É sensato recurso da PGR em processo envolvendo Moraes
O Globo
Ministro foi aceito como assistente da
acusação em inquérito que apura agressão em aeroporto
Tem razão a procuradora-geral da República interina, Elizeta Ramos, em impetrar recurso contra a inclusão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes como assistente de acusação no inquérito que apura as circunstâncias do tumulto provocado por bolsonaristas contra a família dele na Itália. Permitir a participação de Moraes numa acusação em estágio inicial — não há sequer formalização de indiciamento nem denúncia — seria, nas palavras dela, um “privilégio incompatível com o princípio republicano”. A decisão partiu do ministro Dias Toffoli, relator do caso no STF. Se não for suspensa, permitirá a Moraes sugerir obtenção de provas e questionar testemunhas num caso em que ele próprio é parte envolvida.
O episódio ocorreu na porta da sala VIP do
aeroporto internacional de Roma no dia 14 de julho. Moraes e sua família
voltavam ao Brasil depois de ele proferir palestra na Universidade de Siena. O
ministro conta que foi xingado de “bandido, comunista e comprado” por uma
mulher identificada como Andreia Munarão. Pelo relato dele, Roberto Mantovani
Filho, marido de Andreia, deu um tapa no rosto do filho de Moraes, Alexandre
Barci. Em seguida, Andreia voltou com o genro, Alex Zanatta Bignotto, e soltou
novas ofensas.
De volta ao Brasil, Moraes acionou a Polícia
Federal (PF). Foi instaurado inquérito para apurar as circunstâncias e os
crimes de injúria, perseguição e desacato. Andreia, Mantovani Filho e Bignotto
negam as acusações. Após chegarem ao interior de São Paulo, onde moram, os três
foram alvo de mandados de busca e apreensão, medida tida pela defesa como
injustificada. Suas residências foram vasculhadas e seus celulares apreendidos.
Mesmo que houvesse a suspeita de vínculo com os ataques do 8 de Janeiro, foi um
exagero.
As imagens das câmeras de segurança do
aeroporto de Roma só chegaram ao Brasil mais de um mês e meio depois do fato.
Em relatório, a PF afirmou que “constatou-se que a atitude hostil e agressiva
de Roberto Mantovani Filho e de sua esposa, Andreia Munarão, (…) contribuíram
sobremaneira para o desencadeamento de uma discussão com o filho do ministro
Alexandre de Moraes, Alexandre Barci de Moraes, que culminou numa aparente
agressão física de Roberto Mantovani contra Alexandre Barci”. A defesa dos
acusados alega que a perícia italiana é menos conclusiva. Os vídeos não são
públicos. Por decisão de Toffoli, as imagens podem ser vistas apenas pelas
partes, nas dependências do tribunal.
Hostilidades e agressões a autoridades, como
a qualquer cidadão, devem ser coibidas e punidas. Não há a menor dúvida sobre
isso. O Código de Processo Penal permite a vítimas de crimes atuar como
auxiliares do Ministério Público na fase de processo. Embora não proíba na fase
de inquérito, é prática inusitada. Não há lei que confira tal privilégio a
autoridades. “Não se tem notícia de precedente de admissão de assistência à
acusação na fase inquisitorial”, diz o recurso da PGR. “Tal privilégio jamais
foi admitido (...) nem mesmo para o Presidente da República.”
Mantida a participação de Moraes no atual
estágio da investigação, passarão a pairar dúvidas sobre o direito de defesa
dos acusados. Mesmo que se busque uma condenação exemplar para quem interpela e
calunia autoridades em lugares públicos, o devido processo legal precisa ser
respeitado. Ainda mais quando um dos envolvidos é um ministro da mais alta
Corte do país.
Outros países trazem inspiração para o Brasil
lidar com envelhecimento
O Globo
Políticas públicas voltadas para população
mais velha devem ser estudadas e adotadas desde já
Não é novidade o envelhecimento do Brasil. O
que chama a atenção dos demógrafos é a velocidade com que ocorre. Pelos dados
do Censo de
2022, a população com 65 anos ou mais cresceu 57,4% desde 2010. São 22,1
milhões de brasileiros, ou 11% do total. Um quinto dos idosos são octogenários.
O Censo adiantou para o início dos anos 2030 o momento em que a população
economicamente ativa parará de crescer, encerrando o bônus demográfico com que
todo país conta para se desenvolver. Desde já, os desafios são imensos.
