quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

É sensato recurso da PGR em processo envolvendo Moraes

O Globo

Ministro foi aceito como assistente da acusação em inquérito que apura agressão em aeroporto

Tem razão a procuradora-geral da República interina, Elizeta Ramos, em impetrar recurso contra a inclusão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STFAlexandre de Moraes como assistente de acusação no inquérito que apura as circunstâncias do tumulto provocado por bolsonaristas contra a família dele na Itália. Permitir a participação de Moraes numa acusação em estágio inicial — não há sequer formalização de indiciamento nem denúncia — seria, nas palavras dela, um “privilégio incompatível com o princípio republicano”. A decisão partiu do ministro Dias Toffoli, relator do caso no STF. Se não for suspensa, permitirá a Moraes sugerir obtenção de provas e questionar testemunhas num caso em que ele próprio é parte envolvida.

O episódio ocorreu na porta da sala VIP do aeroporto internacional de Roma no dia 14 de julho. Moraes e sua família voltavam ao Brasil depois de ele proferir palestra na Universidade de Siena. O ministro conta que foi xingado de “bandido, comunista e comprado” por uma mulher identificada como Andreia Munarão. Pelo relato dele, Roberto Mantovani Filho, marido de Andreia, deu um tapa no rosto do filho de Moraes, Alexandre Barci. Em seguida, Andreia voltou com o genro, Alex Zanatta Bignotto, e soltou novas ofensas.

De volta ao Brasil, Moraes acionou a Polícia Federal (PF). Foi instaurado inquérito para apurar as circunstâncias e os crimes de injúria, perseguição e desacato. Andreia, Mantovani Filho e Bignotto negam as acusações. Após chegarem ao interior de São Paulo, onde moram, os três foram alvo de mandados de busca e apreensão, medida tida pela defesa como injustificada. Suas residências foram vasculhadas e seus celulares apreendidos. Mesmo que houvesse a suspeita de vínculo com os ataques do 8 de Janeiro, foi um exagero.

As imagens das câmeras de segurança do aeroporto de Roma só chegaram ao Brasil mais de um mês e meio depois do fato. Em relatório, a PF afirmou que “constatou-se que a atitude hostil e agressiva de Roberto Mantovani Filho e de sua esposa, Andreia Munarão, (…) contribuíram sobremaneira para o desencadeamento de uma discussão com o filho do ministro Alexandre de Moraes, Alexandre Barci de Moraes, que culminou numa aparente agressão física de Roberto Mantovani contra Alexandre Barci”. A defesa dos acusados alega que a perícia italiana é menos conclusiva. Os vídeos não são públicos. Por decisão de Toffoli, as imagens podem ser vistas apenas pelas partes, nas dependências do tribunal.

Hostilidades e agressões a autoridades, como a qualquer cidadão, devem ser coibidas e punidas. Não há a menor dúvida sobre isso. O Código de Processo Penal permite a vítimas de crimes atuar como auxiliares do Ministério Público na fase de processo. Embora não proíba na fase de inquérito, é prática inusitada. Não há lei que confira tal privilégio a autoridades. “Não se tem notícia de precedente de admissão de assistência à acusação na fase inquisitorial”, diz o recurso da PGR. “Tal privilégio jamais foi admitido (...) nem mesmo para o Presidente da República.”

Mantida a participação de Moraes no atual estágio da investigação, passarão a pairar dúvidas sobre o direito de defesa dos acusados. Mesmo que se busque uma condenação exemplar para quem interpela e calunia autoridades em lugares públicos, o devido processo legal precisa ser respeitado. Ainda mais quando um dos envolvidos é um ministro da mais alta Corte do país.

Outros países trazem inspiração para o Brasil lidar com envelhecimento

O Globo

Políticas públicas voltadas para população mais velha devem ser estudadas e adotadas desde já

Não é novidade o envelhecimento do Brasil. O que chama a atenção dos demógrafos é a velocidade com que ocorre. Pelos dados do Censo de 2022, a população com 65 anos ou mais cresceu 57,4% desde 2010. São 22,1 milhões de brasileiros, ou 11% do total. Um quinto dos idosos são octogenários. O Censo adiantou para o início dos anos 2030 o momento em que a população economicamente ativa parará de crescer, encerrando o bônus demográfico com que todo país conta para se desenvolver. Desde já, os desafios são imensos.

