Combate à dengue exige mais de governos e cidadãos
O Globo
Todos sabem o que precisa ser feito para
evitar epidemia maior — atacar os focos do mosquito
O Brasil já registra neste início de ano 1,3
milhão de casos de dengue e
329 mortes (outras 767 estão em investigação). Ao menos nove unidades da
Federação apresentam incidência de mais de 300 casos por 100 mil habitantes,
situação que, de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas),
configura uma epidemia. O cenário mais preocupante ocorre no Distrito Federal,
com 4.276 infecções por 100 mil. Esses números expõem a incapacidade de
governos e da própria sociedade de lidar com uma doença que, diferentemente da
Covid-19, reaparece como uma velha conhecida.
Governo federal, estados, municípios e a população sabem — ou deveriam saber — o que fazer para evitá-la, uma vez que surtos e epidemias são recorrentes. É preciso combater os focos do mosquito transmissor, o Aedes aegypti (em 75% dos casos, ele está dentro das próprias residências), tapar caixas-d’água, recolher objetos que acumulam água parada, remover lixo, limpar os pratos dos vasos de plantas etc. Sabe-se tudo isso — mas nem todos fazem.
É verdade que agora, depois da explosão de
casos, autoridades resolveram agir. Agentes de saúde têm visitado casas para
orientar os moradores. Drones têm sido usados para inspecionar telhados em
busca de depósitos de água parada ou caixas-d’água destampadas. Escolas têm se
engajado na luta contra o mosquito, ensinando aos alunos formas de prevenir a
doença. São iniciativas acertadas, mas deveriam ter sido tomadas antes. Se as
ações tivessem começado no ano passado, talvez a situação hoje não fosse tão dramática.
O problema vinha se desenhando nos últimos
anos. Ninguém pode alegar que foi pego de surpresa. O alarme soou há tempos. Em
2023, o país registrou 1,7 milhão de casos de dengue e 1.094 mortes — recorde
desde que a doença ressurgiu nos anos 1980. O calorão e as chuvas constantes
agravaram um quadro já ruim, criando as condições para a proliferação do
mosquito.
O combate aos focos do Aedes se torna mais
essencial porque, embora já exista uma vacina contra
a dengue disponível no SUS (a Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda), ela não
pode ser usada em larga escala. O fabricante só conseguirá entregar neste ano
6,5 milhões de doses, insuficientes para vacinar a população. O Ministério da
Saúde demorou a incorporar a vacina ao SUS, rendendo-se à
burocracia. O jeito foi restringir o público-alvo.
Nem essa vacinação restrita tem sido
bem-sucedida. A procura tem sido baixa nos cerca de 500 municípios que
receberam a vacina. Em estados onde a situação é mais crítica, apenas 16,7% das
doses foram aplicadas. A situação levou o Ministério da Saúde a ampliar a faixa
etária do público-alvo para 10 a 14 anos (antes eram apenas crianças de 10 e 11
anos).
Ainda que a vacinação estivesse indo bem, teria pouco impacto no quadro atual devido à escassez. Por isso não resta às autoridades de saúde outra alternativa a não ser ampliar as campanhas, as operações de limpeza e o combate aos focos do mosquito. Não se agiu quando era tempo, mas ainda é possível evitar números mais catastróficos, já que o pico da doença ainda está por vir. Basta que governos cumpram o seu papel e que os cidadãos dediquem ao menos dez minutos por semana para fazer o que tem de ser feito.
Queda na popularidade levanta pontos de
alerta para Lula
O Globo
Reprovação ao presidente cresce naqueles
segmentos e regiões a que ele tem dado menos atenção
Faltando sete meses para as eleições
municipais, a aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva está em queda: recuou de 54% para 51% desde dezembro, enquanto a
desaprovação subiu de 43% para 46%, segundo pesquisa Quaest divulgada
ontem. A tendência é registrada desde agosto, quando a aprovação chegou ao pico
(60%), e a desaprovação era de 35%. De lá para cá, a popularidade de Lula,
embora ainda expressiva, vem se deteriorando.
