Valor Econômico
Emendas parlamentares abrem clivagem orçamentária sem critério de planejamento, fiscalização ou punições
A calamidade que assola o Rio Grande do Sul
coloca a nu a incompetência do Congresso Nacional na administração dos recursos
que conseguiu subtrair do orçamento da União ao longo dos últimos anos. A
denúncia de que apenas uma entre as 6 mil emendas individuais de parlamentares
criadas em 2023 tenha sido indicada para ações vinculadas a alterações
climáticas é emblemática. Realça a ineficácia na alocação dos recursos, mas não
se limita a isso.
As emendas empenhadas pelo Congresso abrem uma clivagem orçamentária em benefício de “obras” e “serviços” dispersas pelo país sem critério de planejamento, sem fiscalização, sem cobranças e sem punições. São fontes de gastos da parte obscura do orçamento, aquela que escapa ao arcabouço, digamos, formal, sujeito diariamente ao estresse de encaixar despesas crescentes em receitas fora de compasso. Digo formal porque a vertente legislativa da absorção orçamentária funciona como um apêndice das contas públicas, como se nada tivesse a ver com o equilíbrio e o ajuste fiscal necessários à harmonia econômica do país.
Os dirigentes da Comissão de Fiscalização
Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, por exemplo, dão destaque à
missão de fiscalizar os recursos públicos aplicados pelo Poder Executivo, um
dos objetivos da comissão, mas nada falam sobre o monitoramento do destino dado
ao dinheiro público abrigado sob a rubrica das emendas parlamentares.
Restringem ao Executivo a responsabilidade pela gestão fiscal e deixam o
Legislativo livre de ser imputado por falhas na execução orçamentária.
Um passo importante foi dado este ano com a
Instrução Normativa nº 93 do TCU de 17 de janeiro de 2024 cujo objetivo é
justamente o de regulamentar os procedimentos para fiscalizar as transferências
repassadas a Estados e municípios através de emendas individuais parlamentares.
A IN 93 atribui aos TCUs dos entes federados (estaduais e municipais) a tarefa
de controlar o percurso dos recursos daquelas emendas e determina que os
Estados e municípios beneficiados elaborem relatório de gestão com informações
relacionadas à verba recebida. Tal relatório, diz a IN 93, deve ser inserido na
plataforma Transferegov.br, por meio da qual se dá a fiscalização do TCU.
A Transferegov.br abriga todas as
transferências de recursos realizadas pelo Executivo Federal para Estados,
municípios, Distrito Federal e ONGs de forma integrada e centralizada. Agora,
com a IN 93, passa também a abranger os recursos provenientes das emendas
parlamentares.
Falta, no entanto, transparência às
informações inseridas na plataforma, uma vez que só pode ser acessada por
integrantes da CGU e do TCU, além do Poder Judiciário, Poder Legislativo e
Ministério Público. Os contribuintes brasileiros, vítimas primeiras de
catástrofes de toda a ordem com consequências letais pelo descaso dos governos
com o que é público, ficam alijados do acesso aos dados referentes à origem, à
movimentação financeira, aos objetivos e aos resultados da aplicação dos
recursos que ao fim e ao cabo pertencem à sociedade em geral.
No caso das emendas parlamentares, a
desinformação tem sido até aqui absoluta. Além de não se saber se o dinheiro
tomou a direção indicada e, em segundo lugar, se foi atingido o resultado
apontado na justificativa para o uso da verba empenhada e paga, não há controle
da forma como a “obra” ou o “serviço” é licitado e contratado nem do tipo de
material usado nem da origem da mão de obra empregada. Isso para ficarmos no
aspecto particular da questão. O problema ganha dimensão agravada quando se
considera que as emendas se destinam via de regra a atender as paróquias
políticas de deputados e senadores, sem qualquer preocupação com políticas
públicas regionais ou nacionais.
A farra das emendas parlamentares começou a
partir de 2015, quando a Câmara dos Deputados era presidida pelo então deputado
Eduardo Cunha. A possibilidade de os parlamentares emendarem o orçamento da
União, introduzida na Constituição de 1988, ganhou naquele momento um apetite
voraz de deputados e senadores.
Entre 2015 e 2016, o valor pago pelo governo
para as emendas parlamentares saiu da casa dos milhões: pulou de forma
extraordinária de R$ 24,276 milhões para R$ 16,221 bilhões, respectivamente.
Entre 2017 e 2019, sob a gestão de Rodrigo Maia na presidência da Câmara dos
Deputados, os gastos originários daquelas emendas caíram substancialmente,
mantendo-se nos níveis de R$ 5,347 bilhões; R$ 5, 474 bilhões e de R$ 6
bilhões, respectivamente.
Já na gestão de Arthur Lira, os valores pagos
voltaram à marca dos R$ 17,631 bilhões em 2020, tendo sido ainda mais ampliados
em 2023, para R$ 21,909 bilhões. Este ano, segundo as últimas informações da
CGU, o montante efetivamente pago pelo governo às emendas parlamentares voltou
à cifra dos milhões, com a liberação até então de R$ 29,846 milhões. Este valor
não inclui os R$ 542 milhões de emendas de parlamentares gaúchos, liberados
nesta semana excepcionalmente para os municípios afetados pelas inundações.
Outros R$ 480 milhões de emendas devem ser disponibilizados proximamente.
A iniciativa de controlar e fiscalizar a
aplicação do dinheiro pode funcionar como um desestímulo à prática de emendar a
torto e a direito o orçamento da União por parte dos parlamentares. Mas são
necessários passos adicionais. Por exemplo, falta a definição de um arcabouço
legal que vincule as emendas a projetos de políticas públicas definidas pelo
governo federal, Estados e municípios de modo que a aplicação do dinheiro das
emendas não fique solta no espaço, com o risco de ser direcionada para a compra
de dentaduras.
Também se torna crucial a instituição de
penalidades, incluindo a perda de mandato por crimes de responsabilidade fiscal
cometidos por deputados e senadores, sempre que as emendas parlamentares forem
direcionadas a destinos escusos ou a finalidades que não se enquadram nos
projetos de políticas públicas definidas pelas esferas executivas de governo.
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