Os mais óbvios estão nos sistemas de saúde e previdenciário. O SUS precisará estar pronto para atender mais idosos. Serão necessárias novas reformas na Previdência para garantir sua sustentabilidade. Mas as necessidades de um país mais velho não se resumem ao óbvio. O Brasil precisa analisar com atenção o exemplo de países que têm enfrentado o envelhecimento com sucesso. Pela primeira vez há no planeta mais habitantes com mais de 65 anos do que com menos de 5. A transformação é global.

Em estudo recente, o Banco Mundial apontou o Uruguai como exemplo na América Latina de preparação para a transição demográfica. A estimativa é que o custo dos serviços sociais básicos cresça de 25% do PIB em 2013 para 43% em 2100. Além de preparar o sistema de saúde para arcar com a demanda mais complexa, os uruguaios precisarão investir para aumentar a produtividade da economia, manter os idosos ativos e ampliar desde já a capacidade de poupança da população que envelhecerá. Só assim uma economia com menos gente trabalhando será capaz de sustentar a todos no futuro.

O Fórum Econômico Mundial destaca dois exemplos inspiradores: Japão e Cingapura, ambos com um quarto da população acima dos 65. Em Cingapura, um programa do governo lançado em 2014 dá a cada cidadão uma poupança para uso em cursos de formação em qualquer idade. Há políticas para manter fundos para idosos incapazes de sustentar a própria aposentadoria e para incentivar moradia perto da família, reduzindo custos com cuidadores.

No Japão, são conhecidos os planos de saúde generosos subsidiados pelo governo, assim como esquemas de aposentadoria que pagam por serviços como compras domésticas, cuidados pessoais e medicina preventiva. Em 2015, o governo lançou um programa que investe em tecnologia e robótica para ajudar cuidadores e que implementa mudanças de design para adequar instalações urbanas, transportes ou móveis às necessidades dos mais velhos. As cidades vêm sendo adaptadas para mantê-los saudáveis e produtivos.

O Brasil é pobre e desigual, tem diversas outras prioridades, mas nada nos impede de começar a pensar desde já em estabelecer normas de design para locais de trabalho adequadas a idosos ou criar políticas de treinamento e aprendizado na aposentadoria. Não faltam casos bem-sucedidos de acolhimento e apoio aos mais velhos. O país tem de se preparar para permitir que os idosos mantenham saúde física e mental. Todos sairão ganhando.

Mudança da meta fiscal piora as expectativas

Valor Econômico

Ao deixar em aberto o esforço fiscal que pretende fazer, o governo insinua que ele também será objeto de barganha política

Ao reunir-se ontem com os líderes e presidentes de partidos da base governista na Câmara dos Deputados, o presidente Lula disse que não quer gastar mais, só não pretende contingenciar - isto é, gastar menos. Entre aumentar ou diminuir despesas encontra-se a meta fiscal. Pelo novo regime, elas crescerão até 2,5% além da inflação (teto), sem que, entretanto, ultrapassem 70% das receitas primárias. Quanto mais perto da zeragem do déficit ela estiver, maior terá de ser a receita em relação aos gastos. Em outras circunstâncias, haveria a possibilidade de cortes dos dispêndios para equilibrar as contas. No regime aprovado, isso só ocorrerá se a meta correr o risco de ser descumprida. É o que o presidente Lula quer evitar, ao desdenhar publicamente da importância do resultado primário. Com isso, o presidente deslocou o pêndulo do esforço político de seu próprio governo e das expectativas dos partidos supostamente aliados no Congresso.

Minoritário no Legislativo, o governo tinha um norte claro em suas relações com o Centrão, indicado pela pauta econômica regida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e baseada no aumento da arrecadação tributária. Ela financiaria dentro de certos limites fixos a expansão de gastos e investimentos, e os investidores refizeram suas expectativas diante da austeridade “possível” no governo atual, um cenário menos ruim do que a gastança irrefreada defendido pela ala dura do PT. Essa premissa alinhava também os líderes do Centrão e colocava algumas restrições a seu apetite de apropriação orçamentária.

