Valor Econômico
Estabelecer prioridades eternas é
incompatível com as transformações ditadas pela realidade e pela dinâmica
institucional
O economista Fernando de Holanda Barbosa
apontou, em livro, os privilégios do Brasil (O Flagelo da Economia de
Privilégios: Brasil, 1947-2020, FGV Editora, 2021). Eles estão entranhados nos
costumes, na lei e na Constituição. Basta ver dois exemplos recentes: a reforma
tributária e a restauração de quinquênios para juízes, procuradores e outras
carreiras.
A reforma tributária legará um sistema
racional de cobrança de impostos sobre o consumo, mas incorporou muitos
privilégios. Os serviços, consumidos essencialmente pelos mais ricos, pagarão
apenas 40% da alíquota básica, que incidirá sobre bens adquiridos pelos mais
pobres. Profissionais liberais, a maioria pertencente às classes mais
favorecidas, pagarão 70%. O custo anual da PEC dos Quinquênios, em favor de
grupos privilegiados, será de R$ 42 bilhões.
Em ambos os casos, invocou-se o direito adquirido. Como jocosamente lembrou o jornalista Fernando Dantas, o lema da bandeira brasileira - “Ordem e Progresso” - poderia ser substituído por “Direito Adquirido”, o qual, mesmo quando obtido de forma ilegítima, é reconhecido pelo Judiciário. Além disso, recursos são garantidos para certas áreas, mediante a vinculação de impostos a gastos específicos, como ocorre com a saúde e a educação. Nenhum país que leve a sério as finanças públicas inclui esse “direito” na sua Carta Magna, como aqui.
Tudo isso começou na crise dos anos 1980,
quando se recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar o colapso
das contas externas. O apoio esteve condicionado, como é comum nesses casos, a
um ajuste nas contas públicas, cujo déficit era entendido como causa do
desequilíbrio macroeconômico. Dizia-se, sem razão, que cortes de gastos na
educação serviam apenas para satisfazer o Fundo e os bancos credores. Assim,
nos estertores do regime militar, a emenda João Calmon (1983) vinculou 13% dos
impostos federais ao setor, o que foi ampliado para 18% na Constituição de
1988. Nos Estados e municípios o percentual é 25%. A regra foi estendida à
saúde, para a qual se destinam 15% da receita tributária líquida das três
esferas de governo.
A vinculação de impostos a gastos acarreta
desperdícios e má alocação de recursos, o que reduz a produtividade. Seus
objetivos nem sempre são alcançados. De fato, o Brasil despende em educação,
como proporção do PIB, uma vez e meia o que gasta a China e mais do que a média
dos países ricos, mas a qualidade é lamentável, como atestam avaliações
internacionais. O SUS é visto como política pública de saúde bem-sucedida, mas
não se sabe se é eficiente, pois não há avaliação de seu desempenho.
Os gastos primários (não considerados os
encargos financeiros) com educação, saúde, Previdência, pessoal, programas
sociais e agora investimentos (Lula não admite cortes) corresponderão, em 2024,
a 98% do total. Restam 2% para as despesas discricionárias, o que é uma rigidez
sem paralelo no mundo. Corremos o risco de crescimento explosivo da relação
entre a dívida pública e o PIB. Recentemente, a Secretaria do Tesouro Nacional
mostrou que a margem para gastos discricionários desaparecerá até 2032 (talvez
antes, penso eu).
De fato, dados o envelhecimento da população,
a generosidade do sistema previdenciário e o restabelecimento dos aumentos
reais do salário-mínimo, as respectivas despesas crescerão em ritmo superior ao
dos demais gastos. As obrigatórias superarão rapidamente 100% dos dispêndios
primários. O custeio das demais atividades dependerá de aumento da carga
tributária e/ou da dívida pública, o que é praticamente impossível. A percepção
desse trágico desfecho acarretará uma crise de confiança e uma séria crise financeira,
provocando alta da inflação e queda do potencial de crescimento.
Com a exceção da área econômica, o governo
não parece entender a gravidade da situação. Lula prefere criticar quem lança
alertas sobre o abismo fiscal. Repete que dispêndios em educação não são
gastos, mas investimento. Essa distinção, inexistente nos manuais de finanças
públicas, ignora que todos os gastos consomem recursos escassos,
independentemente da classificação.
Agora, surgiram duas novas demandas de
vinculação. O ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas
reivindicam que os gastos militares sejam estabelecidos permanentemente como
proporção do PIB, primeiro ao nível de 1,2%, aumentando progressivamente para
2%, que é o mínimo adotado pelas nações ricas da Otan. Segundo o ministro da
Defesa, José Múcio, “o importante para a área de defesa é ter alguma
previsibilidade orçamentária para as Forças Armadas honrarem contratos e
definirem qual será seu tamanho”. Todos adorariam essa regra. Na mesma toada, o
ministro da Segurança, Ricardo Lewandowski, reivindica um novo SUS, o Sistema
Unificado de Segurança, com garantia de recursos semelhante à educação e à
saúde.
As três grandes revoluções do Ocidente - a
inglesa (1688) a americana (1776) e a francesa (1789) - atribuíram ao
Legislativo o poder de aprovar o Orçamento, que viria a se tornar a principal
lei econômica de todos os países. Cabe à peça orçamentária anual definir as
prioridades, as quais costumam mudar. Desse modo, é equivocado vincular
recursos a despesas. Estabelecer prioridades eternas é incompatível com as
transformações ditadas pela realidade e pela dinâmica institucional. Isso põe
em risco o bem-estar das gerações futuras.
As vinculações, aprovadas pelo próprio
Congresso, constituem uma aberração. Os respectivos gastos se tornam imutáveis.
Nega-se aos parlamentares o exercício de sua mais nobre função, a de definir
anualmente as prioridades do país. Eles mesmos apoiam sua castração funcional.
Pior, tudo é feito com amplo apoio de segmentos mais bem informados da
sociedade.
É preciso, pois, desestimular iniciativas
irresponsáveis como a PEC dos Quinquênios, revogar as vinculações e resistir à
cultura do gasto garantido, a qual eleva as desigualdades e pode nos trazer
consequências nefastas.
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