Legislação sobre pesquisa eleitoral é um equívoco
O Globo
Falta lastro científico e sobra oportunismo à
proposta que tramita no Senado
O Projeto de
Lei do novo Código Eleitoral que tramita no Senado prevê a divulgação de
pesquisas de intenção de voto acompanhadas de um insólito “indicador de
confiabilidade”, elaborado pela Justiça Eleitoral. Trata-se da
mais nova versão da “taxa de acerto” sugerida por parlamentares às vésperas da
última eleição, em 2022. Como naquela época, a proposta atual também é
descabida.
Pesquisas eleitorais não são prognósticos. São retratos de um momento e devem ser analisadas levando em conta as leis estatísticas que regem levantamentos por amostragem. Dentro de condições ideais de coleta da amostra, elas garantem que o resultado reflete a realidade de certa população com determinada probabilidade, dentro de uma margem de erro. Por definição, não têm como “acertar” ou “errar” o que acontecerá no dia da eleição. Intenção de voto é uma coisa. Outra, bem diferente, é o comportamento na urna.
Num mundo de informação veloz e abundante, a
decisão do eleitor tem sido volátil no planeta inteiro. Muitos mudam de ideia a
caminho do local de votação. Contingente nada desprezível desiste de votar, e
estimar a abstenção é um desafio para os institutos. A divergência com o
resultado na urna não significa que as pesquisas estejam “erradas”. Nem que não
tenham o papel relevante de informar o eleitorado sobre o quadro eleitoral
daquele momento. Por vezes, é o resultado de uma pesquisa que estimula o eleitor
para que vote e tente reverter a situação.
A iniciativa no Congresso reflete apenas o
oportunismo de políticos que se julgam prejudicados por elas. Na versão
original aprovada na Câmara, o projeto previa a divulgação de uma “taxa de
acerto” das pesquisas nos cinco pleitos anteriores. No Senado, o relator
Marcelo Castro (MDB-PI) trocou a expressão por “indicador de confiabilidade”.
Ele defende que os institutos também informem os resultados das últimas três
pesquisas estimuladas do candidato eleito no pleito anterior. É uma exigência
sem lastro no conhecimento científico. Desconhece-se país que imponha requisito
semelhante, diz Natallia Lima, consultora da Associação Brasileira de Empresas
de Pesquisa (Abep). Isso tem razão de ser. Além de inócua, a regra confundiria
o eleitor com informações inúteis, nomes que nada têm a ver com a eleição.
Nada disso significa que pesquisas eleitorais
sejam imunes a problemas. Mas o Legislativo pouco tem a contribuir para
aperfeiçoá-las. O esforço deve ser resultado de estudos sérios que detectem
suas deficiências diante da realidade, não de noções sem lastro na ciência. A
maioria dos institutos admite que precisa estimar melhor a abstenção, calibrar
as amostras para que sejam mais fidedignas (sem superestimar o voto em
segmentos de preferências definidas) e filtrar o “voto envergonhado” de quem
resiste a responder.
Os próprios institutos têm se encarregado de
promover mudanças para dar conta dessas limitações. Quanto melhor for o
levantamento, mais relevante será. A situação, porém, está longe de
preocupante. Apesar da gritaria no Congresso, todos os candidatos a cargo
majoritário no Brasil costumam contratar pesquisas para definir estratégias de
campanha. Não poderia haver sinal mais eloquente de que, no fundo, acreditam
nessa ferramenta imprescindível para medir os humores do eleitorado.
Não faz sentido demora para pagar
indenizações pela tragédia de Mariana
O Globo
Nove anos depois de rompimento da barragem,
empresas ainda protelam acordo com autoridades
Passados nove anos do rompimento da barragem
de rejeitos de mineração da Samarco em Mariana (MG), Vale e
BHP, controladoras da empresa, continuam a retardar um acordo final de
indenização pelo maior acidente ambiental do país. O rompimento da barragem do
Fundão arrasou distritos inteiros, como Paracatu de Baixo, Bento Rodrigues ou
Gesteira, matou 19 pessoas e contaminou o Rio Doce até a foz no Espírito Santo.