Parecia a repetição habitual da forma com que o Executivo conduz a pauta no Congresso, sob o signo da economia, orientando os rumos da votação em direção a seus objetivos expressos. A maneira usual de governar, porém, foi corroída pelo desgaste do PT com os escândalos de corrupção, que o levaram a uma vitória por ínfima margem em relação a Bolsonaro e pelo preenchimento do vácuo por forças fisiológicas do Centrão, que deu um protagonismo ímpar ao Congresso. Esse equilíbrio, escudado no novo regime fiscal, na reforma tributária e nas medidas para aumento das receitas, foi gravemente danificado pela entrevista de Lula, ao dizer que a meta não precisaria ser cumprida e insinuar que isso para ele não tinha importância alguma.

A reação do relator da Lei de Diretrizes Orçamentária, Danilo Forte (União-CE), foi imediata e significativa. Ele disse que o presidente “jogara a toalha” e que o sinal viera de cima para mudar a meta fiscal. O alívio do relator foi sentido pela ala petista do governo, vocalizado com estridência pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e com voz bem baixa pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa.

O presidente Lula gosta de ouvir vozes divergentes em seu governo, como mostrou no passado, e de ser árbitro nas disputas. Ainda assim, na maior parte das vezes, esse era um processo de decisão intramuros, mesmo com os inevitáveis vazamentos. Raras vezes, porém, o presidente desautorizou ao vivo e em cores seu principal ministro em público, colocando um enorme senão nas principais diretrizes que vinham sendo seguidas pelo seu próprio governo. Tudo isso poderia ser resolvido a seu tempo e com uma conversa tranquila com poucos interlocutores. A atitude de Lula foi desastrosa.

Os novos ventos que o Planalto sopra para o Centrão são de que não haverá cortes orçamentários que prejudiquem os acordos de repartição de verbas em emendas e projetos do Congresso. É surpreendente o fato de que o Centrão apertava o cerco ao governo em várias frentes, da ampliação de emendas impositivas à ocupação de cargos na Caixa, Funasa e estatais, mas não a respeito da meta fiscal. Com a barganha, a Câmara acabara de aprovar as mudanças na taxação de fundos offshore e exclusivos, ampliando as receitas pelas quais Haddad se esforçava por obter. Lula pediu ontem aos líderes da base que se esforcem para aprovar os projetos do governo que aumentem as receitas tributárias. O pedido agora, depois de dinamitar o déficit zero, tem outro sentido. Como o aumento de despesas é uma proporção fixa do aumento de receitas, o presidente procura espaço para ampliar gastos. Uma meta de déficit camarada pode limitar o esforço fiscal ao mesmo tempo que impedir seu descumprimento, que acarretaria, no exercício seguinte, uma série de restrições, entre elas a redução da expansão de gastos a 50% das receitas.

A definição da meta terá consequências no resto do mandato. Ao defender o equilíbrio fiscal, Haddad, em acordo com Lula, daria a indicação de que o governo seguiria uma trilha previsível, capaz de diminuir o passo do endividamento, trazer a inflação de volta para a meta, reduzir os juros insustentáveis e criar um ambiente mais favorável ao crescimento. Mas o presidente mudou de ideia. Com isso, piorou as expectativas sobre o ritmo da queda de juros e da inflação, o grau de endividamento e o próprio crescimento da economia.

Ao deixar em aberto o esforço fiscal que pretende fazer, o governo insinua que ele também será de certa forma objeto de barganha política, um passo errado e arriscado demais tendo em vista a fragilidade de sua representação no Congresso.

Estrago feito

Folha de S. Paulo

Sinal de Lula de que não cortará gastos libera demanda de aliados e do Congresso

Depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) declarar seu descompromisso com a meta de zerar o déficit primário federal em 2024, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não se saiu melhor.

Em entrevista, abusou de condescendência com os profissionais da imprensa, o que é sempre um mau sinal. Irritado, não respondeu perguntas óbvias de jornalistas a respeito de qual é, afinal, o plano do governo, restando claro que não conta com o apoio do presidente na tarefa de equilibrar as contas.

