Ataque a Marco do Saneamento deve ser repelido
O Globo
Depois de derrota na Câmara, governo volta
à carga com decretos que prejudicam os mais pobres
A aprovação do Marco Legal do Saneamento
Básico, em 2020, deu ao Brasil a esperança de resolver um dos problemas mais
graves que afligem a população: o acesso desigual a serviços de água e esgoto.
Por inépcia, imobilismo dos governos, pressão de empresas estatais e das
poderosas corporações do funcionalismo público, o país apresenta há décadas
índices indigentes de saneamento. Basta dizer que, em pleno século XXI, 100
milhões de cidadãos não são servidos por coleta de esgoto, e 35 milhões não têm
água tratada nas torneiras. Um absurdo.
Resultado de longas discussões no Congresso, o Marco do Saneamento transformou essa realidade, tornando o setor mais competitivo, profissional e com maior capacidade de investimento. Um de seus muitos méritos foi abrir espaço à atuação de concessionárias privadas num cenário dominado por estatais dispendiosas e ineficientes, muitas das quais conhecidas mais como cabides de emprego que por prestar serviços de qualidade. Os números atuais do saneamento são a prova mais eloquente do descalabro.
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, cujo governo martela o slogan da “união e reconstrução”,
contraditoriamente se esmera para desconstruir a legislação arduamente erguida
no Parlamento. Pior: eleito empunhando a bandeira de defender pobres e
miseráveis, agiu para perpetuar as condições insalubres em que vivem. Em abril,
Lula editou decretos derrubando pilares do marco. Dispensou licitação para os
serviços e permitiu que estatais de saneamento se perpetuem em seus feudos,
independentemente da capacidade. Nada mais faz do que semear insegurança
jurídica, além de pôr em risco a meta de, até 2030, levar água a 99% e esgoto a
90% dos brasileiros.
De tão nocivas, as mudanças foram
questionadas no Congresso até pela base governista. Em maio, numa derrota para
o Planalto, a Câmara aprovou projeto que suspende as alterações no marco. O
governo deveria ter entendido o recado, porém uma vez mais insistiu no erro.
Para evitar um iminente revés também no Senado, o Ministério das Cidades
decidiu editar novos decretos. O próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD), afirmou que o ideal seria um Projeto de Lei, por exigir discussão no
Parlamento. Ainda que desta vez o governo tenha prometido ouvir deputados e
senadores, um novo decreto só piora o problema.
No Congresso, os decretos do governo são
criticados por autorizar empresas estaduais de saneamento a prestar serviço sem
licitação e permitir regularizar contratos precários como forma de atestar
capacidade financeira. Nenhuma dessas mudanças é aceitável. Qualquer acordo
entre governo e Congresso precisa preservar o marco original. Seria um enorme
retrocesso jogar no lixo a legislação aprovada há três anos com o objetivo de
tirar o Brasil do atraso vexatório. Manter os decretos de Lula não só impedirá
que novas empresas privadas se interessem por firmar contratos com os
municípios, como colocará em risco os vultosos investimentos previstos com base
nas concessões já firmadas.
São conhecidos os lobbies de prefeitos —
especialmente do Nordeste — e das estatais de saneamento contra o marco. Mas
eles não podem se sobrepor ao interesse dos milhões de brasileiros que convivem
com repugnantes valas de esgoto na porta de casa. Passou da hora de dar um fim
a essa situação degradante e inaceitável.
Vacina japonesa contra dengue precisa ser
oferecida pelo SUS
O Globo
Não faz sentido proteção contra uma doença
letal estar ao alcance apenas de quem pode pagar
Aprovada pela Anvisa no dia 2 de março,
começa a chegar às clínicas particulares a vacina contra
a dengue Qdenga,
desenvolvida pela farmacêutica japonesa Takeda. As doses protegem contra os
quatro tipos de dengue e são recomendadas para a faixa de 4 a 60 anos. São um
avanço na luta contra uma doença que há décadas desafia autoridades sanitárias
brasileiras. No ano passado, o Brasil registrou mais de 1,4 milhão de casos e
1.016 mortes, um recorde desde que as epidemias ressurgiram na década de 1980.
Neste ano, o número de mortes já passa de 600.