Ela continua alta e estável no Nordeste, no
estrato com renda familiar até 2 salários mínimos e na população com mais de 60
anos. Nos demais níveis de renda, regiões ou faixas etárias, porém, apresenta
recuo. Lula ainda é aprovado pela maioria dos brasileiros, mas entra no segundo
ano de governo com um desafio: recuperar sua imagem nos grupos sociais a que
tem dado menos atenção.
Um dos principais é formado pelos jovens.
Seis em cada dez o aprovavam em agosto. De lá para cá, essa parcela vem caindo.
Hoje mais jovens o desaprovam (50%) do que o aprovam (46%). No recorte por
regiões, a popularidade no Sul e Sudeste apresenta tendência semelhante.
Nenhuma diferença entre aprovação e desaprovação é mais significativa que a
observada no eleitorado evangélico. Seis em dez o desaprovam, enquanto 35% o
aprovam. No início do mandato, aprovação e desaprovação a Lula entre
evangélicos eram semelhantes.
Uma das percepções mais intrigantes captadas
pela pesquisa diz respeito à economia. O país cresceu acima da expectativa no
ano passado. A inflação cumpriu a meta, e o desemprego atingiu o menor nível da
última década. A taxa de juros começou a baixar, e a renda se recuperou. Apesar
de tudo isso, 38% consideram que a economia piorou nos últimos 12 meses, nível
mais alto desde fevereiro de 2023 e sete pontos acima do registrado em
dezembro. Apenas 26% viram melhora. Mesmo entre os eleitores de Lula, cresceu a
parcela que enxerga piora na economia.
A popularidade de Lula, é fundamental
enfatizar, continua alta. Mas a queda recente levanta pontos a que ele precisa
prestar atenção. Lula foi eleito por uma ampla frente democrática. Uma vez no
governo, tem se esmerado em repetir políticas que garantiram seu sucesso no
passado, sem se dedicar ao que angustia a população no presente. Seu discurso é
capaz de mobilizar a base mais fiel, mas, como revela a pesquisa, não de manter
o apoio em segmentos que foram essenciais para sua eleição.
Com sua visão desenvolvimentista, ele tem
dado prioridade às estatais, sem prestar atenção aos pequenos empreendedores
das periferias. Tem dedicado mais tempo a aparições em fóruns internacionais e
à guerra em Gaza que à violência das organizações criminosas ou à crise de
segurança pública que aflige a população brasileira. Por fim, a agenda
econômica virtuosa do Ministério da Fazenda não foi compreendida nem pelo
próprio PT. Se não cuidar dessas questões, poderá ter de pagar preço ainda
maior em popularidade.
Primárias continuam a indicar eleição sem
favorito nos EUA
Valor Econômico
Após as primárias, a disputa presidencial continua exatamente onde estava: sem favorito e com um provável desfecho por margens mínimas de vantagem ao vencedor
A Superterça, maratona de eleições primárias
para escolher os candidatos à Presidência dos Estados Unidos, nada definiu que
não fosse previsível. O republicano Donald Trump (77 anos) irá à forra contra o
democrata Joe Biden (81 anos) em novembro, em um pleito que coloca juntos os
dois mais idosos concorrentes à Casa Branca na história do país. Os resultados
confirmaram o que se esperava, mas a abertura dos números sugere que o momento
favorável a Trump pode ser uma ilusão. Contra ele ainda pesa uma poderosa
tradição. Quase nenhum incumbente perdeu a reeleição - as exceções foram George
Bush pai, Jimmy Carter e o próprio Donald Trump.
Em seu estilo ruidoso, Trump celebrou a
vitória em 15 dos 16 Estados - perdeu em Vermont -, afirmando ter esmagado sua
rival, Nikki Haley, a quem chamou de cabeça oca, assim como tinha
desqualificado com termos mais ofensivos seus rivais que ficaram pelo caminho,
como o governador da Flórida, Ron DeSantis. Além desse trunfo, a Suprema Corte
retirou um peso enorme das costas do candidato republicano - revogou a retirada
de seu nome das urnas no Estado do Colorado, que considerou sua tentativa de
sedição como motivo suficiente para bani-lo das eleições. Trump ainda terá de
responder a quatro processos judiciais, mas o obstáculo imediato foi superado.