Os mais óbvios estão nos sistemas de saúde e
previdenciário. O SUS precisará estar pronto para atender mais idosos. Serão
necessárias novas reformas na Previdência para garantir sua sustentabilidade.
Mas as necessidades de um país mais velho não se resumem ao óbvio. O Brasil
precisa analisar com atenção o exemplo de países que têm enfrentado o
envelhecimento com sucesso. Pela primeira vez há no planeta mais habitantes com
mais de 65 anos do que com menos de 5. A transformação é global.
Em estudo recente, o Banco Mundial apontou
o Uruguai como
exemplo na América Latina de preparação para a transição demográfica. A
estimativa é que o custo dos serviços sociais básicos cresça de 25% do PIB em 2013 para 43%
em 2100. Além de preparar o sistema de saúde para arcar com a demanda mais
complexa, os uruguaios precisarão investir para aumentar a produtividade da
economia, manter os idosos ativos e ampliar desde já a capacidade de poupança
da população que envelhecerá. Só assim uma economia com menos gente trabalhando
será capaz de sustentar a todos no futuro.
O Fórum Econômico Mundial destaca dois
exemplos inspiradores: Japão e Cingapura,
ambos com um quarto da população acima dos 65. Em Cingapura, um programa do
governo lançado em 2014 dá a cada cidadão uma poupança para uso em cursos de
formação em qualquer idade. Há políticas para manter fundos para idosos
incapazes de sustentar a própria aposentadoria e para incentivar moradia perto
da família, reduzindo custos com cuidadores.
No Japão, são conhecidos os planos de saúde
generosos subsidiados pelo governo, assim como esquemas de aposentadoria que
pagam por serviços como compras domésticas, cuidados pessoais e medicina
preventiva. Em 2015, o governo lançou um programa que investe em tecnologia e
robótica para ajudar cuidadores e que implementa mudanças de design para
adequar instalações urbanas, transportes ou móveis às necessidades dos mais
velhos. As cidades vêm sendo adaptadas para mantê-los saudáveis e produtivos.
O Brasil é pobre e desigual, tem diversas
outras prioridades, mas nada nos impede de começar a pensar desde já em
estabelecer normas de design para locais de trabalho adequadas a idosos ou
criar políticas de treinamento e aprendizado na aposentadoria. Não faltam casos
bem-sucedidos de acolhimento e apoio aos mais velhos. O país tem de se preparar
para permitir que os idosos mantenham saúde física e mental. Todos sairão
ganhando.
Mudança da meta fiscal piora as expectativas
Valor Econômico
Ao deixar em aberto o esforço fiscal que
pretende fazer, o governo insinua que ele também será objeto de barganha
política
Ao reunir-se ontem com os líderes e
presidentes de partidos da base governista na Câmara dos Deputados, o
presidente Lula disse que não quer gastar mais, só não pretende contingenciar -
isto é, gastar menos. Entre aumentar ou diminuir despesas encontra-se a meta
fiscal. Pelo novo regime, elas crescerão até 2,5% além da inflação (teto), sem
que, entretanto, ultrapassem 70% das receitas primárias. Quanto mais perto da
zeragem do déficit ela estiver, maior terá de ser a receita em relação aos
gastos. Em outras circunstâncias, haveria a possibilidade de cortes dos
dispêndios para equilibrar as contas. No regime aprovado, isso só ocorrerá se a
meta correr o risco de ser descumprida. É o que o presidente Lula quer evitar,
ao desdenhar publicamente da importância do resultado primário. Com isso, o
presidente deslocou o pêndulo do esforço político de seu próprio governo e das
expectativas dos partidos supostamente aliados no Congresso.
Minoritário no Legislativo, o governo tinha
um norte claro em suas relações com o Centrão, indicado pela pauta econômica
regida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e baseada no aumento da
arrecadação tributária. Ela financiaria dentro de certos limites fixos a
expansão de gastos e investimentos, e os investidores refizeram suas
expectativas diante da austeridade “possível” no governo atual, um cenário
menos ruim do que a gastança irrefreada defendido pela ala dura do PT. Essa
premissa alinhava também os líderes do Centrão e colocava algumas restrições a
seu apetite de apropriação orçamentária.