Por enquanto, quem quiser se proteger
contra a dengue precisará gastar de R$ 800 a R$ 1 mil para tomar as duas doses
recomendadas pelo fabricante. O Ministério da Saúde afirma que pretende
incorporá-la ao SUS, mas alega que a farmacêutica japonesa ainda não enviou à
pasta o pedido de incorporação. Argumenta ainda que, mesmo depois disso, a
vacina precisará ser submetida à análise de órgãos técnicos. Essas etapas deveriam
ser aceleradas, pois ela já passou pelo crivo da Anvisa e está à disposição dos
brasileiros — ao menos dos que podem pagar.
Um dos motivos para a pouca pressa, como
mostrou reportagem do GLOBO, é a aposta do governo numa vacina nacional. O
ministério prioriza no sistema público as produções brasileiras, e outra vacina
contra a dengue, em dose única, é desenvolvida pelo Instituto Butantan em São
Paulo. Os estudos clínicos estão na fase 3, e a expectativa é que os resultados
sejam submetidos à Anvisa em dezembro de 2024. A aprovação só viria em 2025.
Desde 2015, o Brasil já conta com uma
vacina contra a dengue, a Dengvaxia, do laboratório Sanofi. Embora aprovada
pela Anvisa, ela não é usada em larga escala. Só é recomendada para quem já
tenha contraído a doença, para evitar reinfecção. Em razão do uso restrito, não
foi incorporada ao SUS e só é encontrada na rede privada.
Ao longo de décadas, o Brasil tem falhado
no combate à dengue. Sem vacina, o controle fica na dependência de iniciativas
para eliminar os focos do mosquito transmissor. A persistência da doença mostra
que essas ações não têm dado conta de resolver o problema.
É louvável que o Butantan — que prestou um
serviço inestimável ao Brasil com a produção da CoronaVac na pandemia — esteja
desenvolvendo uma vacina contra a dengue. Mas o governo não deveria trocar um
produto pronto e aprovado pela Anvisa por outro ainda em teste que não se sabe
se corresponderá à expectativa. Deveria, em vez disso, acelerar os trâmites
burocráticos para incorporar a vacina japonesa ao SUS. Isso em nada
atrapalharia os planos do Butantan. É inaceitável permitir que brasileiros
adoeçam e morram por um mal que pode ser prevenido por uma vacina disponível ou
que a proteção fique restrita somente a quem pode pagar.
Avanço histórico
Folha de S. Paulo
Reforma tributária pode transformar a
economia; cabe ao Senado votá-la logo
Não sem alguma surpresa, mas com grande
satisfação, viu-se a
Câmara dos Deputados dar o primeiro grande passo para a aprovação da reforma
tributária. Trata-se do início de um processo longo, que cria a
fundação do que pode vir a ser uma mudança extraordinária da economia e de
parte do setor público e do direito brasileiro.
É preciso aprovar no Senado, o quanto
antes, a emenda constitucional que estrutura a reforma, evitando que se abram
ainda mais exceções, que na versão da Câmara ainda não chegam a comprometer o
cerne da proposta. Também será necessário elaborar e aprovar uma complexa
regulamentação, que inclui a definição das alíquotas dos novos tributos.
A introdução dos impostos será paulatina,
em uma década, período em que deve haver calibragens do peso da tributação.
Mesmo assim, o redesenho deve causar efeitos imediatos, pois o planejamento
empresarial não tardará a se basear nas novas regras.
O impacto na estrutura econômica do país
promete ser significativo, a julgar por estimativas de especialistas que
apontam ganhos no potencial produtivo entre 5% e 20% em alguns anos.
A reforma vai substituir impostos federais,
estaduais e municipais que incidem sobre o consumo de bens e serviços. De mais
fundamental, os dois principais novos tributos incidirão sobre valor agregado,
com pouca variação de alíquotas. A cobrança não é cumulativa, isto é, não
haverá imposto sobre imposto. A arrecadação será feita no lugar de consumo,
apenas.
Assim, apesar de
duas dúzias de exceções, a estrutura do novo sistema tributário dá
cabo de milhares de regimes especiais e da enorme, ineficiente, improdutiva e
atrasada complexidade da legislação atual.
Deve pôr fim a um modelo que beneficia com
favores tributários negócios particulares em detrimento do interesse da
população em geral, que paga a criação de empreendimentos ineficientes.
Vai diminuir, além disso, o número de
litígios entre contribuinte e fisco, muito maior no Brasil do que no resto do
mundo, e facilitar o cálculo econômico. Em vez de se guiar pela busca de
privilégios tributários, as empresas
vão se pautar mais e mais pelo retorno do empreendimento, o que deve
redundar em ganhos de eficiência no uso de capital e trabalho.