A candidatura dissidente de Haley, em um
partido cada vez mais monocrático e radicalizado, testou o grau de apoio ao
ex-presidente. O destino de sua campanha comprovou que Trump domina o partido e
é imbatível em suas fileiras. Mas o apoio que obteve indicou vulnerabilidade do
ex-presidente em uma eleição que provavelmente será decidida nas casas
decimais. No conjunto da votação da Superterça, Haley obteve 22,6% dos votos,
isto é, um em cada cinco dos que compareceram às primárias, em geral os membros
mais ativos da legenda, preferem outro candidato.
O destino desse voto minoritário decisivo é
uma incógnita. Haley, ao contrário de outros pré-candidatos espezinhados por
Trump, que perderam e endossaram a sua candidatura, não declarou apoio a ele.
Preferiu deixar a Trump a tarefa de convencer os recalcitrantes, muitos deles
contrários à infame e inédita tentativa de tentar invalidar eleições
democráticas com o uso da violência na invasão do Congresso em 6 de janeiro de
2021.
A análise do voto na Superterça por
especialistas mostra que Trump parece ter mais força do que tem quando se
esmiuçam as estatísticas de voto. Eles sugerem que se a força de Trump foi
subestimada quando venceu as eleições em 2016, ela está sendo superestimada
agora. A votação nas primárias revela que ele teve menos apoio em vários
Estados do que as pesquisam previam. Em Michigan, importante “swing state” -
cuja fidelidade é mutante e pode decidir eleições -, era esperado que sua
margem de vantagem fosse de 57% de apoio, mas ela foi de 41,5% (Financial
Times, ontem). Em menor proporção, a margem também foi menor em Iowa, New
Hampshire e Carolina do Sul.
O presidente Joe Biden não entusiasma os
democratas que, como os demais americanos, estão preocupados com sua capacidade
de governar o mais poderoso país do planeta com 81 anos de idade. Essa
preocupação, no entanto, pode não se reverter em um voto no opositor, apenas 4
anos mais jovem, embora possa desembocar em uma decisiva abstenção. Apesar de
tudo, Biden praticamente está na margem de erro, sempre colado a Trump, cuja
vantagem não ultrapassa 2 pontos percentuais, diferença que perdura há meses.
Sua aprovação atual, em torno de 38%, baixa, é menor que a de Trump no mesmo
estágio do mandato, de 42,3%, o que é preocupante, mas não decisivo. O
consolidado das pesquisas do FiveThirtyEight aponta, porém, que 52,5% têm
imagem desfavorável de Donald Trump, ante 43% que o apoiam. O score de Biden é
um pouco pior: 55,3% e 40%.
A Superterça encerra na prática o ciclo das
primárias. Os dois candidatos realizarão campanhas sem adversários internos, em
um dos mais longos embates diretos das campanhas eleitorais americanas. Trump
tem mais a temer do que Biden nesse longo período. Com quatro processos
judiciais, tem pela frente um pesado período de propaganda negativa decorrente
de seus percalços na Justiça. Ele foi condenado a pagar multas milionárias por
manobras contábeis de balanços em suas empresas em Nova York e pode ser condenado
por tentar abafar suas aventuras sexuais com a atriz pornô Stormy Daniels. Nada
disso pode ser tão prejudicial quanto a ilegal posse de documentos sigilosos do
Estado, a tentativa de influenciar os resultados das eleições na Geórgia e sua
instigação à invasão do Capitólio em 6 de janeiro.
Biden tem a seu favor o bom estado da
economia e do emprego, que não se traduziram em aumento de sua popularidade,
mas que não contribuirão para reduzi-la ainda mais - as chances, ao contrário,
são de melhoria.
Após a medição de forças internas partidárias da rodada maior de primárias, a disputa presidencial continua exatamente onde estava - sem favorito e com um provável desfecho por margens mínimas de vantagem ao vencedor.
