O Globo
Desde que assumiu como presidente, Lula vem
tomando posições ambíguas com relação às ditaduras de esquerda da América
Latina. Recebeu o presidente da Venezuela, Nicolás
Maduro, e o tratou como companheiro. Defendeu-o em múltiplas
ocasiões da acusação de que a Venezuela não é democrática. Em março, a
diplomacia brasileira deixou de assinar uma declaração do Conselho de Direitos
Humanos da ONU que condenava “sérias e sistemáticas violações” de direitos
humanos na Nicarágua (o
Brasil, porém, assinou uma resolução mais branda da OEA no fim de junho pedindo
democracia no país).
Às vezes, Lula dá a entender que tudo não passa de estratégia diplomática. Declarações brandas ou ambíguas diminuiriam resistências e permitiriam ao Brasil atuar como mediador, conduzindo esses países a uma democracia mais plena. Mas a ambiguidade também pode ser lida como condescendência e falta de compromisso democrático. Como o movimento é ambíguo, não dá para saber quanto há de estratégia e quanto há de tolerância com as falhas democráticas quando o governo é de esquerda. Seja como for, a postura ambivalente está assustando e radicalizando as respostas da extrema direita brasileira — a tal ponto que eventuais benefícios para a política externa certamente não compensam o dano infligido à dinâmica política nacional.
Lula não esconde sua ambição de ser um
líder global. Nos primeiros meses de governo, fez mais viagens internacionais
que FH, Dilma, Temer e Bolsonaro no mesmo período. A tentativa de se colocar
como mediador entre Rússia e Ucrânia ecoa a ousada tentativa de mediar, em
2009, um acordo sobre o programa nuclear iraniano. Lula não aspira apenas a
resolver os grandes problemas brasileiros, quer também resolver alguns dos
grandes problemas globais.
Na abertura da reunião do Foro de São
Paulo, lembrou que o grupo foi concebido para priorizar as estratégias
eleitorais em detrimento das revolucionárias que ainda tinham força entre as
esquerdas da América Latina nos anos 1990. Também sugeriu que sua postura
ambivalente em relação à Nicarágua e à Venezuela é parte de uma estratégia. No
discurso, disse que, entre aliados políticos, as críticas são feitas em privado
e jamais em público, para não dar força aos adversários de direita. No discurso
na Cúpula do Mercosul, na terça-feira, retomou a questão, dizendo que os
desafios democráticos precisam ser enfrentados por meio do diálogo e que
conversará com Daniel Ortega sobre a perseguição a integrantes do clero
católico. Tudo isso sugere que Lula acredita que as críticas sobre a corrosão
da democracia na Nicarágua e na Venezuela deveriam ser feitas em encontros
privados com os líderes desses países, e não por meio de declarações públicas.
Mas essas declarações em privado são mesmo
feitas? E, se são, empurram esses regimes na direção certa? Lula e Dilma
conviveram por muitos anos com Chávez e Maduro, e o regime venezuelano só se
corrompeu no período. Entre 2003 e 2016, quando o PT esteve no poder no Brasil,
a Suprema Corte da Venezuela virou um apêndice do Executivo, distritos
eleitorais foram redesenhados para dar vantagem aos chavistas, líderes
opositores e a imprensa independente foram perseguidos, e ativistas da oposição
foram presos e torturados.
Se é questionável que puxões de orelha em
privado — se é que são dados — surtem qualquer efeito, não há dúvida de que a
postura ambivalente com as ditaduras deixa sequelas no ambiente político
doméstico.
Declarações infelizes como afirmar que a perseguição
aos católicos na Nicarágua é apenas uma “disputa” ou que a Venezuela é
democrática porque tem eleições regulares polarizam ainda mais um ambiente já
excessivamente inflamado. Assustam eleitores à direita do centro e dão margem a
respostas antidemocráticas da extrema direita no espírito do “se eles vão
fazer, é melhor fazermos antes”. Quando um tema da política externa tem
implicações tão negativas na política doméstica, é o interesse desta última que
deveria prevalecer. Lula não é o secretário-geral das Nações Unidas, é o
presidente do Brasil.
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