quinta-feira, 7 de março de 2024

Conrado Hübner Mendes - Dormiu bem, general?

Folha de S. Paulo

Irritometria militar em off é o pico do servilismo jornalístico

No currículo oculto da formação em jornalismo existe uma disciplina chamada "Servilismo ao poder político e econômico". Ensina a prestar serviços privados a quem manda, e a se afastar da produção de qualquer informação útil ao interesse público ou bem comum. Dentro dessa disciplina, há um tópico ao qual o jornalismo brasileiro se dedica com muito gosto e engenho: a irritometria militar.

"Forças Armadas se irritam com revelações da PF sobre participação de militares na tentativa de golpe"; "A irritação da cúpula militar com a investigação da PF sobre o golpe"; "Cresce a irritação das Forças Armadas com atuação da Polícia Federal".

"Militares se irritam com prisão de Cid"; "Entenda o motivo da irritação das Forças Armadas com o caso das joias de Jair Bolsonaro"; "Nova crise provocada por Olavo de Carvalho escancara irritação de militares".

"A irritação das Forças Armadas com o decano do Supremo" (o decano era Celso de Mello, que ousou avisar a militares que, se não fossem depor, seriam levados, como qualquer cidadão, "debaixo de vara"); "A irritação dos militares com Alexandre de Moraes" (o ministro representaria uma "senha da indignação" entre militares).

É um jornalismo orgulhoso do privilégio dessa fonte tão especial, o general. Por isso não se reconhece como jornalismo de fofoca. Na tipologia das fofocas, existe a fofoca BBB (relato de fatos curiosos sobre atores que só se tornam conhecidos em razão da fofoca); e existe a fofoca sobre a vida privada de autoridades ou celebridades (onde a notoriedade dos atores precede a fofoca).

Na irritometria militar, a fofoca é plantada pelas próprias autoridades. Em geral, um aviso anônimo em off; com frequência, simulando posição refletida e deliberada de uma coletividade, uma instituição, não a opinião de um ou dois indivíduos.

Se a irritabilidade fosse apenas uma categoria de fofoca política, não teria maiores efeitos. Mas, nesse jornalismo, ela se alçou a uma categoria de análise política. Um bom irritometrista se presta a cumprir, portanto, outras funções: mandar mensagens, ameaças, ofertas de barganha.

Ninguém se torna irritometrista por pura preguiça, carência, falta de assunto ou vocação servil. Não é serviço gratuito. Há contrapartidas desejadas. Pode ser promessa de influência, prestígio de exclusividade, entrada em festas, lista de contatos, cliques. Pode ser exigência do jornal ou do editor. Pode ser uma condição para manter o emprego.

Melhor que jornalismo declaratório de opiniões é o jornalismo declaratório do estado de espírito. Melhor que jornalismo declaratório do estado de espírito é o do estado de espírito em off. E melhor que o indivíduo irritado em off é a instituição irritada em off.

Para que as Forças Armadas se irritem, basta qualquer enunciação pública dos crimes que cometeram no passado e no presente. Basta qualquer demonstração de sua associação a uma família de delinquência política serial que assumiu a Presidência e desenhou plano de golpe junto com eles. Basta o aparente risco de sanção, pois sanção, de fato, nunca sofreram. No máximo, a sanção premial: ameaçam o governo e ganham benefícios orçamentários, remuneratórios e previdenciários (também para as filhas).

A obsessão mórbida com a irritação de militares tem uma ousadia epistêmica. O irritometrista se julga capaz não só de identificar a irritação, mas de medi-la. É capaz de perceber quando a irritação se mantém estável, quando cresceu ou regrediu. Uma ousadia preguiçosa, pois sequer se preocupa em reportar outro estado de espírito. Queríamos também saber quando militares estão felizes, quando se regozijam. Se na tortura ou na sinecura.

Tem também uma dimensão moral. Não é qualquer cidadão ou instituição que goza do luxo desse cuidado jornalístico. Importante saber com qual estado de espírito o jornalismo se preocupa, e qual ignora.

Quando Lula afirmou não querer "remoer o passado", por que os irritometristas não foram lá perguntar o que sentiam os familiares de vítimas da brutalidade militar? Seu irritômetro só quer saber de vestir farda?

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente! O colunista deu um coice nalguns colegas, como Míriam Leitão e Denis Rosenfield, que, com alguma frequência, se apresentam como bem informados sobre as opiniões dos altos oficiais militares, mas em parte funcionam ou atuam como porta-vozes deste pessoal.

ADEMAR AMANCIO disse...

Pode ser.