Regulação é risco para serviço por aplicativo
Folha de S. Paulo
Lula age com afã sindicalista ao tratar de
atividades inovadoras, cujo sucesso depende de flexibilidade nas contratações
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem
desde seu início o afã de regular o trabalho de transporte por aplicativos, no
que infelizmente se mostra movido por uma visão sindicalista do século passado
e pelo ímpeto polarizador dos anos recentes da política nacional.
Manifestações sobre o tema foram contaminadas
por hostilidade despropositada contra as empresas do setor. No ano passado, o
ministro Luiz Marinho, do Trabalho, disse que a
Uber poderia ser substituída pelos Correios, se deixasse o país.
Nesta semana, Lula prometeu "encher tanto o saco que o IFood vai ter de
negociar".
O mandatário cometeu a diatribe durante
cerimônia de lançamento do projeto de lei complementar enfim apresentado sobre
o tema, resultado de discussões que transcorreram nos últimos meses sem chegar
a um consenso —tanto que a atividade dos entregadores ficou fora do texto,
limitado ao transporte de passageiros.
A negociação teve o mérito de tirar da mesa
algumas das ideias mais problemáticas, em especial a contratação de motoristas
pela CLT. Pela proposta, os profissionais serão reconhecidos como autônomos.
Fixam-se também contribuição
ao INSS, remuneração mínima e limitação da jornada.
Está-se diante de um serviço inovador,
proporcionado por vertiginosos avanços da tecnologia e cujo sucesso depende da
flexibilidade para contratações, horários e tarifas. A regulação, portanto, é
desafiadora em todo o mundo.
No Brasil, o IBGE calculou haver 1,5 milhão
de pessoas trabalhando por meio de aplicativos e plataformas digitais ao final
de 2022, o correspondente a 1,7% da população ocupada no setor privado. Desse
grupo, pouco mais da metade (52,2%) transportava passageiros, 39,5% eram
entregadores e 13,2% prestavam outros serviços.
Apenas 35,7% deles contribuíam para a
Previdência Social, o que de fato é motivo de preocupação. A mazela da
informalidade, no entanto, é muito mais ampla no mercado de trabalho
brasileiro.
No cálculo político, o contingente dos
motoristas é frequentemente listado como uma das bases do bolsonarismo, o que
tende a aguçar as resistências ao projeto governista no Congresso.
O debate precisa avançar com mais estudos e
avaliações técnicas, sem açodamento nem bandeiras ideológicas. O processo de
modernização da legislação trabalhista deve prosseguir de modo a proporcionar a
formalização em condições realistas.
Cotas sociais, não raciais
Folha de S. Paulo
Heteroidentificação carece de objetividade;
renda é o critério mais correto
Dois estudantes que se declararam pardos para
concorrer a uma vaga na USP e passaram no processo seletivo tiveram suas
matrículas negadas. A comissão de avaliação racial da universidade
considerou que eles não apresentavam características fenotípicas compatíveis
com a classificação.
A questão das matrículas foi parar na
Justiça, e a polêmica se instalou. O reitor da USP, Carlos Carlotti
Junior, promete
"corrigir e aprimorar" o processo de seleção pelo
sistema de cotas raciais.
É bem-vindo o empenho da USP para evitar
injustiças, mas é fato que elas se repetirão —neste ano, a universidade
recebeu 204 recursos
de candidatos que tiveram a matrícula negada pela banca
avaliadora.
O problema é que não há critérios objetivos e
coerentes para diferenciar pardos de brancos, ou outras categorias baseadas em
fenótipos só vagamente definidos.
Não é por outra razão que o IBGE e a própria
legislação de cotas operam com o conceito de autodeclaração (cada um é o que
diz ser).
Entretanto quando o STF, ao atender uma
demanda do movimento negro, admitiu também a heteroidentificação, abriram-se as
portas para o imbróglio.
Assim, a autodeclaração se tornou passível de
revisão por comissões, cujos juízos não passam de somatória de impressões
pessoais.
Tais comitês até podem funcionar como
desestímulo àqueles que se declaram pardos só para usufruir das vantagens das
cotas, mas não evitam injustiças.