Para que fosse aprovada a reforma, houve um
pedágio. Certos setores vão pagar alíquota reduzida, de 40% da alíquota padrão.
Quanto mais favorecimentos, maior o peso dos tributos sobre os demais, se
mantida a mesma carga tributária.
Além de acabar com um sistema lunático, a
reforma introduz o Conselho Federativo do Imposto de Bens e Serviços, IBS, que
substituirá o ICMS, estadual, e o ISS, municipal. O órgão terá poderes sobre a
arrecadação do IBS, fará sua partilha, editará normas infralegais de aplicação
geral e poderá apresentar projetos a respeito do tributo.
É um novo ente constitucional, com
representação igualitária de estados e municípios, mas que aprovará suas
decisões por maiorias que levem em consideração também o peso da população.
A discussão sobre a governança do conselho
chegou a ameaçar a reforma. Um acordo entre o ministro Fernando Haddad
(Fazenda) e, em particular, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), encaminhou uma solução equilibrada.
Assim, ficaram isolados adversários da
reforma, como Ronaldo Caiado (União Brasil), governador de Goiás, e inimigos
gratuitos da mudança, como Jair Bolsonaro (PL) e parlamentares aliados.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
manteve-se distante das negociações, em parte para evitar a partidarização do
debate e o risco de eventual derrota. Mas o braço político de seu governo
poderia se empenhar mais, nos bastidores.
O trabalho maior ficou com Haddad, com o
secretário que prega a reforma há muitos anos, Bernard Appy, e com o deputado
federal Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que desde 2019 fez precioso trabalho de
consolidação da proposta.
Ainda assim, Lula deve auferir as vantagens
dos efeitos da reforma e do sucesso dos projetos encaminhados pela Fazenda.
Arthur Lira (PP-AL) deu outra demonstração de força e do que é capaz quando
também os interesses parlamentares são atendidos.
A mudança, ressalve-se, ainda está longe de
ser aprovada. O Senado tem
a grande responsabilidade de não atrasar o processo nem
sujeita-lo à fila de lobbies que vai se formar. Quanto mais casos especiais,
mais se fere o espírito e a utilidade do que precisa ser uma grande
transformação da economia.
O redesenho dos impostos
Cinco tributos sobre o consumo e a produção
serão extintos gradualmente: PIS, Confis, IPI (federais), ICMS (estadual) e ISS
(municipal)
Serão substituídos por CBS (federal) e IBS
(regional), além de um imposto seletivo sobre produtos prejudiciais à saúde e
ao ambiente
CBS e IBS incidirão sobre o valor
adicionado, ou seja, descontando os insumos usados na produção
A cobrança será no destino das mercadorias,
de modo a eliminar a guerra fiscal entre os estados
Haverá uma alíquota única para a maioria
dos produtos, a ser definida em lei complementar
Setores como saúde e educação terão
redução; alimentos da cesta básica serão isentos
A transição levará dez anos
Ao menos oficialmente, não se prevê aumento da carga tributária
Enfim, a reforma tributária
O Estado de S. Paulo
Aprovou-se a reforma possível, o que já é
muita coisa. O pior cenário seria sua rejeição, cedendo à oposição raivosa e
desperdiçando uma rara sintonia em torno de tema tão complexo
Em um feito histórico, a Câmara dos
Deputados finalmente aprovou uma proposta de reforma tributária digna de ser
chamada de reforma. Em dois turnos de votação, nos quais o projeto teve mais de
370 votos, muito acima dos 308 necessários, os parlamentares deram o primeiro
passo para dar fim ao manicômio tributário que vigora há anos no País. Foram 35
anos de espera até que fosse possível chegar ao consenso para unificar tributos
federais, estaduais e municipais sobre consumo – consenso construído a partir
do colapso do modelo anterior, e não do apoio cego a um novo sistema.
Ao longo desse período, temendo perder
arrecadação, Estados mais ricos boicotaram todas as tentativas de mudar a
incidência do tributo da origem para o destino, alimentando uma guerra fiscal
que drenou as receitas de todos os entes federativos, inclusive dos que
guerreavam. Durante todos esses anos, a União se recusou a contribuir
financeiramente com fundos que dessem fim a esse jogo de soma zero. E, em meio
a esse impasse, setores se aproveitaram das turbulências políticas para
arrancar – ora do Executivo, ora do Congresso – subsídios e regimes especiais
que garantissem sua sobrevivência.