A sinalização é ruim não porque já houvesse ceticismo no setor privado —expectativas de analistas apontavam para um resultado negativo até maior, de R$ 89 bilhões, equivalente a cerca de 0,8% do PIB.

Mas, com o sinal verde de Lula, que voltou à carga nesta terça (31) para dizer que não cortará gastos, todas as demandas políticas, do Planalto e do Congresso, poderão agora ser incluídas no Orçamento.

Sem a liderança do Executivo, não será possível conter a sanha por emendas parlamentares, agora impositivas, que deixarão de ser contingenciadas, entre outros itens. O governo discute o tamanho da revisão da meta, que pode apontar déficit de pelo menos 0,5% do PIB no ano que vem. Com isso, as projeções para 2024 devem piorar.

O mandatário age para aplacar pressões de seu núcleo político, que deseja manter obras e, com isso, evitar o já esperado desaquecimento da economia. A popularidade presidencial também dá sinais de queda, o que tende a aumentar bastante a impaciência.

Desde sempre já estava claro que todo o edifício do novo arcabouço fiscal dependia de mais receitas, mas ao menos Haddad prometia algum controle de gastos. Se a agenda já era difícil no Congresso, que insiste em aprovar despesas, fica quase impossível antever qualquer disposição mais cautelosa.

Será um erro grave manter esse rumo. As consequências para a economia serão danosas, na forma de juros mais altos, como já se observa, além de desvalorização do real e aumento da inflação. Com gastos frouxos, a política monetária terá que ser mais apertada.

A cantilena de que há interesses escusos por trás da demanda de austeridade não se sustenta. Longe de ganância do mercado, é a mecânica inescapável da indisciplina fiscal que impõe custos para a sociedade. Eis o círculo vicioso que aprisiona o país na armadilha do baixo crescimento.

Não ajuda, além disso, que os juros internacionais estejam em alta, o que recomenda cuidado redobrado. Corre-se o risco, agora cada vez mais palpável, de que se colha o oposto do que se busca —degradação econômica e mazelas sociais. O filme poderá se repetir, sempre com final infeliz.

Um atraso maroto

O Estado de S. Paulo

A demora para indicar um nome ao STF reforça as piores impressões. Mais que cumprir os requisitos constitucionais, Lula pretende tratar a Corte como anexo do Palácio do Planalto

A ministra Rosa Weber aposentou-se no dia 30 de setembro. Desde então, houve muitas especulações sobre quem seria a pessoa indicada para ocupar sua cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF). O fato, no entanto, é que o presidente Lula da Silva ainda não exerceu sua competência privativa, prevista na Constituição, e o Supremo completou um mês desfalcado, com apenas 10 ministros.

Duas coisas chamam a atenção nesse atraso do presidente Lula da Silva. Em primeiro lugar, é o desrespeito com a Corte constitucional. A aposentadoria da ministra Rosa Weber não foi um ato imprevisto. Já se sabia que uma cadeira do STF ficaria vaga no fim de setembro de 2023 e, sendo sua competência privativa, cabia ao presidente da República definir quem iria indicar para o cargo. No entanto, Lula da Silva nada fez até aqui.

Essa omissão do líder petista escancara uma percepção equivocada sobre o exercício do poder. A competência privativa de indicar um nome a ser sabatinado pelo Senado para compor o STF não é mero arbítrio, como se fosse uma faculdade que pode ou não ser exercida, a depender de seus interesses. Trata-se de um dever constitucional. É certo que não há um prazo, mas isso não significa autorização para omitir-se – ou para atuar apenas quando for do seu agrado.

É a clássica distinção entre exercício de um direito (passível de ser realizado na perspectiva do interesse próprio) e exercício de um poder (que deve ser realizado na perspectiva do interesse de outrem). Um exemplo é o pátrio poder, que deve ser exercido não em benefício de quem detém esse poder, mas segundo o melhor interesse dos filhos. Lula da Silva parece ver nos poderes inerentes à Presidência da República um direito pessoal, a ser exercido exclusivamente para atender a seus desejos e idiossincrasias.