A tragédia afetou toda a população de cidades ribeirinhas. Para evitar a
contaminação por metais, foi preciso evitar consumir os peixes e a água do rio.
Mas isso é praticamente impossível de controlar por tanto tempo. As sequelas,
portanto, persistem até hoje.
É inconcebível que, passados nove anos de um
desastre ambiental de tal dimensão, sem que haja nenhuma dúvida sobre os
responsáveis, continue difícil concluir o pagamento de todas as indenizações.
Parece não haver interesse num acordo final.
Na negociação com autoridades federais,
estaduais e com o Ministério Público, as empresas
acabam de oferecer R$ 140 bilhões, incluindo R$ 37 bilhões já gastos
e R$ 21 bilhões reservados para a recuperação da Bacia do Rio Doce. São R$ 82
bilhões em dinheiro novo, ainda assim bem menos que os R$ 109 bilhões
reivindicados pelo poder público. Essa diferença já foi maior. No final do ano
passado, as empresas acenaram com apenas R$ 42 bilhões, enquanto o poder
público pedia R$ 126 bilhões.
Em princípio, um acordo em torno desses
valores é melhor que a judicialização. Afinal, nunca se sabe quando um processo
com tantos interesses envolvidos chegará ao fim. Numa ação julgada em primeira
instância na Justiça Federal, Vale, BHP e Samarco foram condenadas a pagar R$
47,6 bilhões por danos morais coletivos. Mas só depois da decisão da última
instância, que poderá vir do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo
Tribunal Federal, se estiverem em questão princípios constitucionais. As
empresas sabem disso e jogam com o tempo para adiar qualquer pagamento.
Haverá quem considere tudo normal, parte de
qualquer divergência que justifique uma disputa judicial. A questão é que se
trata de desastre ambiental com responsabilidades bem definidas e grande
impacto na renda e na saúde de toda uma população. Na melhor das hipóteses, se
houver acordo em breve e as indenizações restantes forem pagas em até 12 anos,
como se prevê, tudo estará encerrado apenas duas décadas depois da tragédia.
Mas os efeitos no organismo de quem foi contaminado pelos metais da lama de minério
de ferro que desceu o Rio Doce até o Atlântico podem durar para sempre.
Milei tem vitórias na economia e patina na
negociação política
Valor Econômico
Milei precisará de apoio firme no Congresso e fora dele, porque não é possível manter o ferrolho de emergência nos gastos por muito tempo
O presidente Javier Milei fez da Argentina
uma economia de guerra para debelar uma inflação de 290%. Desde que assumiu, em
10 de dezembro de 2023, eliminou drasticamente subsídios, reduziu o
funcionalismo público, interrompeu investimentos estatais e cortou as
transferências para as províncias. A receita radical fez o governo obter
superávit primário de 0,2% do PIB, pequeno, mas o primeiro em 16 anos. Milei
chegou à Casa Rosada com uma inflação mensal de 25% e em maio ela foi de 4,2%.
Apesar disso, em seus seis primeiros meses de governo, não conseguiu concluir
nenhum de seus projetos. Com concessões, no entanto, está prestes a obter aval
do Congresso para ter as mãos livres para agir em matérias econômicas,
financeiras, administrativas e de energia, e também para seu pacote de leis de
reformas - falta a votação final na Câmara, após dura batalha para vencer a
oposição no Senado.
Os bons números exibidos até agora têm seu
exato contraponto na redução dos salários, do crescimento e do padrão de vida
dos argentinos. Apesar de uma recessão forte, a maior vitória de Javier Milei
tem sido a manutenção de sua popularidade, entre 47% e 50%, pouco menor do que
tinha quando tomou posse. Os protestos crescentes da oposição peronista e dos
sindicatos não foram suficientes ainda para abalar seu prestígio, ancorado em
parte na esperança dos argentinos de que a disparada da inflação será refreada
e dias melhores aguardam a economia do país.