Esse parece ser o caso dos candidatos da USP,
que os julgou apenas por fotos e vídeo. Ambos estudaram em escola pública e vêm
de famílias miscigenadas.
Da forma como o sistema está desenhado, essa
é uma aporia irremediável. Quaisquer decisões tomadas por bancas estarão
envoltas pelo manto da subjetividade.
A precariedade das categorias é uma das
razões pelas quais esta Folha defende que o sistema de cotas nas
universidades, que combina critérios sociais com raciais, funcione apenas pelos
sociais, que são objetivos e mensuráveis.
A renda familiar tem expressão em números, não em ideias discutíveis sobre o que constitui raça. Em termos demográficos, favorecer os mais pobres já significa contemplar negros e pardos, dado que as privações econômicas são o mais saliente e o mais perverso dos efeitos do racismo.
Medo e delírio nos Estados Unidos
O Estado de S. Paulo
Eleições nos EUA serão muito mais sobre qual
dos dois candidatos é mais inapto.
Como previsto, a rodada das primárias
americanas conhecida como Superterça selou a reedição da disputa de 2020 entre
Donald Trump e Joe Biden para a presidência. É difícil de acreditar, mas os
eleitores de ambos os partidos escolheram o candidato com mais chances de
perder para o seu adversário. Será uma disputa de rejeições.
Em uma pesquisa do Pew Research de 2023 sobre
a percepção dos americanos a respeito da política nacional, 65% disseram se
sentir frequentemente exauridos e 55%, enfurecidos. Só 10% expressaram
sentimentos de esperança e 4% se disseram animados. Questionados sobre como
descreveriam a política em uma palavra, as respostas variaram entre divisiva,
corrupta, tumultuada ou ruim.
Em um aspecto, a falta de vigor da democracia
americana é palpável, mensurável e até literal: a disputa entre Trump e Biden
quebrará o recorde etário batido por Trump e Biden em 2020. Se Trump for
reeleito, completará seu mandato com 81 anos. Se Biden for, terá 85. Ambos são
impopulares. Em seus quatro anos na presidência, Trump nunca atingiu 50% de
aprovação. Hoje, de acordo com uma pesquisa da Fox News, sua taxa de
desaprovação, 57%, só é superada pela de Biden, 59%.
Previsivelmente, temas convencionais de
disputas eleitorais, como a economia ou a política externa, ficarão em segundo
plano, ou ao menos serão distorcidos e dilacerados pela disputa sobre qual dos
candidatos é mais inapto para assumir o cargo mais relevante do mundo. Ambos
acusarão um ao outro de representar uma ameaça existencial aos EUA tal como os
americanos os conhecem.
A campanha de Biden multiplicará as imagens
da invasão ao Capitólio do 6 de Janeiro e trará à tona incansavelmente os
muitos processos criminais a que Trump responde na Justiça. Cerca de um terço
dos eleitores republicanos diz que uma condenação desqualificaria Trump para o
seu voto.
Muitos eleitores independentes são sensíveis
aos alertas dos democratas. Eles estão genuinamente apreensivos com as
agressões de Trump ao sistema democrático e veem Biden como um político
razoável com tendências centristas. Mas também têm dúvidas se ele tem o vigor e
as capacidades mentais para suportar o pugilismo de Trump, refrear os excessos
dos esquerdistas radicais de seu partido e defender a República das ameaças
internas e externas. E tanto seus temores quanto suas dúvidas são justificados.
Três quartos dos americanos pensam que Biden é velho demais para um segundo
mandato, e muitos estão sopesando a perspectiva da vice-presidente Kamala
Harris, profundamente impopular e desacreditada, assumir a presidência.
Trump continuará a excitar nos eleitores
republicanos um frenesi aterrorizante contra um Joe Biden “senil”, incapaz de
proteger as fronteiras e conter a criminalidade, as mortes por overdose, a
inflação, os delírios do identitarismo progressista e potências hostis como
China, Rússia ou Irã. A “carnificina americana” a que Trump aludiu em seu
discurso inaugural em 2017 serviu para intimidar os republicanos moderados
quase como um chefe mafioso e conquistar vitórias sem precedentes com seus
eleitores: três nomeações seguidas com um triunfo avassalador na última. O
Partido Republicano é hoje o partido de Trump, e suas políticas orbitam em
torno desse culto a uma personalidade imprevisível e irascível.