O segundo aspecto também se relaciona com o uso enviesado do poder. Não há nenhum indício mostrando que a demora de Lula da Silva para indicar uma pessoa a ocupar a vaga da ministra Rosa Weber esteja relacionada com a definição de um bom nome para o STF. É todo o contrário, como se o decurso de tempo pudesse facilitar a aceitação do nome que o presidente da República deseja colocar no STF.

A indicação de um ministro para a Corte constitucional representa uma grave responsabilidade, mas não é uma tarefa hercúlea, a demandar um longo período de tempo, uma reflexão sem fim. A Constituição de 1988 é exigente, mas não é complicada. Estabelece que os ministros do STF devem ser “escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”.

Cabe, portanto, ao presidente da República verificar se suas opções de nomes têm notável saber jurídico e reputação ilibada. É isso o que precisa ser analisado. No entanto, a demora na indicação da pessoa escolhida transmite uma mensagem completamente distinta do que dispõe a Constituição, como se o procedimento de escolha envolvesse sofisticados cálculos e acordos políticos. Nesse decurso de tempo, o STF fica desgastado, quando deveria ocorrer exatamente o contrário. O rito constitucional previsto para o preenchimento das vagas do STF deve fortalecer a autoridade da Corte, e não enfraquecê-la.

Sempre, mas especialmente nos tempos atuais conturbados, é necessário preservar e zelar pela identidade institucional do STF. Trata-se de um órgão jurídico, e não político. E seu caráter jurídico se expressa especialmente na independência de seus ministros. A Corte não está subordinada nem ao Legislativo nem ao Executivo. No entanto, ao atrasar a indicação, Lula da Silva dá sinais de que vê no Supremo um anexo para tratar de seus interesses – e, por isso, seria tão fundamental toda essa articulação prévia.

O PT não lida bem com autonomia. Almeja tudo ao alcance do seu cabresto. Não é, portanto, surpresa que Lula da Silva tenha dificuldade em indicar alguém para uma cadeira onde há uma série de prerrogativas constitucionais para assegurar a independência. Cabe ao Senado não se deixar manipular.

Um país em regime de urgência

O Estado de S. Paulo

Quantidade de projetos que tramitaram neste ano em regime de urgência na Câmara, driblando comissões e debates, desmoraliza instrumento legítimo para acelerar votações relevantes

A Câmara dos Deputados aprovou neste ano 115 pedidos de urgência para acelerar a tramitação de projetos de lei. Não haveria indignação se todos os textos ancorados nesse regime versassem sobre temas emergenciais para a sociedade brasileira, como prega o regimento da própria Casa. Ocorre que não é esse o caso. A banalização do uso de um instrumento excepcional e legítimo, para driblar as comissões especializadas e as audiências públicas e encurtar o caminho de projetos até o plenário, traduz-se em enfraquecimento do processo legislativo. É abusivo e injustificável.

Reportagem do Estadão informa que, desde fevereiro de 2021, quando o deputado Arthur Lira (PP-AL) assumiu a presidência da Câmara, 360 solicitações de regime de urgência foram aprovadas. No triênio anterior, os pedidos somaram 261. É fato que as regras de urgência haviam sido adotadas temporariamente como regulares durante o período da pandemia de covid-19, como meio de impedir a paralisia dos trabalhos da Casa. Superada a crise sanitária, o mesmo Lira que determinou o retorno do trabalho presencial em 15 de outubro de 2021 e a retomada das atividades das comissões manteve flexível o uso – ou melhor, o abuso – desse mecanismo. Virou rotina.

É preciso ter sólidas razões para apressar a tramitação das matérias legislativas, abrindo mão do relevante exame de projetos de lei por comissões permanentes e temporárias, especializadas nas temáticas abordadas pelos textos, e pelas audiências públicas, onde entidades setoriais e a sociedade civil apresentam seus argumentos e confrontam seus interesses. Não à toa, a urgência é recomendada somente quando a pressa na adoção de leis emergenciais se sobrepõe à tramitação regular. O regimento da Câmara sublinha com clareza que tal instrumento está reservado para casos de defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais, situações de calamidade pública, aprovação de acordos internacionais, declarações de guerra, de Estado de Defesa, de Estado de Sítio e intervenções federais nos Estados.