Todos esses atores se colocavam a favor de
uma reforma tributária. Cada um deles, no entanto, tinha uma ideia diferente
sobre o que seria a proposta ideal. Na falta de acordo, a carga tributária
subiu exponencialmente, especialmente sobre o consumo, tornando o sistema ainda
mais regressivo e injusto para os mais pobres.
Quando se aprova uma reforma tão difícil de
ser aceita, é importante reconhecer os acertos políticos da trajetória para
saber replicá-los no futuro. O principal é que a reforma tributária foi
apresentada como um tema de Estado, em contraposição a um tema de governo,
conceito que expressa mais que um mero discurso político. Prova disso é que a
proposta aprovada não foi um projeto de autoria do governo Lula da Silva, mas
um parecer que combinou textos que já tramitavam no Legislativo havia anos,
inspirados em um modelo liberal consagrado e aplicado em 174 países – o Imposto
sobre Valor Agregado (IVA).
Mesmo assim, a resistência foi feroz.
Setores produtivos, governadores e prefeitos rumaram a Brasília para defender
seus interesses e negociar alterações no texto. É assim que funciona numa
democracia: todos tentam proteger seus interesses, mas, na negociação, todos
cedem algo para que o país ganhe. Nesse sentido, Lula foi muito feliz ao
declarar que nem ele nem o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, eram “senhores
da razão” e que aceitariam a reforma avalizada pelo Congresso. “Não é o que
cada um de vocês deseja, não é o que o Haddad deseja, não é o que eu desejo,
mas tudo bem”, disse.
Dadas as circunstâncias, o saldo final foi
positivo, especialmente para os Estados. A reforma não retirou a autonomia dos
governadores – antes, fortaleceu a Federação. Os benefícios fiscais já
concedidos foram mantidos, em respeito à segurança jurídica. Estados que
quiserem atrair empresas com incentivos poderão fazê-lo, mas a partir de
recursos próprios dispostos em seus próprios orçamentos, o que requer
responsabilidade e transparência, como determina a Constituição. O Conselho
Federativo, órgão que fará a arrecadação e distribuição dos tributos, será uma
oportunidade de reorganizar forças entre Estados e municípios sem interferência
da União, que não terá assento.
Muitos setores escaparam da alíquota única
e garantiram tratamento especial; outros ainda têm chance de conseguir o mesmo
benefício quando o texto chegar ao Senado. Vários temas terão de ser
regulamentados por projetos de lei complementar, e ainda será preciso avançar
nas outras etapas da reforma, especialmente o capítulo sobre renda.
Aprovou-se a reforma possível, o que já é
muita coisa. O pior cenário seria a simples rejeição da proposta, desperdiçando
uma rara janela de oportunidades que uniu Executivo e Legislativo, com exceção
da oposição raivosa. O País venceu uma etapa que parecia intransponível, e
venceu-a por meio da política, tão demonizada nos anos recentes. Eis o único
caminho possível para superar divergências e vencer desafios históricos.
STF não é casa legislativa
O Estado de S. Paulo
O caso da licença-paternidade é
paradigmático dessa confusão entre Judiciário e Legislativo: ação pede que o
Supremo atropele a Constituição e usurpe função exclusiva do Congresso
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem
atualmente uma grande oportunidade de reafirmar seu papel de corte
constitucional, e não de casa legislativa. Está em curso o julgamento de uma
ação na qual, sob o argumento de omissão do Congresso, se pede que o Supremo
defina o prazo da licença-paternidade. O caso é paradigmático, pois a própria
Constituição fixou o tratamento a ser dado ao tema até que o Legislativo aprove
uma lei específica.
Entre os direitos dos trabalhadores, a
Constituição incluiu a “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do
salário, com a duração de cento e vinte dias”. No caso dos pais, foi assegurada
a “licença-paternidade, nos termos fixados em lei”. Ciente dos muitos aspectos
sociais e econômicos relacionados ao tema, a Assembleia Constituinte atribuiu
ao Congresso a competência de definir o tempo da licença-paternidade. Esse
prazo não é, portanto, matéria constitucional, mas tema de livre discussão do
Congresso. Entre outras coisas, isso permite que o Legislativo faça ajustes na
legislação ao longo do tempo, a depender das circunstâncias concretas de cada
época. Não há uma determinação constitucional sobre a matéria.
Mas a Assembleia Constituinte foi além.
Para que o direito à licença-paternidade não ficasse refém de uma futura
regulamentação, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu
que, “até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7.º, XIX, da
Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de
cinco dias” (art. 10, § 1.º). Com isso, o próprio texto constitucional fixou a
solução para a ausência de regulamentação desse direito.
