O Estado de S. Paulo
A História precisa ser lembrada para que se
evitem erros conhecidos e para que experiências exitosas subsidiem o bom
enfrentamento de problemas repetidos
“Nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário, de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em relação ao PIB, o que poderia destruir a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos.”
Extraído do programa de governo do então
candidato Luiz Inácio Lula da Silva, a pedido do ministro da Fazenda, Pedro
Malan, durante as eleições presidenciais de 2002, esse texto cairia muito bem
ao Lula de 2024.
Em seu livro Eles Não São Loucos: Bastidores
da Transição Presidencial FHC-Lula, editado em 2022 pela Portfolio-Penguin, o
jornalista João Borges conta que, em 2002, Malan determinou a assessores que
selecionassem manifestações de todos os candidatos para submeter ao FMI e ao
Tesouro americano.
A desconfiança ameaçava macular o período final da gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. O dólar chegou a valer R$ 4, o pico de uma escalada preocupante (para o período), com efeitos sobre a inflação interna. Era impositivo buscar uma transição tranquila e acalmar os ânimos dos financiadores externos. Afinal, a dívida pública externa era grande.
A História precisa ser lembrada para que se
evitem os erros conhecidos e para que as experiências exitosas subsidiem o bom
enfrentamento de problemas repetidos.
O Brasil tem uma dívida pública crescente e
elevada, cuja tendência é encerrar o ano corrente em mais de 78% do PIB. As
despesas estão crescendo a cerca de 13% além da inflação. Descontado o efeito
dos precatórios antecipados no início deste ano e a mudança de calendário para
o pagamento do 13.º salário dos aposentados (em relação a 2023), a alta real
teria sido de 8,1%, pelas nossas estimativas. Já as receitas líquidas do
governo central estão aumentando à razão de 9,3% acima da inflação de janeiro a
maio.
A tributação do estoque dos rendimentos dos
fundos fechados e outros eventos atípicos não durarão para sempre, de tal sorte
que a taxa de variação deverá convergir para 7,3%, até o fim do ano, de acordo
com nossas projeções na Warren Investimentos.
Enquanto isso, as despesas não dão sinais de
desaceleração.
Os efeitos da nova lei do salário mínimo
sobre o gasto social e previdenciário, a retomada dos pisos da educação e da
saúde e o gasto elevado com emendas parlamentares são vetores de crescimento da
despesa que precisam ser avaliados com cuidado. Só assim retomaremos o
superávit primário a médio prazo. Não se trata de zerar o déficit apenas, mas
de gerar saldos positivos, capazes de restabelecer uma dinâmica sustentável
para a dívida pública em relação ao PIB, como diria o Lula de 2002 ao atual.
O financiamento do Estado brasileiro depende
de uma preocupação permanente com a arrecadação sustentável de tributos e o
controle adequado dos gastos públicos.
Desde logo, entretanto, é preciso ter claro:
não há crise fiscal no Brasil.
O alarmismo é péssimo, turva os mercados,
pressiona os juros, cria assimetrias e bagunça o coreto. Crises fiscais
originam-se da ausência de compromisso político em relação às regras fiscais e
à obtenção de resultados suficientes para garantir uma evolução controlada da
dívida pública. Estamos, sim, distantes de atingir as condições de
solvabilidade da dívida, ou seja, de reequilibrar a relação dívida sobre PIB.
Mas não estamos próximos, igualmente, de um
quadro de crescimento desordenado do endividamento. Há tempo para evitar
catástrofes pré-anunciadas por certos setores. Não se briga com o mercado. O
Estado e o mercado devem dançar, juntos, como parceiros harmoniosos nos salões
da gafieira.
Os mercados funcionam de maneira reativa e
antecipam riscos. Fabricam crises, muitas vezes, que não existem, e apostam
contra, quando desejam. A literatura econômica está recheada de considerações
sobre as profecias autorrealizáveis.
O governo financia seus déficits – despesas
não cobertas por receitas – com títulos públicos. Trata-se da promessa de pagar
determinado valor, em prazo definido, mediante a contratação de uma remuneração
(juros). Os agentes econômicos emprestam sua poupança ao governo à luz das
probabilidades atribuídas aos riscos e, assim, calibram a remuneração demandada
para bancar o gasto público.
O governo, por sua vez, pode influenciar as
estimativas e cenários do mercado, por meio de um plano fiscal fundamentado no
respeito ao dinheiro público, do estímulo responsável ao crescimento econômico
e do desvio cuidadoso das cascas de banana pelo caminho.
A meu ver, o ministro Fernando Haddad tem
promovido esforços descomunais para recuperar receitas abandonadas há décadas
nas mãos de grupos privilegiados. O sucesso de medidas como as novas regras
para o contencioso administrativo e para as transações tributárias, a
recomposição de base do PIS/Pasep e da Cofins, o combate a benefícios iníquos
(MP 1.185) é evidência maior. Falta, agora, um plano para o gasto público.
A base poderia ser esta hipotética e
brevíssima carta do presidente Lula de 22 anos atrás ao Lula do terceiro
mandato:
“Busque o superávit primário mínimo para
reequilibrar a dívida em relação ao PIB. Só assim será possível prosperar, com
juros baixos, investimentos elevados e crescimento econômico para todos,
sobretudo e especialmente para os mais pobres.” •
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