Não seria cabível, portanto, a propostas como a que previu pena de prisão de quatro anos a quem discriminasse políticos, de autoria da deputada Dani Cunha (União-RJ), aprovada no plenário apenas 21 dias depois de outorgado o regime de urgência. Muito menos a concessão desse mesmo tratamento ao projeto de lei de regulamentação de apostas esportivas e legalização dos jogos de azar. Ambos se somam a dezenas de textos que muito bem poderiam ter caminhado pelas comissões pertinentes antes de serem levados ao plenário – onde não raro parlamentares votam sem antes nem sequer lerem o texto.

Um elemento tortuoso nesse processo de tramitação a jato o torna ainda mais problemático: o poder de blocos partidários com mais de 171 parlamentares em sua base, que necessitam apenas da assinatura de seu líder para que um requerimento de urgência seja incluído na pauta da Câmara. Tal é a circunstância do agrupamento composto por União Brasil, PSDB-Cidadania, Avante, Solidariedade e Patriota, com 175 deputados. Aos blocos com menos votos, é preciso a assinatura de pelo menos dois líderes.

Assim como é amplamente questionável o abuso de medidas provisórias por parte do Executivo, como meio de antecipar a aplicação de regras antes do necessário exame do Legislativo, a deturpação do regime de urgência na tramitação de projetos de lei pela Câmara dos Deputados merece condenação. A “Casa do Povo” não é assim designada somente por sua representação proporcional da cidadania dos Estados, mas também por pressupor o debate exaustivo e em etapas antes da decisão final do plenário – princípio compartilhado pelo Senado Federal.

No mínimo, espera-se seriedade dos deputados federais e dos líderes partidários na formulação e aprimoramento de leis a serem cumpridas por toda a sociedade. Fugir do rito regular de tramitação de projetos por meio de artifícios marotos, sem que haja uma emergência real a justificálos, é abuso que nenhuma democracia pode tolerar.

O privilégio do sr. Moraes

O Estado de S. Paulo

Além de causar danos ao STF, tratamento diferenciado para Alexandre de Moraes fere princípios republicanos

Em tempos de acirramento político-ideológico e de incompreensão generalizada sobre o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no Estado Democrático de Direito, a Procuradoria-Geral da República (PGR) forneceu uma oportunidade para a Corte mostrar seu compromisso com a igualdade de todos perante a lei, sem pactuar com o corporativismo. Não convém desperdiçar o ensejo.

Em recurso interposto no inquérito que investiga suposta agressão contra o ministro Alexandre de Moraes e sua família no aeroporto de Roma, a PGR fez dois pedidos ao ministro Dias Toffoli, relator do caso: o levantamento integral do sigilo das filmagens contendo as supostas hostilidades e a reconsideração da decisão que admitiu a participação das supostas vítimas, desde a fase da investigação, como assistentes de acusação.

“Não se pode construir privilégios em investigações criminais e, por tal razão, não se pode admitir a manutenção do sigilo fragmentado da prova no caso em exame”, disse a PGR a respeito do sigilo. Lembrou ainda que a restrição imposta prejudica o trabalho do Ministério Público e afeta a compreensão dos fatos pela opinião pública.

Sobre a participação de Alexandre de Moraes e familiares como assistentes de acusação, a PGR afirmou se tratar de um “privilégio pessoal”, em razão de inexistir essa figura na fase de investigação. “Não se tem notícia de precedente de admissão de assistência à acusação na fase inquisitorial. Tal privilégio jamais foi admitido para quaisquer das autoridades acima elencadas, nem mesmo para o presidente da República”, diz o recurso do Ministério Público.

Talvez se pense, não sem razão, que o inquérito das supostas agressões no aeroporto de Roma é um caso menor, em comparação com outros processos importantes do STF, que afetam toda a sociedade. No entanto, é nos casos aparentemente pequenos que se manifesta o efetivo respeito de um tribunal pela lei. Não há nenhum sentido em conceder tratamento diferenciado a um ministro do STF, tratamento este que nenhum outro cidadão recebe por parte da Justiça.

Por isso, ao recorrer da decisão do ministro Dias Toffoli, a PGR não confrontou a autoridade do STF, como alguns disseram. O que fez, isso sim, foi prestar um favor ao Supremo, ao dar a oportunidade para que ele se emende e revogue as medidas excepcionais. Não faz bem à autoridade de uma Corte constitucional a concessão de privilégios a seus integrantes.