Contudo, todas as vezes em que se engajou em
eleições gerais desde 2016, Trump acumulou reveses para o seu partido: 2018,
2020, nas eleições para o Senado da Georgia em 2021 e 2022.
Vença quem vencer, enfrentará severas
dificuldades de governabilidade com um Congresso disfuncional e polarizado.
Velhas pautas bipartidárias estão sendo pilhadas por ambos os lados como
munição de uma guerra cultural que arrasta consigo mesma as mais consensuais
políticas de Estado.
Se no ano passado os americanos se sentiam
frustrados, irritados e assustados com a política do país, neste ano as suas
escolhas devem intensificar esses sentimentos. E tudo indica que eles só se
agravarão na guerra de trincheiras que se desenha para os próximos quatro anos.
Tribunais raciais são irremediáveis
O Estado de S. Paulo
Não importa o método que a USP adote para
preencher as cotas raciais, pois o sistema é intrinsecamente arbitrário, fruto
dos insanáveis vícios de origem dessa ação afirmativa
O reitor da Universidade de São Paulo (USP),
Carlos Carlotti Junior, reduziu o problema das absurdas “comissões de hetero
identificação” a mera questão de método. Após dois candidatos autodeclarados
pardos terem suas matrículas barradas pelas tais comissões, Carlotti Junior deu
a entender que grave nãoéa existência desses verdadeiros tribunais raciais. O
único erro, em sua visão, seria o atual modelo adotado pela USP para determinar
o destino de jovens postulantes ao ingresso na melhor universidade do País por
meio do sistema de cotas raciais. O esteio dessa escolha arbitrária – o olhar
subjetivo sobre os atributos físicos dos candidatos – permanece intocado.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o
reitor afirmou que a universidade arcará com os custos de deslocamento para que
candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) possam comparecer
pessoalmente diante das bancas de avaliação fenotípica, eliminando, desse modo,
a pré-avaliação feita por meio de videoconferência. “É mais barato arcar com o
custo das viagens do que deixar qualquer dúvida no ar e expor a instituição”,
disse Carlotti Junior.
Segundo essa lógica, o grande problema seria
o risco à percepção dos juízes de melanina provocado pela mediação tecnológica
da imagem dos candidatos. Decerto o meio digital provoca alterações de registro
visual de objetos e pessoas pelo olhar humano. Mas não é disso que se trata. A
questão d efundo noca sodas tais“c omissões de hetero iden ti ficação”é que
elas não encontram amparo em lei alguma nem muito menos na Constituição.
Trata-se, portanto, de evidente arbítrio, quando não uma normalização da discriminação
racial a pretexto de fazer justiça social.
A recalcitrância não é só do reitor. Em
artigo publicado no Jornal da USP, Ana Lúcia Duarte Lanna, próreitora de
Inclusão e Pertencimento, e Aluísio Augusto Cotrim Segurado, pró-reitor de
Graduação, afirmaram estar “convencidos que as comissões de hetero
identificação e as políticas afirmativas, lados de uma mesma moeda, têm
garantido o processo de inclusão social e de construção de uma universidade
pública mais diversa e socialmente plural”.
As boas intenções mal escondem os vícios de
origem que resultaram nos tribunais raciais. As cotas por raça embutem um nível
de arbítrio incompatível com qualquer norma constitucional, como ilustrou
perfeitamente o caso do tribunal racial da USP.Ne mé preciso invocar os artigos
sobre a igualda dede todos perante alei. Basta revisitar o artigo 208, inciso
V, no qual se lê que o dever do Estado coma educação será efetivado mediante a
garanti ade“acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um (grifo nosso)”. O tamanho do nariz
ou a grossura do lábio – critérios supostamente objetivos usados pelos árbitros
raciais das universidades – nada tem a ver com a capacidade dos candidatos.