Parecia a repetição habitual da forma com que
o Executivo conduz a pauta no Congresso, sob o signo da economia, orientando os
rumos da votação em direção a seus objetivos expressos. A maneira usual de
governar, porém, foi corroída pelo desgaste do PT com os escândalos de
corrupção, que o levaram a uma vitória por ínfima margem em relação a Bolsonaro
e pelo preenchimento do vácuo por forças fisiológicas do Centrão, que deu um
protagonismo ímpar ao Congresso. Esse equilíbrio, escudado no novo regime fiscal,
na reforma tributária e nas medidas para aumento das receitas, foi gravemente
danificado pela entrevista de Lula, ao dizer que a meta não precisaria ser
cumprida e insinuar que isso para ele não tinha importância alguma.
A reação do relator da Lei de Diretrizes
Orçamentária, Danilo Forte (União-CE), foi imediata e significativa. Ele disse
que o presidente “jogara a toalha” e que o sinal viera de cima para mudar a
meta fiscal. O alívio do relator foi sentido pela ala petista do governo,
vocalizado com estridência pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e com
voz bem baixa pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa.
O presidente Lula gosta de ouvir vozes
divergentes em seu governo, como mostrou no passado, e de ser árbitro nas
disputas. Ainda assim, na maior parte das vezes, esse era um processo de
decisão intramuros, mesmo com os inevitáveis vazamentos. Raras vezes, porém, o
presidente desautorizou ao vivo e em cores seu principal ministro em público,
colocando um enorme senão nas principais diretrizes que vinham sendo seguidas
pelo seu próprio governo. Tudo isso poderia ser resolvido a seu tempo e com uma
conversa tranquila com poucos interlocutores. A atitude de Lula foi desastrosa.
Os novos ventos que o Planalto sopra para o
Centrão são de que não haverá cortes orçamentários que prejudiquem os acordos
de repartição de verbas em emendas e projetos do Congresso. É surpreendente o
fato de que o Centrão apertava o cerco ao governo em várias frentes, da
ampliação de emendas impositivas à ocupação de cargos na Caixa, Funasa e
estatais, mas não a respeito da meta fiscal. Com a barganha, a Câmara acabara
de aprovar as mudanças na taxação de fundos offshore e exclusivos, ampliando as
receitas pelas quais Haddad se esforçava por obter. Lula pediu ontem aos
líderes da base que se esforcem para aprovar os projetos do governo que
aumentem as receitas tributárias. O pedido agora, depois de dinamitar o déficit
zero, tem outro sentido. Como o aumento de despesas é uma proporção fixa do
aumento de receitas, o presidente procura espaço para ampliar gastos. Uma meta
de déficit camarada pode limitar o esforço fiscal ao mesmo tempo que impedir
seu descumprimento, que acarretaria, no exercício seguinte, uma série de
restrições, entre elas a redução da expansão de gastos a 50% das receitas.
A definição da meta terá consequências no
resto do mandato. Ao defender o equilíbrio fiscal, Haddad, em acordo com Lula,
daria a indicação de que o governo seguiria uma trilha previsível, capaz de
diminuir o passo do endividamento, trazer a inflação de volta para a meta,
reduzir os juros insustentáveis e criar um ambiente mais favorável ao
crescimento. Mas o presidente mudou de ideia. Com isso, piorou as expectativas
sobre o ritmo da queda de juros e da inflação, o grau de endividamento e o
próprio crescimento da economia.
Ao deixar em aberto o esforço fiscal que pretende fazer, o governo insinua que ele também será de certa forma objeto de barganha política, um passo errado e arriscado demais tendo em vista a fragilidade de sua representação no Congresso.
Estrago feito
Folha de S. Paulo
Sinal de Lula de que não cortará gastos
libera demanda de aliados e do Congresso
Depois de o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) declarar seu descompromisso com a meta de zerar o déficit primário
federal em 2024, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não se saiu melhor.
Em entrevista, abusou de
condescendência com os profissionais da imprensa, o que é sempre um
mau sinal. Irritado, não respondeu perguntas óbvias de jornalistas a respeito
de qual é, afinal, o plano do governo, restando claro que não conta com o apoio
do presidente na tarefa de equilibrar as contas.
A sinalização é ruim não porque já houvesse
ceticismo no setor privado —expectativas de analistas apontavam para um
resultado negativo até maior, de R$ 89 bilhões, equivalente a cerca de 0,8% do
PIB.
