Por César Felício / Valor Econômico
Ganhador de Prêmio Jabuti afirma que governo
varreu ‘barril de pólvora para debaixo do tapete’ depois de quase um ano do 8
de janeiro
BRASÍLIA - Ganhador do prêmio Jabuti deste
ano na categoria de Ciências Sociais com o livro “Limites da Democracia - De
junho de 2013 ao governo Bolsonaro”, o professor de filosofia da Unicamp Marcos
Nobre afirma que os três Poderes perderam uma oportunidade histórica de
fortalecer a democracia depois dos atos de 8 de janeiro em Brasília. A
prioridade da classe política, segundo Nobre, tem sido fazer “um ajuste de
contas” com o Judiciário, que ganhou protagonismo desde 2014, com o começo da
Operação Lava-Jato.
Um sinal neste sentido, de acordo com Nobre,
foi a aprovação pelo Senado da proposta de emenda à Constituição (PEC) que
limita decisões monocráticas no Supremo, com voto favorável do líder do
governo, Jaques Wagner (PT-BA). Não houve avanços em relação às normas que
limitam a atuação política das Forças Armadas.
A ameaça permanente à democracia que representou a Presidência de Jair Bolsonaro não existe mais, mas a extrema-direita pode ter peso decisivo nas próximas eleições presidenciais, sobretudo em caso de uma vitória do ex-presidente Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos, que revitalizaria o extremismo em termos mundiais. Horas antes de sua premiação, na noite de terça-feira, Nobre foi entrevistado pelo Valor.
A seguir os principais trechos:
Valor: Estamos nos aproximando do
aniversário dos atos de 8 de janeiro em Brasília e ainda há um certo clima de
crise na relação entre os Poderes. Que balanço o senhor faz de 2023 do ponto de
vista institucional?
Marcos Nobre: Temos um vulcão
adormecido. Os problemas estão aí, mas a gente não vê. É algo que se movimenta
abaixo da superfície. O bolsonarismo continua muito forte, continua muito
organizado e não depende mais do Bolsonaro. Já tem organização, um ecossistema que
funciona por si próprio. Parte da aliança de forças que foi representada por
ele em 2018 percebe que pode representá-lo em 2026. É a parte da direita sem
medo de fazer aliança com a extrema-direita. O Centrão temeroso aderiu ao
governo Lula desde o início. O Centrão sem medo é aquele que negocia com o
poder, não para apoiar o governo, mas para se utilizar dos recursos do governo
e assim montar uma candidatura para derrotar o governo em 2026. É o triunvirato
PP-Republicanos-União Brasil. E o PL é a extrema-direita com quem se faz
aliança.
Valor: Mas até aí é do jogo da disputa
democrática. Qualquer oposição arma seu jogo para tentar voltar ao poder. Qual
o problema?
Nobre: Eu faço algumas diferenciações
dentro desse quadro clássico. É a primeira vez que você tem um grupo de
partidos que entrega os votos em bloco. O presidencialismo de coalizão
funcionou do jeito que funcionou porque você tinha fragmentação partidária e
tinha negociação com partidos. Agora a negociação é com conglomerados. Quando
se vai para uma votação no Congresso, ou se tem 200 votos, ou 370. Quem olha de
fora vê uma sucessão de bons resultados do governo, mas se ele tem só 200
votos, ele nem entra. Então a negociação é por tópicos, estar no governo não
significa apoiar o governo. Apoia em algumas coisas, em outras não. Isso é
muito novo.
Valor: A oposição ganhar a eleição e
assumir o governo é diferente de um cenário insurrecional. Na opinião do
senhor, ainda há um cenário em que se pode pensar em uma ruptura?
Nobre: Não. Mas isso não significa que
um projeto autoritário morreu. A questão é que peso vai ter a extrema-direita
nessa correlação de forças e que peso ela vai adquirir ao longo de um eventual
governo caso a oposição ganhe a eleição. Há uma direita sem medo de aderir a
uma extrema-direita. Isso está acontecendo no mundo inteiro. Nós temos uma
divisão no mundo entre uma aliança progressista e uma aliança que eu chamo de
direita sem medo. Na primeira metade da década de 2010, a extrema-direita não
entrava nos acordos do sistema político, isso era um tabu. Agora vemos isso na
Espanha, na Suécia, na Itália, em Israel, mesmo na Argentina. Por outro lado,
existe uma parte da direita que vai para uma aliança progressista. O governo
Biden é isso, no Brasil não é diferente. O futuro da democracia brasileira
depende dessa direita sem medo, caso vença as eleições, não ser hegemonizada
pela extrema-direita. Se Donald Trump vencer nos Estados Unidos, o peso da
extrema-direita no mundo vai aumentar consideravelmente. Nesse momento, o
Brasil, que é um país periférico, vai ficar em compasso de espera para ver para
onde vai o mundo. Em uma situação como essa, de futuro nebuloso, as disputas
internas em cada sistema político tornam-se muito mais importantes. As disputas
atuais entre os Poderes no Brasil remetem a 2015. É o fechamento de um ciclo.
Valor: Por que as disputas
institucionais remetem a 2015?
Nobre: No período entre 2015 e 2018 o
sistema político perdeu o controle da política. Ficou um cabo de guerra entre
uma parte da sociedade que se colocava atrás da Lava-Jato como escudo
institucional e o sistema político, que durou três anos. Por que teve um
impeachment? Porque o sistema político chegou à conclusão que o sistema
político não conseguiria retomar o controle da política, porque o governo de
então, de Dilma Rousseff, tinha lavado as mãos em relação à Operação Lava-Jato.