Ninguém tem dúvida de que, no caso concreto, os direitos do ministro Alexandre de Moraes e de sua família serão exemplarmente respeitados. Ou seja, não há necessidade de medidas que, mesmo não sendo proibidas por lei, são manifestamente inusuais.

Não deve haver tolerância com agressões e ameaças contra o STF, seus ministros e familiares. Se houve alguma conduta criminosa, os autores têm de ser punidos. Mas nada disso autoriza descumprir a lei ou criar privilégios, simplesmente porque a suposta vítima é ministro do Supremo. Esta é a melhor defesa que se pode fazer do STF: para todos, a mesma lei.

O desafio de alimentar muitos com pouco

Correio Braziliense

No Brasil, um dos celeiros do mundo, os números também assustam. São 21 milhões de pessoas sem ter o que comer todos os dias, e 70,3 milhões em situação de insegurança alimentar

A fome é um flagelo que segue afligindo o mundo. Segundo dados divulgados recentemente pela Organização das Nações Unidas (ONU), o planeta tem 735 milhões de pessoas passando fome, e 2,3 bilhões em insegurança alimentar. No Brasil, um dos celeiros do mundo, os números também assustam. São 21 milhões de pessoas sem ter o que comer todos os dias, e 70,3 milhões em situação de insegurança alimentar.

Ao se olhar para o futuro, as perspectivas também não são animadoras. Estima-se que até 2050 — ou seja, daqui a 27 anos — o mundo atingirá um pico populacional de 10 bilhões de pessoas, o que coloca diante da humanidade um desafio monumental: produzir mais comida com menos espaço e recursos, enquanto as mudanças climáticas ameaçam reduzir as terras aráveis em todo o planeta.

É claro que a fome não é apenas uma questão de falta de comida: ela também é provocada por desigualdade, acesso limitado a recursos, pobreza e sistemas alimentares inadequados. Mas o iminente crescimento da população impõe uma pressão significativa sobre os recursos naturais, a terra e a água. As terras aráveis já estão sendo usadas intensivamente, e o crescimento populacional só tornará essa competição por espaço para lavouras e criação de animais ainda mais acirrada.

Soma-se a isso o cenário catastrófico que as mudanças climáticas estão provocando no planeta. O aumento das temperaturas, os eventos climáticos extremos, como temporais e ondas de calor, e a escassez de água são ameaças reais para a produção de alimentos, além da evidente degradação das terras atualmente usadas para a agricultura, reduzindo a produtividade e colocando em sério risco a produção de alimentos para o futuro próximo.

Dentro deste contexto, o Brasil, com sua vasta extensão territorial, recursos naturais abundantes e uma indústria agrícola em crescimento, pode desempenhar um papel crucial na busca da eficiência na produção de alimentos. O país é um dos principais produtores e exportadores mundiais de commodities agrícolas, como soja, carne e milho, e o agronegócio corresponde a quase um terço do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.

No entanto, o desafio vai além de simplesmente aumentar a produção. É necessário fazê-lo de forma sustentável e eficiente. Isso implica priorizar a inovação, a sustentabilidade e a eficiência, adotando práticas agrícolas mais sustentáveis, investindo em pesquisa e tecnologia, e promovendo a educação voltada para a área. A agricultura de precisão — que levou definitivamente o computador para o campo —, o uso de biotecnologia, a gestão eficiente de recursos hídricos e a diversificação das culturas são apenas algumas das estratégias que podem ajudar a aumentar a produção de alimentos de forma sustentável. Além disso, o Brasil pode desempenhar um papel fundamental na conservação da Amazônia e de outros biomas, garantindo que as terras sejam usadas de maneira responsável, e a biodiversidade preservada.

O que surge para o Brasil, a partir deste cenário desafiador, é uma oportunidade única de liderar a revolução agropecuária que o planeta vai precisar para se alimentar nos próximos anos. É assim que o ingresso definitivo do país no grupo das grandes potências mundiais se dará: contribuindo para a segurança alimentar global, de modo a garantir que ninguém passe fome em um mundo de abundância.


 

 

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