Como resultado das políticas de Milei, a
economia terá uma recessão mais profunda do que a projetada, de - 3,5%, ante
-2,75% anteriormente. Entre dezembro e março, os salários recuaram 17% e foram
os mais baixos desde 2019. Os empregos no setor privado não param de cair e
voltaram ao mesmo nível de 2015. Em contraste, o superávit primário prometido
nas negociações com o FMI supera as expectativas, mesmo que a meta seja
considerada extravagante: um ajuste de 5 pontos percentuais do PIB (US$ 31
bilhões). A maior parte do ajuste recaiu sobre redução dos subsídios, zeragem
dos repasses para as províncias e dos investimentos estatais, pelo lado das
despesas. Pelo lado das receitas, contribuíram o imposto sobre importações e o
avanço das exportações agrícolas, que foi vigoroso após uma das maiores secas
da história do país.
O governo estancou o financiamento monetário
das despesas do Estado pelo Banco Central, uma das principais fontes da
inflação. Uma virada de US$ 15 bilhões entre dezembro e abril na balança
comercial tornou as reservas internacionais líquidas, as de fato disponíveis de
imediato de negativas (- US$ 11 bilhões) em positivas (US$ 300 milhões). As
reservas brutas subiram de US$ 21,1 bilhões em dezembro para US$ 29,2 bilhões.
O pacote fiscal que tortuosamente está
passando pelo crivo do Congresso coloca ênfase no ajuste do Imposto de Renda,
que foi vetado. Mas foi aprovada a repatriação sem imposto de dinheiro não
declarado de até US$ 100 mil, com taxação acima desse limite, medida com a qual
se espera angariar 0,3% do PIB. Impostos sobre dividendos devem render mais
0,2% do PIB e cortes de subsídios, 0,7%. O governo argentino prometeu ao FMI
mais impostos e tarifas se seu pacote fiscal for insuficiente em relação às
expectativas iniciais.
Na oitava revisão do acordo, o FMI louvou as
conquistas de Milei, mas advertiu que o governo tem pela frente uma “difícil
rota de ajuste”. Para contornar os obstáculos, o Fundo recomendou buscar mais
apoio político e social para as reformas que estão sendo feitas, assim como
aumentar a assistência social aos mais pobres. O Fundo constata que a demora em
conseguir aprovação legislativa para as reformas aumentou os riscos de
insucesso.
O cenário externo pode se tornar menos
favorável e a recessão, acabar se prolongado, alimentando tensões sociais e
dificultando a execução das políticas desejadas. Para o FMI, a demora de
aprovação das medidas necessárias pode fazer naufragar os esforços de
estabilização e requerer duras medidas adicionais. “O caminho para a
estabilização macroeconômica continua altamente incerto”, diz o relatório do
FMI sobre o país.
Os maiores problemas de Milei são sua
incapacidade de negociação política e sua agressividade em relação aos partidos
de oposição, que são maioria, enquanto os governistas de sua legenda são ínfima
minoria. Seu governo está aprendendo aos trancos e barrancos a arte da
conciliação, reforçada agora pela ascensão à chefia de gabinete do presidente
do veterano Guillermo Francos, com largo trânsito entre todas as forças
políticas, inclusive o peronismo.
Milei precisará de apoio firme no Congresso e fora dele, porque não é possível manter o ferrolho de emergência nos gastos por muito tempo. Se não houver a normalização da economia, e uma perspectiva de crescimento, seu capital político se esvairá e, junto com ele, seu programa de reformas. Seu populismo direitista não é visto ainda como uma ameaça às instituições democráticas e entrará no rol das excentricidades se ele conseguir retirar a Argentina de sua enorme e duradoura crise. É o que esperam dele os argentinos.