Mas, com o sinal verde de Lula, que voltou à
carga nesta terça (31) para dizer que não cortará gastos, todas as
demandas políticas, do Planalto e do Congresso, poderão agora ser incluídas no
Orçamento.
Sem a liderança do Executivo, não será
possível conter a sanha por emendas parlamentares, agora impositivas, que
deixarão de ser contingenciadas, entre outros itens. O governo discute o
tamanho da revisão da meta, que pode apontar déficit de pelo menos 0,5% do PIB
no ano que vem. Com isso, as projeções para 2024 devem piorar.
O mandatário age para aplacar pressões de seu
núcleo político, que deseja manter obras e, com isso, evitar o já esperado
desaquecimento da economia. A popularidade presidencial também dá sinais de
queda, o que tende a aumentar bastante a impaciência.
Desde sempre já estava claro que todo o
edifício do novo arcabouço fiscal dependia de mais receitas, mas ao menos
Haddad prometia algum controle de gastos. Se a agenda já era difícil no
Congresso, que insiste em aprovar despesas, fica quase impossível antever
qualquer disposição mais cautelosa.
Será um erro grave manter esse rumo. As
consequências para a economia serão danosas, na forma de juros mais altos, como
já se observa, além de desvalorização do real e aumento da inflação. Com gastos
frouxos, a política monetária terá que ser mais apertada.
A cantilena de que há interesses escusos por
trás da demanda de austeridade não se sustenta. Longe de ganância do mercado, é
a mecânica inescapável da indisciplina fiscal que impõe custos para a
sociedade. Eis o círculo vicioso que aprisiona o país na armadilha do baixo
crescimento.
Não ajuda, além disso, que os juros internacionais estejam em alta, o que recomenda cuidado redobrado. Corre-se o risco, agora cada vez mais palpável, de que se colha o oposto do que se busca —degradação econômica e mazelas sociais. O filme poderá se repetir, sempre com final infeliz.
Um atraso maroto
O Estado de S. Paulo
A demora para indicar um nome ao STF reforça
as piores impressões. Mais que cumprir os requisitos constitucionais, Lula
pretende tratar a Corte como anexo do Palácio do Planalto
A ministra Rosa Weber aposentou-se no dia 30
de setembro. Desde então, houve muitas especulações sobre quem seria a pessoa
indicada para ocupar sua cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF). O fato, no
entanto, é que o presidente Lula da Silva ainda não exerceu sua competência
privativa, prevista na Constituição, e o Supremo completou um mês desfalcado,
com apenas 10 ministros.
Duas coisas chamam a atenção nesse atraso do
presidente Lula da Silva. Em primeiro lugar, é o desrespeito com a Corte
constitucional. A aposentadoria da ministra Rosa Weber não foi um ato
imprevisto. Já se sabia que uma cadeira do STF ficaria vaga no fim de setembro
de 2023 e, sendo sua competência privativa, cabia ao presidente da República
definir quem iria indicar para o cargo. No entanto, Lula da Silva nada fez até
aqui.
Essa omissão do líder petista escancara uma
percepção equivocada sobre o exercício do poder. A competência privativa de
indicar um nome a ser sabatinado pelo Senado para compor o STF não é mero
arbítrio, como se fosse uma faculdade que pode ou não ser exercida, a depender
de seus interesses. Trata-se de um dever constitucional. É certo que não há um
prazo, mas isso não significa autorização para omitir-se – ou para atuar apenas
quando for do seu agrado.
É a clássica distinção entre exercício de um
direito (passível de ser realizado na perspectiva do interesse próprio) e
exercício de um poder (que deve ser realizado na perspectiva do interesse de
outrem). Um exemplo é o pátrio poder, que deve ser exercido não em benefício de
quem detém esse poder, mas segundo o melhor interesse dos filhos. Lula da Silva
parece ver nos poderes inerentes à Presidência da República um direito pessoal,
a ser exercido exclusivamente para atender a seus desejos e idiossincrasias.
O segundo aspecto também se relaciona com o
uso enviesado do poder. Não há nenhum indício mostrando que a demora de Lula da
Silva para indicar uma pessoa a ocupar a vaga da ministra Rosa Weber esteja
relacionada com a definição de um bom nome para o STF. É todo o contrário, como
se o decurso de tempo pudesse facilitar a aceitação do nome que o presidente da
República deseja colocar no STF.