O ingresso no ensino público superior tem de
ser baseado exclusivamente no mérito intelectual dos candidatos. Contudo,
ninguém de boafé haverá de negar que existe uma abissal disparidade entre as
condições de disputa por uma vaga nas universidades públicas entre os alunos
oriundos da rede pública e os que provêm da rede particular. Esse
desequilíbrio, porém, é determinado pela condição socioeconômica dos alunos. Os
mais pobres dependem de uma rede de ensino sabidamente de pior qualidade. É tão
simples quanto isso.
A sociedade precisa olhar para o futuro. Se e
quando uma reforma de cima a baixo do sistema público de educação básica for
alçada à grande prioridade nacional, a discussão em torno da necessidade de
cotas – e dos meios para implementá-las – para ingresso no ensino superior será
ociosa. Hoje, poucas e louváveis são as vozes que pregam nesse deserto,
enquanto outros preferem seguir apostando na divisão racial dos brasileiros
como ativo político-ideológico.
OMC confirma sua estagnação
O Estado de S. Paulo
Entidade segue longe de consenso sobre temas
relevantes num mundo em transformação
A Organização Mundial do Comércio (OMC)
encerrou sem acordos sua reunião ministerial de Abu Dabi, nos Emirados Árabes
Unidos, nas primeiras horas de 2 de março. Os 164 países que a integram não
alcançaram consenso em temas relevantes, como agricultura, pesca e facilitação
de investimentos. A ausência de qualquer movimento dos Estados Unidos em favor
da reconstrução do mecanismo de solução de controvérsias, sem efetividade há
sete anos, arrematou o fracasso do encontro. Restou o preocupante quadro de
paralisia da organização – tanto para aplicar novas disciplinas como para
julgar práticas ilegais ou abusivas no comércio internacional.
Para não dizer que nada saiu do encontro de
Abu Dabi, houve consenso sobre a prorrogação por mais dois anos da isenção de
tarifas de importação sobre o comércio eletrônico de dados. De resto, o
desprezo dos Estados Unidos, cujo principal negociador se retirou antes do fim
da reunião, e o veto da Índia a todos os acordos possíveis impediram o saldo
esperado. A delegação de Nova Délhi obstruiu até mesmo a inclusão, no aparato
jurídico da OMC, de um acerto fechado previamente por 122 países sobre
facilitação de investimentos, que previa redução de burocracia e maior
transparência por governos e empresas.
A delegação da Índia chegou a Abu Dabi com o
firme propósito de ver consagrada sua proposta de legalizar os subsídios aos
seus estoques agrícolas – e de, em caso de decepção, vetar todos os demais
acordos. A estratégia não poderia ser mais espúria. Agiram corretamente o
Brasil e outros exportadores de alimentos ao recusarem a chantagem, que
ocultava uma escaramuça. Como denunciou a Tailândia, a Índia exporta parte de
seus estoques, que deveriam atender exclusivamente o mercado doméstico – uma
clara infração às regras vigentes.
Não é de hoje que a Índia demole consensos na
área agrícola, em claro confronto às posições brasileiras. Na Rodada Doha,
contribuiu para o fracasso do acordo sobre redução de tarifas e de subsídios
domésticos aos bens do agronegócio. Desta vez, fez ainda o desfavor de vetar a
proposta da China de aperfeiçoamento das disciplinas do acordo de pesca, de
2022. As divergências entre Brasil, Índia e China atestam seus interesses
conflitantes na OMC e a chance remota de haver alinhamento no Brics.
Fato é que a 13.ª reunião ministerial da OMC
apenas confirmou a estagnação da entidade que se verifica desde a ruína da
Rodada Doha, em 2001. Tornou-se mais difícil construir consensos sobre temas
negligenciados ao longo dos 30 anos da organização, como o comércio agrícola, e
disciplinar novos setores, como o de alta tecnologia. A organização não
prosperou nem mesmo como tribunal de práticas ilegais ou abusivas. Seu
mecanismo de solução de controvérsias está paralisado desde 2017 pelos EUA, que
impediram a evolução dessa discussão em Abu Dabi.
