quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Vinicius Torres Freire - Mexer no 'déficit zero' mais cria do que resolve problema

Folha de S. Paulo

Mexer nas regras do jogo para escapar de punições por excesso de gasto causa o dano maior

Até o início da noite desta terça-feira (31), os ministros mais envolvidos na querela do déficit zero não tinham ideia do que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiria a respeito do assunto. Fernando Haddad estava em reunião no Planalto. Na sexta-feira (3), deve haver uma ou várias reuniões ministeriais com Lula. Talvez tratem também da mudança da meta.

Mas esse sururu e tanta fofoca é o mais importante? Discutir se a nova meta é 0,25% ou 0,5%? Não.

Ninguém sabia dizer se Lula mandaria emendar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO, onde estão definidas as metas dos próximos anos) até a semana que vem. Ou se pediria ao Congresso que fizesse a emenda mais tarde, a depender do destino da lei que manda cobrar imposto federal sobre parte das isenções de ICMS.

Parlamentares não gostam desse projeto, em particular nos estados mais animados da guerra fiscal; governadores e empresas amigas fazem lobby para derrubá-lo, assim como têm tentado barrar outros planos de Haddad.

A nova meta de déficit primário vai ser de 0,25% do PIB ou de 0,5% do PIB? Parte da "ala política" do governo queria 0,5% desde a discussão da meta de déficit, no primeiro terço do ano. É o debate essencial?

Como se sabe, era quase geral a opinião de que o governo dificilmente cumpriria a meta de déficit primário zero em 2024 (saldo primário: receita menos despesa, afora gastos com juros). Então, tudo bem ajustar a meta? Não.

Primeiro, por motivos políticos. Relaxada a meta, o Congresso vai estar ainda menos disposto a arrumar encrenca com gente poderosa e rica, cobrando mais imposto.

Segundo, mudar a meta, permitir mais déficit primário, diminui um tanto a chance de o governo descumpri-la. Não seria preciso fazer tanto corte de despesa, tudo mais constante.

Mais importante, fica assim mais fácil escapar das punições pelo descumprimento do objetivo, previstas pela lei do "arcabouço fiscal". Por exemplo, se a meta é descumprida, o aumento de gasto para o ano seguinte tem de ser menor, entre outras possíveis restrições.

O problema maior é, pois, a mudança das regras do jogo mesmo antes de o jogo começar, a fim de evitar as restrições de excesso de gasto, que são a essência do arcabouço fiscal.

Assim, aumenta a expectativa de que a dívida pública cresça ainda mais rápido. O primeiro efeito dessa degradação de expectativas é o aumento das taxas de juros no mercado, o que eleva os custos de financiamento do governo e de empresas.

É verdade que o governo tem de lidar com problemas que não criou: isenções fiscais legais ou arrumadas na Justiça; heranças da baderna criada pelas trevas de Jair Bolsonaro; queda inesperada de receita. Mas o governo foi obviamente imprudente: aumentou despesa além da conta. O gasto previsto para 2024 é de 19,2% do PIB.

 

Até junho deste ano, a receita líquida acumulada em 12 meses caía 3,2%; a economia, porém, o PIB, crescera 3,2%. É um resultado um tanto anormal. Em agosto, a receita líquida equivalia a 17,6% do PIB (dado calculável mais recente). Antes da epidemia (fevereiro de 2019), estava em 18,3% do PIB. Em agosto do ano passado, em 19,2% do PIB. Inflações, preços de commodities etc. encheram as burras do governo anterior.

Por ora, não há muito otimismo sobre o PIB do ano que vem. De resto, sabe-se lá se a receita vai se recuperar, se vai ser mais compatível com o ritmo do PIB (isto é, desconsiderados os aumentos de impostos planejados). Sabe-se lá se os aumentos previstos de impostos vão render tanto quanto a Fazenda imagina.

Tendo em vista tamanha barafunda de problemas, talvez Lula esteja certo. O que é 0,25% do PIB? Em si mesmo, talvez pouco, em termos fiscais. Em termos de despesa, em "obras", também não vai fazer muita coceira no PIB, se alguma.

O problema maior, por ora, é chutar o pau que segura o novo teto de gastos, o teto móvel de Lula, que já não era lá muito firme ou rigoroso. Prejudica expectativas, taxas de juros, o crescimento possível. É um tiro no pé.