Sendo o papel do STF defender a
Constituição, não cabe à Corte dar outra solução que aquela prevista, de forma
específica, pelo legislador constituinte. Enquanto o Congresso não aprovar uma
lei, o prazo da licença-paternidade é de cinco dias. Não há o que discutir.
Qualquer outra medida significaria negar vigência ao texto constitucional, o
que é contrário à própria missão da Corte.
As chamadas “omissões legislativas”, usadas
muitas vezes como argumento para que o Judiciário entre em matérias do
Legislativo, exigem cuidado e parcimônia. O Congresso também se manifesta
politicamente ao decidir adiar uma votação ou engavetar um projeto de lei. Não
cabe ao Judiciário definir os tempos do Legislativo, já que essa definição é
parte essencial da própria política. O silêncio do Congresso é uma opção
política perfeitamente legítima, especialmente se a Constituição já deu um
encaminhamento para a ausência de regulamentação. Até o momento, a vontade do
Congresso foi manter a licença-paternidade em cinco dias.
A Constituição não autoriza que o
Judiciário substitua o Legislativo. Os dois remédios constitucionais para uma
eventual falta de regulamentação de direitos constitucionais têm requisitos
exigentes e consequências determinadas. O mandado de injunção deve ser concedido
somente quando “a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5.º, LXXI). No caso de
provimento de ação de inconstitucionalidade por omissão, o STF deve tão somente
dar “ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e,
em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias” (art. 103,
§ 2.º).
Ao dizer que a lei fixará os termos de determinado
direito, a Constituição estabelece que se trata de matéria de discussão
política do Legislativo, a ser realizada pelos representantes eleitos pelo
voto. É um direito da população interferir nesse debate. Não é assunto para ser
decidido por juízes que não foram eleitos – e não dispõem de legitimidade
constitucional para proferir decisões políticas.
Há no Supremo muitos outros casos similares
aos da ação sobre a licença-paternidade. O STF tem o dever de rejeitar essas
ações, manifestando assim o necessário respeito pela Constituição, pelo Estado
Democrático de Direito e pelos direitos políticos da população.
A natureza do partido de Valdemar
O Estado de S. Paulo
Nem bem Bolsonaro se tornou inelegível,
Valdemar já foi tratar de seus interesses no governo
Enquanto Jair Bolsonaro digere sua inédita
condição de inelegível e claudica para encontrar alguma forma de parecer uma
liderança política digna de ser ouvida mesmo do porão da irrelevância, seu
partido, o PL, já bate às portas do governo Lula da Silva para negociar cargos
em áreas estratégicas da administração federal. Se ninguém é tolo em Brasília,
menos ainda o chefão do PL, o notório Valdemar Costa Neto, e o presidente da
República. A aproximação interessa aos dois.
Como o Estadão revelou há poucos dias,
Valdemar, nem bem o Tribunal Superior Eleitoral declarou Bolsonaro inelegível
por oito anos, liberou os parlamentares da bancada do PL – composta por 99
deputados e 14 senadores – para negociar com o Palácio do Planalto a indicação
de cargos e liberação de emendas em troca do apoio de ao menos parte do partido
ao governo no Congresso, particularmente na Câmara dos Deputados.
Nesse esforço de aproximação com Lula, o PL
conseguiu emplacar o engenheiro Fábio Pessoa da Silva Nunes como diretor de
Infraestrutura Rodoviária do Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (Dnit). Não é uma conquista trivial. Em primeiro lugar, porque se
trata de uma das mais cobiçadas diretorias da autarquia federal, por ser
responsável pela manutenção de rodovias País afora e, consequentemente, por
administrar um pomposo orçamento.
Além disso, a posse de Fábio Nunes – aliado
do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao qual serviu como diretor de
Planejamento e Projetos Especiais do Ministério da Infraestrutura no governo
Bolsonaro – marca a volta de Valdemar Costa Neto ao controle de áreas vitais do
Dnit, espécie de “feudo” histórico do PL nos últimos governos.
Essa relação entre PL e Palácio do Planalto
é de aparente ganha-ganha. Ao PL, cuja imagem está hoje fortemente associada a
Bolsonaro, interessa negociar com o governo Lula, por um lado, e deixar a cargo
de seus parlamentares mais radicais, ainda ligados ao expresidente, o discurso
raivoso de oposição. A Lula, por sua vez, interessa rachar o PL, a maior
bancada da Câmara e uma das maiores do Senado, e ampliar tanto quanto conseguir
o número de votos de parlamentares do partido em projetos de interesse do
governo no Congresso.