A indicação de um ministro para a Corte
constitucional representa uma grave responsabilidade, mas não é uma tarefa
hercúlea, a demandar um longo período de tempo, uma reflexão sem fim. A
Constituição de 1988 é exigente, mas não é complicada. Estabelece que os
ministros do STF devem ser “escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e
cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação
ilibada”.
Cabe, portanto, ao presidente da República
verificar se suas opções de nomes têm notável saber jurídico e reputação
ilibada. É isso o que precisa ser analisado. No entanto, a demora na indicação
da pessoa escolhida transmite uma mensagem completamente distinta do que dispõe
a Constituição, como se o procedimento de escolha envolvesse sofisticados
cálculos e acordos políticos. Nesse decurso de tempo, o STF fica desgastado,
quando deveria ocorrer exatamente o contrário. O rito constitucional previsto
para o preenchimento das vagas do STF deve fortalecer a autoridade da Corte, e
não enfraquecê-la.
Sempre, mas especialmente nos tempos atuais
conturbados, é necessário preservar e zelar pela identidade institucional do
STF. Trata-se de um órgão jurídico, e não político. E seu caráter jurídico se
expressa especialmente na independência de seus ministros. A Corte não está
subordinada nem ao Legislativo nem ao Executivo. No entanto, ao atrasar a
indicação, Lula da Silva dá sinais de que vê no Supremo um anexo para tratar de
seus interesses – e, por isso, seria tão fundamental toda essa articulação prévia.
O PT não lida bem com autonomia. Almeja tudo
ao alcance do seu cabresto. Não é, portanto, surpresa que Lula da Silva tenha
dificuldade em indicar alguém para uma cadeira onde há uma série de
prerrogativas constitucionais para assegurar a independência. Cabe ao Senado
não se deixar manipular.
Um país em regime de urgência
O Estado de S. Paulo
Quantidade de projetos que tramitaram neste
ano em regime de urgência na Câmara, driblando comissões e debates, desmoraliza
instrumento legítimo para acelerar votações relevantes
A Câmara dos Deputados aprovou neste ano 115
pedidos de urgência para acelerar a tramitação de projetos de lei. Não haveria
indignação se todos os textos ancorados nesse regime versassem sobre temas
emergenciais para a sociedade brasileira, como prega o regimento da própria
Casa. Ocorre que não é esse o caso. A banalização do uso de um instrumento
excepcional e legítimo, para driblar as comissões especializadas e as
audiências públicas e encurtar o caminho de projetos até o plenário, traduz-se
em enfraquecimento do processo legislativo. É abusivo e injustificável.
Reportagem do Estadão informa que, desde
fevereiro de 2021, quando o deputado Arthur Lira (PP-AL) assumiu a presidência
da Câmara, 360 solicitações de regime de urgência foram aprovadas. No triênio
anterior, os pedidos somaram 261. É fato que as regras de urgência haviam sido
adotadas temporariamente como regulares durante o período da pandemia de
covid-19, como meio de impedir a paralisia dos trabalhos da Casa. Superada a
crise sanitária, o mesmo Lira que determinou o retorno do trabalho presencial
em 15 de outubro de 2021 e a retomada das atividades das comissões manteve
flexível o uso – ou melhor, o abuso – desse mecanismo. Virou rotina.
É preciso ter sólidas razões para apressar a
tramitação das matérias legislativas, abrindo mão do relevante exame de
projetos de lei por comissões permanentes e temporárias, especializadas nas
temáticas abordadas pelos textos, e pelas audiências públicas, onde entidades
setoriais e a sociedade civil apresentam seus argumentos e confrontam seus
interesses. Não à toa, a urgência é recomendada somente quando a pressa na
adoção de leis emergenciais se sobrepõe à tramitação regular. O regimento da
Câmara sublinha com clareza que tal instrumento está reservado para casos de
defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais, situações de
calamidade pública, aprovação de acordos internacionais, declarações de guerra,
de Estado de Defesa, de Estado de Sítio e intervenções federais nos Estados.