Um dos eventos mais extraordinários desse período foi o Supremo Tribunal
Federal ter apoiado a Lava-Jato. Foi uma ofensiva em relação aos outros Poderes
que nunca tinha havido antes. Acuou não só o Executivo, mas também o
Legislativo. No governo Bolsonaro o controle foi parcialmente retomado pelo
sistema político, quando houve o acordo do presidente com o Centrão. Como
durante o governo Bolsonaro houve uma ameaça permanente à institucionalidade e
o Congresso deu beneplácito a isso, só o STF assegurava a democracia. O
Congresso não pôde acertar as contas com o Judiciário. Então, o que o sistema
político diz agora? Que não só enquadrou o Poder Executivo, cortando os poderes
imperiais que antes tinha, como vai acertar contas com o Judiciário. Depois que
Bolsonaro perdeu, foi a primeira coisa que o Legislativo procurou fazer. Nesse
processo de se defender, o Legislativo também descobre que tem poderes e
potencialidades que estavam encobertas antes, por aquele modelo pré-2015 em que
o partido que ganhava a eleição presidencial tinha o direito de dirigir o
governo.
Há uma direita sem medo de aderir a uma
extrema-direita. Isso está acontecendo no mundo inteiro”
Valor: Qual foi o impacto do 8 de
janeiro nessa equação?
Nobre: Não teve, para nenhum lado, o que
é surpreendente. O 8 de janeiro deveria reforçar as atribuições e os poderes do
Judiciário. Do ponto de vista do Executivo, o governo poderia ter aproveitado a
oportunidade para isolar a extrema-direita. Mas não houve isso e tudo indica
que não haverá.
Valor: Por que poderia ser diferente?
Nobre: A questão militar deveria ter
sido enfrentada no Brasil desde o fim da ditadura, mas não foi. É evidente que
você não pode ter general da ativa como ministro, nem em palanque com político.
Você tem que estabelecer limites para a atuação das Forças Armadas nos
governos. Isso é bastante claro. Não se tem a prevenção para que esse tipo de
situação não possa ocorrer.
Valor: Mas o Judiciário tem atuado,
colocando diversos oficiais generais entre os investigados nos inquéritos sob
responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes...
Nobre: O que quero dizer é que não
discutimos o que significa o Artigo 142, não discutimos o que significa GLO.
Nós não discutimos profundamente qual deve ser a posição das Forças Armadas em
relação ao sistema político. Muito menos, tomamos ações para que as Forças
Armadas tenham o lugar que merecem dentro das instituições brasileiras, no
sentido de dizer, olha, enquanto Forças Armadas, enquanto pessoas que estão na
ativa, não podem nem devem se candidatar. Nem podem participar de governos, com
exceção de alguns lugares determinados, em que essas posições são adequadas
funcionalmente.
Valor: Como o senhor interpreta a
aprovação pelo Senado da PEC que limita as decisões monocráticas do Supremo?
Nobre: O sistema político funciona em
bloco. Não importa se é extrema-direita, centrão sem medo, centrão relutante,
esquerda ou centro-esquerda. O voto do Jaques Wagner a favor da PEC que limita
as decisões monocráticas é a expressão da autodefesa do sistema político. Nesse
momento você tem o sistema político querendo enquadrar o Judiciário. O que a
extrema-direita nesse momento vai dizer? Bom, não estou sozinha, todo mundo
quer enquadrar o Judiciário e com isso você aproveita para colocar todas
aquelas pautas regressivas. Nós não vamos debater a responsabilização pelo que
aconteceu no governo Bolsonaro.
Valor: O senhor acha que o governo não
priorizou este aspecto? O ministro da Justiça, Flávio Dino, entrou em muitos
embates com o bolsonarismo sobretudo no início do governo.
Nobre: Nitidamente o governo, sob a
orientação do Lula, recuou. Tem pessoas no PT que quiseram discutir isso, tem
projetos de lei, projetos de emenda à Constituição e isso não foi levado
adiante, e por que não foi? Porque tem uma agenda econômica gigantesca para
cumprir no Congresso. E tem um problema, mais do que secular, sobre o papel das
Forças Armadas. O governo achou necessário concentrar atenção na agenda
econômica e varrer para baixo do tapete uma vez mais, essa questão. O barril de
pólvora foi mais uma vez para debaixo do tapete. Do ponto de vista estratégico
da democracia brasileira você vai ter um problema mais para frente. Porque o
problema não desapareceu. A ideia de que as Forças Armadas têm uma posição
privilegiada dentro do Estado democrático de direito brasileiro permanece.
Valor: Se Bolsonaro queria dar um golpe,
por que não deu certo, em sua opinião?
Nobre: É sempre difícil falar sobre o que se passa nas Forças Armadas, pelas características da instituição. As informações que a gente tem são sempre entrecortadas, parciais. O que parece estabelecido é que os principais comandantes não quiseram embarcar. O que eu acho que a gente pode dizer com alguma segurança que você não tinha? Um clima internacional que permitisse isso e uma mobilização interna maior. Se você tivesse no 8 de janeiro, 100 mil pessoas em Brasília pode ser que o desfecho mudasse, não foi o caso, mas poderia mudar se você tivesse mobilizações no Brasil inteiro, gigantescas. Não aconteceu isso. E quem estava governando os Estados Unidos era Biden. Se fosse Trump não sei o que aconteceria. Você não tinha nem regionalmente e nem do ponto de vista geopolítico mais amplo nas Américas apoio internacional para um golpe. Ele se constrói, não é dado. O Bolsonaro tentou construir uma mobilização interna e tentou fazer uma aliança com o Trump e com lideranças de extrema direita mundial. Mas a experiência internacional que a gente tem mostra que se fecha o regime em segundo mandato. Então, isso também pesou.
Um comentário:
Graças a Deus.
Postar um comentário