Trata-se de uma péssima notícia num mundo em transformação acelerada, desafiado por tensões geopolíticas e conflitos com repercussão no comércio internacional. Ao respirar por aparelhos, a OMC mal consegue preservar o arcabouço jurídico do comércio internacional. Sem ela, no entanto, seria bem pior.
Ascensão de Trump no mundo polarizado
Correio Braziliense
Do ponto de vista do Brasil, o sucesso de
Trump alimenta a neodireita que se cristalizou a partir de 2018
A vitória acachapante de Donald Trump nas
primárias republicanas realizadas nesta superterça foi a pá de cal nos planos
da concorrente do ex-presidente, Nikki Haley, de seguir adiante na corrida para
a Casa Branca. Nesta quarta-feira, a ex-governadora da Carolina do Sul e
ex-embaixadora na ONU desistiu da candidatura. Assim, abre-se definitivamente o
caminho para Trump ser confirmado como o candidato republicano para as eleições
presidenciais de novembro. Ao anunciar que estava fora da disputa presidencial,
Haley manifestou que, por ora, não pretende apoiar o mais votado entre os
delegados republicanos. “Nunca apenas siga a multidão, sempre decida por si
mesmo”, disse a ex-governadora, citando uma frase de outra mulher conservadora,
a ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher.
Após vencer as prévias em 14 dos 15 estados
norte-americanos na Superterça, Trump, fiel ao seu estilo, voltou as baterias
contra o rival democrata. E não economizou nos ataques. Criticou fortemente a
postura do presidente Joe Biden no conflito na Ucrânia e em Gaza. Declarou
apoio explícito à ação militar de Israel, com uma frase controversa: “Acabe com
o problema”. Trump disse que, se estivesse no comando da Casa Branca, o ataque
terrorista do Hamas jamais teria ocorrido. E finalizou: “Joe Biden é o pior presidente
da História do nosso país”.
O atual ocupante da Casa Branca, também
vencedor da Superterça do lado democrata, preferiu dar declarações por escrito
em resposta aos ataques do adversário. E externou uma preocupação expressiva
nos Estados Unidos, compartilhada em diversas partes do mundo. “[Os americanos]
estão diante de uma escolha clara: se querem seguir avançando ou se permitirão
a Donald Trump que nos arraste para o caos, a divisão, e a escuridão que marcou
seu mandato”, escreveu Biden.
A ascensão de Donald Trump carrega vários
significados. Significa, em primeiro lugar, que o fenômeno eleitoral de 2016,
resultado de um carisma fora de série nas redes sociais e um desprezo pelo
establishment norte-americano, se tornou uma força política definitiva na mais
antiga democracia do Ocidente. O ex-presidente demonstrou, diversas vezes, o
apreço pelos regimes autocráticos da Rússia e da Hungria. É acusado de incitar
a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2020, embora a Justiça, até o momento,
não tenha visto impedimento para o ex-presidente republicano concorrer a um
segundo mandato na Casa Branca. Apesar desses óbices, segue forte na
preferência do eleitor norte-americano.
Um eventual retorno de Trump à presidência
dos Estados Unidos tende a exacerbar tensões e aprofundar a polarização no
complexo momento das relações internacionais. O republicano deve retomar a
antiga tradição isolacionista dos norte-americana, deixando em segundo plano as
ações de organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas e até
alianças militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Essa postura pode complicar ainda mais a situação em regiões sensíveis, como o
leste europeu, ou o Oriente Médio. Cite-se, ainda, o negacionismo explícito do
republicano à emergência climática, apesar de todas as evidências científicas.
Do ponto de vista do Brasil, o sucesso de Trump alimenta a neodireita que se cristalizou a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro. Trata-se de sinal preocupante, pois é conhecido o o apreço de parcela dos bolsonaristas por práticas autocráticas, quando não a nostalgia do regime de exceção que prevaleceu sob o jugo dos militares. O ressurgimento da onda trumpista certamente servirá de aditivo para a oposição se contrapor de maneira mais veemente à plataforma progressista de Luiz Inácio Lula da Silva.
Os próximos meses prometem ser de fortes emoções. Trump está chegando. E vem com apetite.
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