Não seria cabível, portanto, a propostas como
a que previu pena de prisão de quatro anos a quem discriminasse políticos, de
autoria da deputada Dani Cunha (União-RJ), aprovada no plenário apenas 21 dias
depois de outorgado o regime de urgência. Muito menos a concessão desse mesmo
tratamento ao projeto de lei de regulamentação de apostas esportivas e
legalização dos jogos de azar. Ambos se somam a dezenas de textos que muito bem
poderiam ter caminhado pelas comissões pertinentes antes de serem levados ao
plenário – onde não raro parlamentares votam sem antes nem sequer lerem o
texto.
Um elemento tortuoso nesse processo de
tramitação a jato o torna ainda mais problemático: o poder de blocos
partidários com mais de 171 parlamentares em sua base, que necessitam apenas da
assinatura de seu líder para que um requerimento de urgência seja incluído na
pauta da Câmara. Tal é a circunstância do agrupamento composto por União
Brasil, PSDB-Cidadania, Avante, Solidariedade e Patriota, com 175 deputados.
Aos blocos com menos votos, é preciso a assinatura de pelo menos dois líderes.
Assim como é amplamente questionável o abuso
de medidas provisórias por parte do Executivo, como meio de antecipar a
aplicação de regras antes do necessário exame do Legislativo, a deturpação do
regime de urgência na tramitação de projetos de lei pela Câmara dos Deputados
merece condenação. A “Casa do Povo” não é assim designada somente por sua
representação proporcional da cidadania dos Estados, mas também por pressupor o
debate exaustivo e em etapas antes da decisão final do plenário – princípio
compartilhado pelo Senado Federal.
No mínimo, espera-se seriedade dos deputados
federais e dos líderes partidários na formulação e aprimoramento de leis a
serem cumpridas por toda a sociedade. Fugir do rito regular de tramitação de
projetos por meio de artifícios marotos, sem que haja uma emergência real a
justificálos, é abuso que nenhuma democracia pode tolerar.
O privilégio do sr. Moraes
O Estado de S. Paulo
Além de causar danos ao STF, tratamento
diferenciado para Alexandre de Moraes fere princípios republicanos
Em tempos de acirramento político-ideológico
e de incompreensão generalizada sobre o papel do Supremo Tribunal Federal (STF)
no Estado Democrático de Direito, a Procuradoria-Geral da República (PGR)
forneceu uma oportunidade para a Corte mostrar seu compromisso com a igualdade
de todos perante a lei, sem pactuar com o corporativismo. Não convém
desperdiçar o ensejo.
Em recurso interposto no inquérito que
investiga suposta agressão contra o ministro Alexandre de Moraes e sua família
no aeroporto de Roma, a PGR fez dois pedidos ao ministro Dias Toffoli, relator
do caso: o levantamento integral do sigilo das filmagens contendo as supostas
hostilidades e a reconsideração da decisão que admitiu a participação das
supostas vítimas, desde a fase da investigação, como assistentes de acusação.
“Não se pode construir privilégios em
investigações criminais e, por tal razão, não se pode admitir a manutenção do
sigilo fragmentado da prova no caso em exame”, disse a PGR a respeito do
sigilo. Lembrou ainda que a restrição imposta prejudica o trabalho do
Ministério Público e afeta a compreensão dos fatos pela opinião pública.
Sobre a participação de Alexandre de Moraes e
familiares como assistentes de acusação, a PGR afirmou se tratar de um
“privilégio pessoal”, em razão de inexistir essa figura na fase de
investigação. “Não se tem notícia de precedente de admissão de assistência à
acusação na fase inquisitorial. Tal privilégio jamais foi admitido para
quaisquer das autoridades acima elencadas, nem mesmo para o presidente da
República”, diz o recurso do Ministério Público.
Talvez se pense, não sem razão, que o
inquérito das supostas agressões no aeroporto de Roma é um caso menor, em
comparação com outros processos importantes do STF, que afetam toda a
sociedade. No entanto, é nos casos aparentemente pequenos que se manifesta o
efetivo respeito de um tribunal pela lei. Não há nenhum sentido em conceder
tratamento diferenciado a um ministro do STF, tratamento este que nenhum outro
cidadão recebe por parte da Justiça.
Por isso, ao recorrer da decisão do ministro
Dias Toffoli, a PGR não confrontou a autoridade do STF, como alguns disseram. O
que fez, isso sim, foi prestar um favor ao Supremo, ao dar a oportunidade para
que ele se emende e revogue as medidas excepcionais. Não faz bem à autoridade
de uma Corte constitucional a concessão de privilégios a seus integrantes.
