Jornal da USP
A aprovação da PEC que restringiu as
prerrogativas monocráticas dos ministros do Supremo Tribunal Federal,
impedindo-os de suspender por meio de decisões individuais a vigência de leis
aprovadas pelo Poder Legislativo e atos do chefe do Poder Executivo, sob a
justificativa de que elas interferem na autonomia desses dois Poderes e de que
já estava na hora de se restabelecer o princípio processual da colegialidade da
corte, não foi causada por problemas ocorridos recentemente. Na realidade, ela
resulta de diferentes fatores estruturais, alguns dos quais são bastante
antigos.
Um desses fatores foi a ampliação, promovida pela Constituição de 1988, do número de entidades com prerrogativa legal para impetrar no Supremo ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão arguição de descumprimento de preceitos legais. Outro fator está no imenso poder hoje detido pelo Supremo. Além de atuar como corte constitucional, ele é uma corte de cassação e um tribunal de primeira instância com competência para julgar detentores de mandatos eletivos. A corte também atua na direção do Tribunal Superior Eleitoral e ainda controla o funcionamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Não bastasse isso, ainda há mais uma
importante herança da Constituição de 1988. Dada a complexidade da sociedade
brasileira, que vem se dividindo há décadas em sistemas funcionalmente
diferenciados que, por sua vez, tendem a se subdividir em novos subsistemas, a
Assembleia Constituinte teve de recorrer a uma combinatória entre regras e
princípios constitucionais. Canonizadas pela cultura bacharelesca que durante
muito prevaleceu na cultura jurídica brasileira, as regras se expressam por
meio de conceitos claros e objetivos e são autoaplicáveis, com base numa
interpretação secundum legem. Valorizados pela influência do realismo
americano na renovação do pensamento jurídico, os princípios se expressam por
meio de conceitos vagos, plurívocos e semanticamente indeterminados, o que
exige que sua aplicação seja feita por meio de uma ponderação de interesses.
Com isso, os princípios – como os da boa-fé,
da moralidade pública, da função social do contrato, da função social da
propriedade e do trabalho como “condição da dignidade humana”, por exemplo –
têm uma característica que as regras não têm. Trata-se da dimensão da
importância do que está em jogo num litígio judicial. Justamente porque os
princípios são mais vagos do que as regras, a ponderação sobre os interesses em
conflito permite que os juízes, desembargadores e ministros dos tribunais
superiores levem em conta alguns critérios, como adequação, necessidade,
proporcionalidade e até mesmo a permeabilidade a determinados argumentos de
natureza moral.
O que levou a Assembleia Constituinte a optar
por uma combinatória entre regras e princípios no texto da Carta de 1988 é o
fato de que, numa sociedade complexa como a nossa, as regras jurídicas tendem a
ser ineficazes. Se por um lado elas funcionam bem nos contextos em que há uma
cultura comum, valores sedimentados e comportamentos repetitivos, como ocorre
nos países da Europa Ocidental, por outro deixam a desejar em contextos como o
latino-americano, no qual se inclui o Brasil, em que há muitas fraturas sociais,
acentuadas desigualdades econômicas, enorme diversificação de interesses
particulares e novas rotinas. Para este tipo de contexto, os princípios tendem
a ser mais eficazes do que as regras, uma vez que permitem aos juízes,
desembargadores e ministros julgar os casos judiciais que lhes são submetidos
levando em conta as especificidades dos locais em que os conflitos eclodiram e
avaliando suas consequências naquela comunidade, indo assim muito além dos
autos.
Como, diante das especificidades do País, a
Assembleia Constituinte não teve outra saída a não ser adotar um número muito
maior de princípios do que de regras jurídicas, a maleabilidade inerente aos
princípios aumentou significativamente o alcance das técnicas hermenêuticas. E
como os tribunais não podem deixar sem uma resposta os conflitos que lhes são
levados pelas partes beligerantes, em busca de uma solução, a conjugação de
todos esses fatores multiplicou o protagonismo da magistratura na vida política,
econômica e social brasileira. Apesar do natural e inevitável risco de
interpretações contraditórias dos princípios em casos polêmicos, bem como de
equívocos e aumento de arbítrio judicial nos julgamentos, foi por isso que o
Judiciário passou a impressão de estar interferindo na jurisdição do Executivo
e do Legislativo, o que levou seus integrantes a serem acusados de “ativismo”.
E também foi por isso que, beneficiadas pelo vácuo de poder do último
presidente da República, as bancadas mais fisiológicas, as bancadas
neopentecostais e algumas bancadas corporativas do Senado se sentiram
suficientemente fortes para investir contra o órgão de cúpula do Judiciário,
aprovando a PEC que limita suas decisões monocráticas e tenta retirar da corte
a prerrogativa de estabelecer suas próprias regras internas.
Por mais que a PEC aprovada pelo Senado seja,
por um lado, redundante em alguns pontos, por tratar de casos já regulados pela
ordem jurídico-constitucional, e pressione por outro lado a corte a voltar a
atuar como uma instituição colegiada, deixando de se comportar como um
“arquipélago com onze ilhas”, essa ofensiva é uma ameaça à democracia
constitucional do País. Entre outros motivos porque, sentindo-se empoderadas
com a PEC aprovada pelo Senado, as bancadas religiosas, corporativas e do
Centrão – com suas composições muitas vezes cambiantes e fluidas – poderão
apresentar PECs novas, provocativas e até antidemocráticas. Poderão, inclusive,
tentar recorrer à PEC com o objetivo de restringir as prerrogativas de quem é
responsável por aplicar as leis e de esvaziar o papel da revisão judicial
exercido por uma corte constitucional independente, ignorando assim cláusulas
pétreas em matéria de separação de poderes e garantias fundamentais.
Mas não é só isso. Como, pela Constituição, o
Supremo tem o poder constituinte derivado que lhe foi delegado pelo Poder
Constituinte originário de controlar a constitucionalidade e, por consequência,
de endossar ou considerar inconstitucionais alterações parciais na Carta em
vigor, essa prerrogativa entreabre o risco de uma profunda crise institucional.
Afinal, o que poderá ocorrer caso o Supremo classifique como inconstitucionais
determinadas PECs aprovadas pelo Senado e pela Câmara com base nos procedimentos
formais vigentes, cassando ou reduzindo competências da corte? Em que medida um
Centrão que cada vez mais age desenvolto e sem limites morais em suas ambições
morais não pode se deixar levar pela ilusão de capturar o Executivo e o
Judiciário, submetendo ambos os Poderes aos interesses oligárquicos e
paroquiais de determinados grupos de parlamentares?
Por fim, em um cenário sombrio e perturbador
como esse, em que medida alguns setores das Forças Armadas não se sentirão mais
uma vez estimulados a invocar a ideia de “poder moderador” – ou, na realidade,
de um “poder desestabilizador”, como dizia o historiador José Murilo de
Carvalho, recém-falecido –, sob a justificativa de que o regime democrático é
incapaz de assegurar a lei e a ordem?
*José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP. Jornal da USP, 1/12/23
Nenhum comentário:
Postar um comentário