Até aí, jogo jogado. É a política seguindo
seu curso natural após Bolsonaro virá-la do avesso ao longo de quatro longos e
tenebrosos anos. A formação de coalizões de governo implica, necessariamente,
compartilhamento de poder entre as forças políticas com representação na
sociedade e, consequentemente, no Congresso. E partilha de poder se
materializa, na prática, com essas indicações para cargos públicos e liberações
de verbas. O busílis é em que base são feitos esses arranjos.
Dada a névoa de suspeitas de corrupção no Dnit que pairam sobre as gestões do PL, não seria prudente reabrir uma fresta que seja da autarquia à influência do sr. Valdemar Costa Neto sem clareza. Lula decerto conhece bem os termos de suas alianças políticas. Mas quem também precisa conhecê-los é a sociedade.
Desmatamento e fogo consomem o cerrado
Correio Braziliense
As intervenções humanas no cerrado podem
comprometer seriamente a oferta de água. O bioma abriga oito das 12 regiões
hidrográficas do país
A consciência coletiva sobre a importância
de preservação da flora e da fauna ainda é tênue no país, sobretudo em relação
ao cerrado, reconhecido como "berço das águas" ou "caixa d'água
do Brasil". No primeiro semestre, o desmatamento cresceu 21% no bioma. Em
contrapartida, caiu 41% na Amazônia, onde o poder público interveio de forma
rigorosa para conter a derrubada da floresta, por meio da fiscalização do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama).
O desmatamento no cerrado ocorre em
propriedades privadas, que têm registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), o
que dificulta uma intervenção do governo para contê-lo. Porém, a atividade tem
forte impacto no equilíbrio ambiental. A derrubada da vegetação não ocorre
somente por máquinas. Em junho, foram 4.472 focos de incêndio, o maior número
de queimadas desde 2007, segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial
(Inpe). A perda da cobertura vegetal está concentrada em 26 municípios, com 50%
dos alertas.
As intervenções humanas no cerrado podem
comprometer seriamente a oferta de água. O bioma abriga oito das 12 regiões
hidrográficas do país. Abastece seis das oito grandes bacias: Amazônica,
Araguaia/Tocantins, Atlântico Norte/Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e
Paraná/Paraguai. Segundo especialistas, sem flora não há água, e sem água não
há flora. Isso significa que ações predatórias na cobertura vegetal podem
afetar a oferta de água, pondo em risco a produção agropecuária, principalmente
no Centro-Oeste, que se destaca no agronegócio brasileiro.
Em 2017, a professora da Universidade de
Brasília Mercedes Bustamante, atual presidente da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), advertiu para a
necessidade "urgente" de conter o desmatamento no cerrado,
"antes que a água acabe". A queda na oferta de água não foi uma
percepção só da professora, mas também dos agricultores. Recentemente,
Bustamante alertou ainda para o aumento da temperatura no bioma, decorrente das
mudanças climáticas. Pouco ou quase nada foi feito para conter a expansão da
derrubada de matas no cerrado. A cada dia a situação se agrava, sem que haja
ações para evitar o caos.
Mas a legislação permite que os
proprietários de imóveis rurais no cerrado desmatem até 80%, e 20% sejam
reserva. Como detentor da maior biodiversidade de flora e fauna, o desmatamento
aleatório causa danos às espécies do bioma. Na Amazônia, a legislação impõe uma
regra inversa: 80% da área de floresta na propriedade têm de ser preservados,
restando 20% para exploração.
A escalada de desmatamento e de queimadas
no país indica falta de responsabilidade de uma parcela de brasileiros com o
meio ambiente. Para muitos, as mudanças climáticas não existem e, se ocorrem, é
algo da natureza, sobre a qual o homem não tem domínio. Enquanto isso, os
fenômenos extremos têm ocorrido com maior frequência no país, provocando danos
imensuráveis ao país e com a perda de muitas vidas.
O sistema de vigilância aplicado na Amazônia deveria se estender ao cerrado e aos demais biomas brasileiros. Não se trata de coibir as atividades agropecuárias, que têm relevante importância nas contas públicas. O foco seria reeducar a população para que haja uma relação amistosa com o patrimônio natural, levando em consideração a responsabilidade coletiva imposta pelas mudanças climáticas. Os cidadãos, espécie racional do planeta, não têm o direito de agir com irracionalidade e colaborar para a extinção dos humanos, por meio de atividades e ações que elevem a temperatura da Terra.
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