Ninguém tem dúvida de que, no caso concreto,
os direitos do ministro Alexandre de Moraes e de sua família serão
exemplarmente respeitados. Ou seja, não há necessidade de medidas que, mesmo
não sendo proibidas por lei, são manifestamente inusuais.
Não deve haver tolerância com agressões e ameaças contra o STF, seus ministros e familiares. Se houve alguma conduta criminosa, os autores têm de ser punidos. Mas nada disso autoriza descumprir a lei ou criar privilégios, simplesmente porque a suposta vítima é ministro do Supremo. Esta é a melhor defesa que se pode fazer do STF: para todos, a mesma lei.
O desafio de alimentar muitos com pouco
Correio Braziliense
No Brasil, um dos celeiros do mundo, os
números também assustam. São 21 milhões de pessoas sem ter o que comer todos os
dias, e 70,3 milhões em situação de insegurança alimentar
A fome é um flagelo que segue afligindo o
mundo. Segundo dados divulgados recentemente pela Organização das Nações Unidas
(ONU), o planeta tem 735 milhões de pessoas passando fome, e 2,3 bilhões em
insegurança alimentar. No Brasil, um dos celeiros do mundo, os números também
assustam. São 21 milhões de pessoas sem ter o que comer todos os dias, e 70,3
milhões em situação de insegurança alimentar.
Ao se olhar para o futuro, as perspectivas
também não são animadoras. Estima-se que até 2050 — ou seja, daqui a 27 anos —
o mundo atingirá um pico populacional de 10 bilhões de pessoas, o que coloca
diante da humanidade um desafio monumental: produzir mais comida com menos
espaço e recursos, enquanto as mudanças climáticas ameaçam reduzir as terras
aráveis em todo o planeta.
É claro que a fome não é apenas uma questão
de falta de comida: ela também é provocada por desigualdade, acesso limitado a
recursos, pobreza e sistemas alimentares inadequados. Mas o iminente
crescimento da população impõe uma pressão significativa sobre os recursos
naturais, a terra e a água. As terras aráveis já estão sendo usadas
intensivamente, e o crescimento populacional só tornará essa competição por
espaço para lavouras e criação de animais ainda mais acirrada.
Soma-se a isso o cenário catastrófico que as
mudanças climáticas estão provocando no planeta. O aumento das temperaturas, os
eventos climáticos extremos, como temporais e ondas de calor, e a escassez de
água são ameaças reais para a produção de alimentos, além da evidente
degradação das terras atualmente usadas para a agricultura, reduzindo a
produtividade e colocando em sério risco a produção de alimentos para o futuro
próximo.
Dentro deste contexto, o Brasil, com sua
vasta extensão territorial, recursos naturais abundantes e uma indústria
agrícola em crescimento, pode desempenhar um papel crucial na busca da
eficiência na produção de alimentos. O país é um dos principais produtores e
exportadores mundiais de commodities agrícolas, como soja, carne e milho, e o
agronegócio corresponde a quase um terço do Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro.
No entanto, o desafio vai além de
simplesmente aumentar a produção. É necessário fazê-lo de forma sustentável e
eficiente. Isso implica priorizar a inovação, a sustentabilidade e a
eficiência, adotando práticas agrícolas mais sustentáveis, investindo em pesquisa
e tecnologia, e promovendo a educação voltada para a área. A agricultura de
precisão — que levou definitivamente o computador para o campo —, o uso de
biotecnologia, a gestão eficiente de recursos hídricos e a diversificação das
culturas são apenas algumas das estratégias que podem ajudar a aumentar a
produção de alimentos de forma sustentável. Além disso, o Brasil pode
desempenhar um papel fundamental na conservação da Amazônia e de outros biomas,
garantindo que as terras sejam usadas de maneira responsável, e a
biodiversidade preservada.
O que surge para o Brasil, a partir deste
cenário desafiador, é uma oportunidade única de liderar a revolução
agropecuária que o planeta vai precisar para se alimentar nos próximos anos. É
assim que o ingresso definitivo do país no grupo das grandes potências mundiais
se dará: contribuindo para a segurança alimentar global, de modo a garantir que
ninguém passe fome em um mundo de abundância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário