Operação contra tráfico de armas é exemplo positivo
O Globo
Inteligência, foco e persistência se mostram
mais relevantes que a truculência no combate ao crime
Foi exemplar a operação deflagrada pela
Polícia Federal (PF) no Brasil e no Paraguai para
desarticular uma quadrilha acusada de fornecer mais de 43 mil armas
contrabandeadas da Europa a organizações criminosas brasileiras. A ação, que se
estendeu por pelo menos cinco estados, é resultado de três anos de
investigações e envolveu cooperação com autoridades dos Estados
Unidos e do Paraguai. Seu êxito é mais uma prova de como o
combate ao crime organizado depende de inteligência policial, foco e
persistência.
O principal suspeito de liderar o esquema é acusado de ser o dono de uma empresa em Assunção que contrabandeava armas de países como Croácia, Turquia, República Tcheca e Eslovênia. A numeração era raspada antes de o armamento ser negociado com traficantes que atuam na fronteira do Paraguai com o Brasil e encaminhado às facções criminosas. Na empresa, foram encontradas caixas abarrotadas de pistolas e fuzis. De acordo com a PF, o esquema movimentou R$ 1,2 bilhão em três anos, valor que faria do suspeito, ainda foragido, o maior contrabandista de armas da América do Sul.
O ponto de partida da investigação foi a
prisão de um homem com dois fuzis e 23 pistolas na Bahia em novembro de 2020.
Poderia ter sido apenas mais uma apreensão como tantas outras. Ao longo das
investigações, porém, foram desvendados os meandros do tráfico de armas, e
ficou claro como elas chegam às facções criminosas que aterrorizam a população.
Apesar da numeração raspada, a PF da Bahia conseguiu refazer o caminho do
armamento, identificando fabricante e importador. O esquema envolvia doleiros e
empresas de fachada no Paraguai e nos Estados Unidos para lavar o dinheiro.
A ação da PF dá pistas valiosas sobre como os
criminosos contrabandeiam, revendem dezenas de milhares de armas e ocultam o
dinheiro sem despertar a atenção das autoridades. Entre os presos no Paraguai,
estão militares graduados da Dirección de Material Bélico (Dimabel),
instituição responsável pelo controle e pela fiscalização de armamentos. Eles
são suspeitos de fornecer documentação legal ao contrabando em troca de
propina.
Fica claro que o combate ao tráfico de drogas
e armas no Brasil exige ações firmes do governo federal, uma vez que a
atividade criminosa se espalha por vários estados e países. Os governos
estaduais, aos quais cabe a tarefa constitucional de zelar pela segurança
pública, não dispõem de meios para enfrentar organizações transnacionais. Falta
um plano de segurança capaz de lidar com esquemas abrangentes e complexos, como
o revelado pela operação da PF. As iniciativas apresentadas pelo governo até
agora, embora positivas, são apenas pontuais — caso da operação de Garantia da
Lei e da Ordem (GLO) em portos e aeroportos de São Paulo e Rio.
A operação de terça-feira aponta um caminho
mais promissor para combater o crime organizado. Em vez de ações truculentas
que costumam resultar em muitas mortes com poucos resultados práticos, é mais
lógico apostar na inteligência, na investigação sobre o caminho do dinheiro e
na cooperação policial com outros países. Descobrir quem fornece as armas e
como elas chegam às facções criminosas é fundamental para interromper esse
fluxo que alimenta a violência no
Brasil e para atingir o flanco financeiro das quadrilhas, meio mais eficaz para
desarticulá-las. A operação da PF deveria servir de inspiração a várias outras.
Inteligência artificial impõe desafio urgente
para regulação de eleições
O Globo
Campanha eleitoral argentina revelou como a
desinformação se sofisticou. Também precisamos estar preparados
Estima-se que votações pelo mundo mobilizarão
3,5 bilhões de eleitores em 2024. Nos Estados Unidos haverá eleições gerais,
incluindo a presidencial. No Brasil, o pleito municipal. Por toda parte, cresce
a apreensão com a desinformação, sofisticada pelos avanços na inteligência
artificial (IA). Conteúdos com áudio e vídeo manipulados, os
deep fakes, preocupam governos, parlamentares e juízes.
A última eleição argentina foi a primeira a
tornar evidentes os riscos. Tanto a
campanha do vencedor Javier Milei quanto a do peronista Sergio Massa
reconheceram ter usado ferramentas de IA para propaganda. Logo
depois do último debate do segundo turno, os marqueteiros de Massa puseram em
circulação um vídeo sobre o afundamento do cruzador Belgrano por um submarino
nuclear britânico, com a morte de 323 tripulantes, fato que marcou a Guerra das
Malvinas em 1982.
O vídeo exibe soldados argentinos no navio, e
a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher ordena o ataque ao cruzador.
Antes, a voz de Milei diz que tem como referência “grandes líderes” como
Thatcher. No final, aparece a mensagem de Massa: “Um país não pode ser liderado
por quem admira seus inimigos”. O contra-ataque veio num vídeo também
fraudulento, elaborado por seguidores de Milei, em que Massa aparece cheirando
cocaína.
Nos Estados Unidos, uma comissão do Senado
formada por democratas e republicanos discute propostas de legislação para a
sociedade usufruir os benefícios da IA, mas também se proteger dos danos. O
presidente Joe Biden antecipou-se e, em outubro, baixou decreto mobilizando
áreas do governo para desenvolver propostas de regulação. Na União Europeia,
normas vigentes já obrigam a informar quando qualquer conteúdo é gerado por
robôs ou produzido artificialmente.
No Brasil, são vedadas “montagens, trucagens,
computação gráfica, desenhos animados e efeitos especiais” na propaganda
eleitoral por rádio e TV. O espírito da lei deveria se estender ao meio
digital. O ministro do Supremo Alexandre de
Moraes, presidente do TSE,
defendeu a cassação do registro, do mandato e a inelegibilidade para candidatos
cuja campanha comprovadamente usar IA para manipular seus conteúdos de
propaganda.
Caso a sugestão de Moraes prevaleça, a
dificuldade será rastrear a origem dos conteúdos disseminados por aplicativos
de mensagens. Sem legislação adequada, as plataformas digitais têm usado a
privacidade dos usuários como argumento para alegar ser impossível obter tais
informações.
Uma das versões do Projeto de Lei para
regular a desinformação que tramita no Congresso criou mecanismos que as
obrigam a armazenar temporariamente informações sobre a circulação de mensagens
virais (não o conteúdo) para que possam rastreá-las mediante ordem judicial. A
ideia não prosperou, e o projeto continua parado. Tentativas de regular o uso
da IA estão em estágio mais embrionário. Se o Legislativo não tomar a
iniciativa, é provável que o Judiciário tenha de adotar medidas drásticas, como
a sugerida por Moraes.
Comissão Europeia pretende concluir acordo
com Mercosul
Valor Econômico
CE pode tentar fatiamento do acordo,
permitindo a execução da parte comercial antes do entendimento completo sobre
os demais aspectos do tratado
A Comissão Europeia (CE), o braço executivo
da União Europeia, resgatou o ímpeto das negociações para o acordo com o
Mercosul, que não foi concluído no dia 7, como se esperava, criando um
pessimismo alimentado por interesses políticos e econômicos contrariados. “O
acordo comercial entre a UE e o Mercosul é de grande importância geopolítica
para a UE e não pouparei esforços para que esse acordo histórico seja concluído
o mais rápido possível”, disse Valdis Dombrovskis, vice-presidente executivo da
CE (Valor, 5 de dezembro). Ele afirmou que aguarda a posição do novo governo da
Argentina, encabeçado por Javier Milei, para finalizar os entendimentos.
Dois pontos principais impedem um desfecho.
Um deles foi a apresentação de um anexo ao acordo, feito pela União Europeia,
reforçando compromissos na área ambiental e desenvolvimento sustentável. Seria
uma “declaração anexa e interpretativa”, seguindo o exemplo do tratado
UE-Canadá (Valor, 11-12-2020). O expediente era uma clara tentativa de impedir
que o então presidente, Jair Bolsonaro, prosseguisse com sua política de
destruição ambiental. Entretanto, ele foi finalmente apresentado em março, para
o governo Lula, que tem compromissos claros na defesa do ambiente e no combate
ao aquecimento global.
Um anexo, ou “side letter” não reabriria o
acordo, mas foi percebido como tal pelo governo brasileiro. Curiosamente, seu
texto não é público, de forma que um ponto crucial não pode ser esclarecido.
Para os negociadores europeus, trata-se da reafirmação de políticas existentes,
sem sanções em caso de descumprimento. Para a parte brasileira, trata-se de uma
questão de soberania nacional. Dessa forma, um anexo pôs 20 anos de tratativas
diante de um impasse.
O governo Lula, por seu lado, reabriu de fato
o texto do acordo, ao recusar o capítulo de compras governamentais, por, em
tese, impedí-lo de executar política industrial que beneficiaria pequenas e
médias empresas. Na verdade, o texto mantém ampla margem de ação para o
Mercosul. “Estão salvaguardadas políticas públicas em desenvolvimento
tecnológico, saúde pública, promoção das microempresas e pequenas empresas e
segurança alimentar”, diz resumo oficial do acordo divulgado pelo governo
brasileiro em 4 de julho de 2019. Além disso, estabelece que o acesso de
fornecedores brasileiros ao mercado europeu será mais amplo do que o acesso de
empresas europeias ao mercado brasileiro.
O governo Lula não gosta de abertura
comercial, tendo barrado no nascedouro um acordo com os EUA que abrangeria todo
o continente (Alca) e, apesar das tratativas com a UE terem se iniciado em seu
governo, há forte oposição a ele do PT e de assessores próximos ao presidente.
A mesma atitude teve o governo argentino que se vai, o do peronista Alberto
Fernández.
Os dois entraves podem ser resolvidos pela
negociação. No caso da UE, o anexo serviu de pretexto para que todas as forças
protecionistas europeias, em especial lobbies da agricultura, tentassem evitar
a conclusão das conversações. Para os europeus é mais simples abdicar do anexo,
porque outra legislação abrangente para a UE, já em vigor estabelece sanções e
barreiras a produtos que sejam provenientes de áreas desmatadas, válida para
todos os países que comerciam com o bloco, o terceiro maior do mundo.
Havendo vontade política, a Comissão Europeia
poderia tentar o fatiamento do acordo (splitting) para que a parte comercial e
de investimentos pudesse ser executada enquanto não houvesse entendimento em
outros pilares. Para isso, seria necessária a decisão do Conselho Europeu por
um acordo provisório, como foi feito com o Chile e proposto ao México (Valor,
21 de novembro). O fatiamento precisa da ratificação do Parlamento Europeu e do
Conselho da UE, mas não dos parlamentos nacionais, onde o acordo com o Mercosul
enfrenta seus maiores obstáculos.
Alemanha e França, as duas maiores economias
do bloco, estão divididas. A França segue sua política historicamente
protecionista, recentemente ressaltada pelo presidente Emmanuel Macron que em
Dubai disse ser “totalmente” contrário ao acordo com o Mercosul. A Alemanha o
defende com convicção, mas o primeiro-ministro Olaf Scholz governa em coalizão
com os verdes, que são contrários aos termos atuais dos entendimentos. A
Espanha, que ocupa a Presidência rotativa do Conselho Europeu até o fim de
dezembro, é favorável ao acordo com o Mercosul, mas a Bélgica, próximo país a
comandá-lo, tem posição hostil.
Há incentivos para a UE vencer as resistências internas. Politicamente constrangida pela rivalidade entre EUA e China e em busca de espaço próprio na nova realidade global, o bloco tem de construir mais alianças políticas e econômicas. Fechar o acordo com o Mercosul lhe garantiria vantagens nas duas maiores economias da América do Sul, ao ter acesso favorecido a mercados que EUA e China não possuem. Seria seu segundo maior tratado comercial, após o concluído com o Japão. Para o Brasil, será o maior acordo da história, e o mais relevante: envolve economias que somam 25% do PIB mundial e 780 milhões de pessoas.
Vaivém da pobreza
Folha de S. Paulo
Melhora se deu com mais PIB, inflação menor e
ação social, a serem mantidos
A parcela de brasileiros em situação de
pobreza caiu no ano passado, conforme divulgou nesta quarta-feira (6) o IBGE. A
melhora era previsível, embora o debate em torno do tema tenha sido tumultuado
pelas disputas de ano eleitoral.
Conforme os novos parâmetros recomendados
pelo Banco Mundial (renda domiciliar per capita abaixo de R$ 637 mensais), os
brasileiros pobres passaram de
36,7% da população, em 2021, para ainda exorbitantes 31,6%. Já a
taxa de extrema pobreza (menos de R$ 200 por mês) caiu de 9% para 5,9%.
Em que pesem as cifras vexatórias, trata-se
de recuos relevantes. Para eles concorreram ao menos três fatores essenciais:
crescimento da economia e do emprego, controle da inflação e ação assistencial
do poder público —uma tríade que precisa ser mantida para a superação contínua
e duradoura das piores mazelas sociais.
A expansão do Produto Interno Bruto no ano
passado superou as expectativas e chegou a 2,9%. Melhor ainda, a taxa de
desemprego recuou de 11,1% para 7,9%. A inflação, que havia disparado
globalmente na recuperação do impacto da pandemia e chegara a 10,06% em 2021,
baixou para 5,79%.
Por fim, a ampliação do Bolsa Família sob o
nome de Auxílio Brasil, ainda que motivada pela ofensiva eleitoreira de Jair
Bolsonaro (PL), não poderia deixar de ter efeito significativo na redução da
pobreza e, sobretudo, da miséria —segundo o IBGE, esta teria atingido 10,6% sem
os programas sociais.
Se 2022 foi positivo, o panorama é
desalentador quando se observa a evolução em uma década calculada pelo
instituto. Por ela se observa que o Brasil, entre idas e vindas, pouco avançou
desde 2012, quando contava 34,7% na pobreza.
A taxa chegou a cair a 30,8% em 2014, mas a
trajetória não se mostrou sustentável. A combinação de recessão profunda e alta
da inflação, resultante do desarranjo econômico e orçamentário promovido por
Dilma Rousseff (PT), elevou o percentual a 33,7% em 2016.
Seguiram-se anos de baixo crescimento do PIB
e lenta melhora social, até que o auxílio emergencial criado na crise sanitária
provocou queda surpreendente da cifra para 31% em 2020. A retirada abrupta do
benefício produziu o pico do indicador no ano seguinte.
Tudo considerado, percebe-se que doravante o
combate à pobreza não poderá se basear em mais incremento da ação assistencial
—mas o Bolsa Família, com recursos recordes, pode ser
aperfeiçoado para se tornar mais eficiente.
A distribuição de renda precisa ser combinada
com vigor econômico e geração de mais e melhores empregos, que dependem da
preservação do poder de compra e do equilíbrio das contas do governo.
Um teste para Lula
Folha de S. Paulo
Crise Venezuela-Guiana revela riscos da
ligação do PT com ditaduras de esquerda
Para surpresa de ninguém, a crise causada
pelo plebiscito venezuelano que reclamou a soberania da região de Essequibo, na
Guiana, escalou ao gosto da fanfarronice do ditador de Caracas, Nicolás Maduro.
Após promover a farsesca consulta, sem
legitimidade da ONU, o caudilho achou por bem avançar a retórica sobre a região
rica em petróleo e outros recursos minerais.
De uma só vez, mostrou um mapa da
Venezuela com o território vizinho já anexado, anunciou que a
petroleira estatal PDVSA iria emitir licenças para exploração no local (para
quem mesmo?) e nomeou um general como governador "in abstentia" da
região.
O despautério foi recebido em Georgetown como
tal, mas também como ameaça, dado que o pequeno país não tem condições de se
defender de um hipotético ataque venezuelano sem ajuda externa.
Ela viria, talvez, dos Estados Unidos. A
empresa americana ExxonMobil começou a explorar a enorme reserva de petróleo
encontrada no litoral de Essequibo em 2019, após quatro anos de prospecções. É
o suficiente para Maduro acusá-la de agente do imperialismo.
Todavia tal reação não é uma certeza, até
porque a pantomima do ditador até aqui não passou disso.
Ele tenta ampliar apoio interno, fraco dados
os 50,7% de comparecimento no referendo de domingo (3), e se ampara na
popularidade do tema em seu país, que luta por Essequibo desde o século 19.
A crise afeta Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O presidente e seu partido são defensores ferrenhos da ditadura vizinha, assim
como de outras na América Latina —desde que sejam de esquerda.
Com Maduro destemperado, o governo brasileiro
se viu obrigado a mostrar sensatez. Lula e seu
chanceler de direito, Mauro Vieira, apelaram a panos quentes. Tom
mais alarmista foi adotado pelo ministro das relações exteriores de fato, o
assessor Celso Amorim, que falou em medo de escalada.
Ele pode estar bem informado ou apenas
forçando a aparência de crise, de olho numa desescalada em que o Brasil apareça
como apaziguador. Militares, por sua vez, sinalizaram à Venezuela que não
querem agitação numa fronteira já complexa e cheia de refugiados.
Em qualquer situação, Lula pagará o preço por andar em más companhias. O ônus já está sendo explorado nas redes bolsonaristas. Resta saber como o petista agirá no ora improvável caso de Maduro resolver fazer algo concreto.
Andando em círculos na área fiscal
O Estado de S. Paulo
Discussão sobre o tamanho do
contingenciamento mostra o quanto o debate sobre a política fiscal ainda
precisa avançar. Manobras e interpretações criativas só enfraquecem arcabouço
O mais novo impasse em torno da Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) é a emenda que impõe limites ao tamanho do
contingenciamento que o governo poderá fazer para cumprir a meta de zerar o
déficit fiscal em 2024. Apresentada pelo líder do governo no Congresso,
Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a proposta se baseia em uma interpretação
criativa, para dizer o mínimo, que o Executivo tenta emplacar para driblar as
regras fiscais.
O novo arcabouço fiscal estabeleceu um piso
de 0,6% e um teto de 2,5% para o crescimento real das despesas primárias a cada
ano – sejam obrigatórias, sejam discricionárias. A proposta estipulou, também,
que o governo pode bloquear, no máximo, 25% dos gastos discricionários, o
equivalente a R$ 53 bilhões, nas contas do governo.
Como se sabe, os contingenciamentos,
instituídos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), têm sido o principal
instrumento à mão do Executivo para cumprir a meta. Não são, nem nunca foram,
opcionais. Mas o presidente Lula da Silva, aparentemente, só se lembrou disso
mais recentemente, quando passou a menosprezar publicamente a importância de
zerar o déficit em 2024, no fim de outubro.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
tentou reduzir o estrago com um parecer jurídico. A tese, elaborada pela
Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
(PGFN), tornou-se a base da emenda de Randolfe. Tal emenda estabelece um novo
limite para o contingenciamento dos gastos discricionários, de até R$ 23
bilhões, de forma a preservar o piso de 0,6% para o crescimento real das
despesas – uma forma de agradar ao chefe e salvar a meta de seus ataques.
Em Dubai, Haddad disse que o relator da LDO
se comprometeu a acatar a proposta. Em Brasília, no entanto, Danilo Forte
(União-CE) afirmou que a rejeitaria, por orientação do Tribunal de Contas da
União (TCU) e de consultores legislativos. A nota elaborada pela Consultoria de
Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara finalmente veio a público e, de
fato, não deixa dúvidas sobre o que deve ser feito.
Não há, segundo a Consultoria, conflito entre
as leis. O fato de o arcabouço determinar um piso de 0,6% para o crescimento
das despesas primárias serve unicamente para estabelecer o espaço fiscal
disponível no Orçamento. Não há, no entanto, obrigação de utilizá-lo no todo,
sobretudo se o cumprimento da meta estiver sob risco. Neste caso, o
contingenciamento deve obrigatoriamente ser adotado.
A Consultoria reafirma que a LDO é uma lei
ordinária e, portanto, deve submeter-se aos dispositivos do arcabouço e da LRF,
ambas leis complementares. Em suma, para os técnicos, a tese da AGU e da PGFN
“subverte a lógica” do arcabouço e “extrapola o espaço interpretativo concedido
pelo texto legal”.
Segundo a consultoria, o contingenciamento
pode chegar a R$ 56,5 bilhões. Caso o governo queira reduzir o bloqueio a R$ 23
bilhões, no entanto, terá de propor uma alteração não na LDO, mas no próprio
arcabouço fiscal, ou reconhecer a necessidade de mudar a meta fiscal.
Se toda essa discussão serve para algo, é
para mostrar o quanto o debate sobre a relevância da política fiscal ainda
precisa avançar no País. Desvios, manobras e interpretações criativas
semelhantes servem apenas para enfraquecer o arcabouço recém-aprovado. Foi
assim que o finado teto de gastos e o sistema de metas de superávit primário
que o antecederam foram desmoralizados.
Em vez de investir em reformas, o governo
perde tempo e energia em discutir a proporção do contingenciamento, instrumento
que nem sequer é um corte de fato, mas apenas um mecanismo de bloqueio
temporário de despesas que visa justamente a facilitar o alcance da meta.
O debate deixa implícito que a preocupação do
governo não é cumprir a meta, mas apenas afastar a possibilidade de o
presidente ser punido pelo descumprimento do objetivo. A única forma de se
livrar desse risco é adotar todas as medidas necessárias para atingir a meta –
ou seja, efetivar o contingenciamento de despesas que a Lei de Responsabilidade
Fiscal preconiza e que o arcabouço fiscal jamais invalidou.
Contradições ambientais de Lula
O Estado de S. Paulo
Embora faça discursos grandiloquentes sobre o
papel do Brasil na descarbonização, Lula destina poucos recursos para
combustíveis de baixo carbono e investe na indústria petrolífera
É do dramaturgo grego Eurípides uma frase que
expressa bem os limites e descontroles do comportamento humano: “A minha língua
jurou, mas o meu espírito manteve-se livre de juramentos”. Não consta que no
rol de leituras do presidente Lula da Silva esteja a peça Hipólito, mas a
inspiração da tragédia grega espelha com precisão suas escolhas. A participação
brasileira na COP-28 reafirmou as contradições de Lula e de seu governo em
matéria ambiental, além da habitual e indisfarçável prática do presidente de dividir
retórica e prática em dois mundos absolutamente distintos.
Exemplos não faltaram. Num dos mais
eloquentes, o presidente tentou cadastrar-se na pasta dos líderes globais mais
críticos dos combustíveis fósseis, sublinhando que o planeta “está farto de
acordos climáticos não cumpridos” e de “metas de redução de emissão de carbono
negligenciadas”, entre outros recados. Para o presidente, “é hora de enfrentar
o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma
economia menos dependente de combustíveis fósseis”.
Seria uma cobrança legítima não fosse o fato
de, poucas horas antes, seu ministro de Minas e Energia ter acenado para a
adesão do Brasil à Opep+, o grupo de aliados da Organização de Países
Exportadores de Petróleo, hoje fortemente criticados por não reduzirem a
exploração de combustíveis fósseis e, ao contrário, sinalizarem aumento de
produção. Como este jornal já afirmou, os subsídios aos combustíveis fósseis e
o aceno à Opep+ não somente são contraditórios, como contraproducentes. Na
condição de ouvinte, o Brasil ganhará, no máximo, acesso antecipado às decisões
do cartel. E, diferentemente dos países que integram o cartel, a economia
brasileira não depende exclusivamente do petróleo.
É o problema da língua presidencial que jura,
mas o coração não. O mesmo governo que ambiciona ser uma liderança mundial em
política climática quer apoiar a expansão da produção de petróleo com a
perspectiva de se tornar um grande exportador. O mesmo governo que une os
ministros da Fazenda e do Meio Ambiente para anunciar o Plano de Transição
Ecológica alimenta o cabo de guerra entre os Ministérios do Meio Ambiente e de
Minas e Energia.
Lançado há cerca de três meses, o novo
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) fez da transição energética um dos
seus principais eixos e âncora do discurso governamental sobre um suposto novo
tempo para o País. Pouca gente registrou, no entanto, que na prática 62% dos
recursos carimbados como transição energética serão usados para finalidades que
perpetuam o mesmo tipo de dependência do petróleo. Isso mesmo: de um total de
R$ 1,4 trilhão em investimentos em todas as áreas, cerca de R$ 450 bilhões serão
destinados a projetos de “transição e segurança energética”, mas o investimento
para combustíveis de baixo carbono, como etanol e biometano, ficou em modestos
R$ 20 bilhões, um valor 13 vezes inferior ao que será alocado para a indústria
petroleira.
