
Este tripé – imparcialidade na notícia,
engajamento nas questões públicas e coerência com os valores institucionais – é
o que configura, ao longo do tempo, a identidade e o prestígio dos grandes
jornais no mundo inteiro. Não há atalho. Não há campanha de marketing que
solucione deficiências institucionais ou jornalísticas. Mas também não há
fórmulas secretas complicadas. Basta manter distância das duas tentações,
sempre insinuantes, de aplauso fácil: editorializar a notícia ou transigir na
opinião.
Na tarefa de diferenciar notícia e opinião
– sendo fiel a cada uma delas, com suas regras e perspectivas próprias –, há um
detalhe decisivo. Um bom jornal cultiva uma compreensão de mundo que vai além
de sua própria posição ideológica, além de seu lugar na luta política. Sua
percepção dos assuntos é – deve ser – mais ampla e mais aberta do que os termos
da batalha político-ideológica na qual está envolvido. Noutras palavras, o
necessário engajamento de um bom jornal não obnubila ou limita sua capacidade
de observação e de análise.
A entrevista de Ruy Mesquita à revista O
Onze de Agosto oferece um exemplo disso. Questionado sobre a estabilidade da
democracia brasileira – completava-se, então, uma década da Constituição de
1988 –, ele disse: “O povo brasileiro tem demonstrado uma comovente e autêntica
vocação para o exercício da democracia”. E explicou: “Quando digo isso, estou
pensando em San Tiago Dantas, que tem essa frase famosa, segundo a qual o povo
brasileiro é muito melhor do que as suas elites”. Tal como agora, a frase era
incômoda. Há sempre quem queira atribuir nossos problemas sociais e políticos
às camadas mais pobres da população.
“E estou também pensando no MST”, continuou
Ruy Mesquita. Aqui está o ponto que gostaria de destacar. “Julgo inaceitável o
comportamento de seus líderes mais radicais. Mas tenho de reconhecer que o
movimento em si é um fenômeno altamente positivo. (...) Pela primeira vez em
nossa história política, aquilo que se pode definir como lumpemproletariado
brasileiro se organiza e demonstra uma força de reivindicação que obriga o
governo a atendê-lo”, avaliou o então diretor do Estado.
A capacidade de ver além da própria posição
políticoideológica requer maturidade e desprendimento. No jornalismo, os fatos
têm prioridade. E é isso o que confere a magia própria, o admirável encanto, de
um bom jornal. Não é acertar sempre, nem muito menos agradar a todos. É a
disposição de oferecer, todos os dias, a máxima objetividade possível nas
notícias e a mais contundente defesa de seus princípios na opinião. Mesmo que
isso possa custar a vida.
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