A contradição é privilégio dos homens
inteligentes e dos governos realistas, dizia o economista e diplomata Roberto
Campos, conhecido por ser um de nossos mais brilhantes liberais e pela ironia
fina com que retratava líderes de esquerda e governos em geral. O governo Lula
abusa de tal privilégio. Seria prova de seu realismo se conjugasse melhor a
retórica presidencial e os fatos. A substituição de fontes de energia não se
dará num estalar de dedos, e uma transição levará anos ou mesmo décadas. É o
que reforça o acerto, por exemplo, da intenção de explorar petróleo na Margem
Equatorial. Gostemos ou não, a economia global continuará a ser abastecida
pelos combustíveis fósseis nos próximos anos. Uma demanda que o Brasil não pode
desperdiçar.
Uma coisa é preservar investimentos e
exploração, reduzindo progressivamente os combustíveis fósseis e expandindo as
energias renováveis. Outra coisa, bem diferente, é sustentar no gogó a premissa
de que o governo está ancorado num novo modelo de desenvolvimento e num novo
padrão de uso de energia, enquanto sua prática e seu planejamento orçamentário
contradizem tais prioridades. Narrativas não substituem as evidências, e estas
demonstram que, na prática, o coração de Lula ainda parece estar num lugar bem
distante do que sua língua promete.
Não é o juro que limita o PIB
O Estado de S. Paulo
Economia só voltará a crescer de forma
consistente se houver mais investimentos e maior produtividade
O comportamento da economia brasileira voltou
a surpreender no terceiro trimestre deste ano. Ainda que o resultado tenha sido
tímido, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 0,1% ante o segundo trimestre –
pouco, mas suficiente para animar os investidores, que esperavam uma variação
negativa.
De acordo com a coordenadora de Contas
Nacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Rebeca
Palis, desta vez o agronegócio puxou a economia para baixo. Depois de
impulsionar o PIB na primeira metade do ano, o agro caiu 3,3% no terceiro
trimestre ante o período imediatamente anterior. Indústria e serviços cresceram
0,6%; e o comércio, 0,3%.
Na comparação interanual, no entanto, Palis
destacou que o desempenho do agronegócio foi fundamental para impulsionar a
economia como um todo. O PIB avançou 2% em relação ao terceiro trimestre de
2022; no mesmo período, o agro avançou 8,8%; a indústria, 1%; serviços, 1,8%; e
o comércio, 0,7%.
Na ótica da demanda, o destaque positivo foi
o consumo das famílias, que aumentou 1,1% entre o segundo e o terceiro
trimestres e 3,3% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado,
os investimentos, medidos pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), caíram
2,5% na margem e despencaram 6,8% na comparação interanual.
Nos dois casos, não houve surpresas. Como
explicou o economista-chefe da Ágora Investimentos, Dalton Gardimam, trata-se
do resultado de uma política econômica que privilegia o consumo e pune
investimentos. No governo, no entanto, o resultado foi comemorado. A ministra
do Planejamento, Simone Tebet, disse que o País não crescerá menos de 3% neste
ano.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por
sua vez, reconheceu que o PIB foi fraco, mas atribuiu o resultado às taxas de
juros reais, que teriam atingido o nível mais alto em junho – antes, portanto,
de o Banco Central (BC) iniciar o ciclo de redução da Selic, em agosto. “Com os
cortes nas taxas de juros, nós esperamos que neste ano fechemos o PIB com mais
de 3% de crescimento e esperamos um crescimento na faixa de 2,5% no ano que
vem. Mas o BC precisa fazer o trabalho dele”, afirmou Haddad.
A reação do ministro é natural, mas
injustificável. Sem a elevação dos juros, o País não teria debelado a inflação,
que continua a assombrar economias mais desenvolvidas, como a norte-americana.
Não é possível conter a inflação sem causar impactos na economia: é este,
precisamente, o custo do controle dos preços.
Culpar os juros pelo baixo crescimento, no
entanto, é ilusório. O passado prova que reduzir os juros de forma artificial
não garante nada além de voos de galinha e preços elevados, que penalizam,
sobretudo, os mais pobres. A economia não voltará a crescer de forma
consistente sem aumento dos investimentos e da produtividade, o que requer
reformas estruturais.
Ajudaria muito se as políticas monetária e fiscal remassem na mesma direção. É papel de Haddad aproveitar o resultado do PIB para convencer o presidente Lula da Silva sobre os riscos do aumento do gasto público e dos estímulos artificiais ao crédito.
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