Deputados dão de ombros para as leis
Folha de S. Paulo
Arthur Lira desengaveta PEC da Anistia, que
concede perdão a inúmeras irregularidades praticadas por partidos políticos
Como se o país não tivesse problemas
importantes a tratar; como se não houvesse restrições orçamentárias; como se
parlamentares pudessem ignorar a sociedade; como se eles fossem imunes às leis,
os deputados federais movimentam-se em prol da chamada PEC da
Anistia, que vem a ser uma imoralidade do começo ao fim.
Não há maneira melhor de definir a proposta
de emenda à Constituição 9/2023,
desengavetada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), após reunião com
líderes partidários. O que se pretende é conceder o maior perdão da história a
irregularidades cometidas por agremiações políticas.
É difícil aquilatar com exatidão o impacto
financeiro da medida porque seus termos estão em debate. Muito mudou entre o
texto original, de março do ano passado, e a versão informal que passou a
circular nos bastidores do Congresso.
O espírito da iniciativa, de todo modo,
manteve-se inalterado. Se depender dos deputados, ficarão impunes todas as ilegalidades
praticadas por partidos políticos em relação às cotas eleitorais para
negros e mulheres —cotas que, vale ressaltar, foram aprovadas pelos próprios
parlamentares.
Além disso, se a PEC prosperar, as siglas
serão beneficiadas com um generoso refinanciamento de dívidas e uma magnânima
imunidade tributária, capaz de alcançar até juros, multas e condenações em
processos administrativos ou judiciais do presente ou do passado.
Para imaginar o tamanho das cifras que
poderão ser abonadas, basta ter em mente que os partidos desfrutam de fundos
que somaram R$ 6 bilhões apenas em 2022. Mesmo ano, aliás, em que dirigentes do
Pros, hoje incorporado ao Solidariedade,
teriam desviado R$ 36 milhões, de acordo com investigações da Polícia
Federal.
Causa ainda mais consternação saber que o
mesmo Lira patrocina a votação de um projeto
destinado a esterilizar as delações premiadas, uma ferramenta
jurídica que, embora tenha servido a abusos condenáveis, provou seu valor para
destrinchar a atuação de sofisticadas organizações criminosas.
Por que a Câmara demonstra tamanha inclinação
a favorecer desmandos? E por que tolera o descumprimento em série de regras
eleitorais? Seriam todos esses exemplos de abjeta legislação em causa própria?
Seja qual for a resposta, a Câmara adicionou
pusilanimidade ao quadro, pois parece
disposta a se acertar antes com o Senado, evitando o desgaste de
votar matéria que seria derrubada depois.
Que os senadores respondam, então, se
defendem os interesses da sociedade ou os dos fora da lei —pois os deputados já
indicaram de que lado estão.
Consulta perigosa
Folha de S. Paulo
Se AGU atuar como fiscal de campanha, pode
vir a desequilibrar as eleições
A Advocacia-Geral da União (AGU) enviou ao
Tribunal Superior Eleitoral uma consulta, questionando se é competência
da Justiça
Eleitoral julgar ações que visem a restringir ou remover
propagandas de candidatos ou partidos com desinformação "sobre política
pública federal, de interesse da União".
Embora o intuito possa ter sido apenas
dirimir uma dúvida jurídica, o palavreado usado sugere que o órgão esteja atrás
do aval da corte
para atuar contra as chamadas fake news em eleições. E isso seria
preocupante por mais de uma razão.
A AGU, apesar de ter missão de Estado, é
próxima demais ao governo de turno. Seu chefe tem status similar ao de
ministro, sendo demissível pelo presidente —a exoneração do procurador-geral da
República, por exemplo, depende de permissão do Senado.
Autorizar a AGU a atuar como fiscal de
propaganda eleitoral, portanto, tende a criar disparidade de forças entre
candidaturas.
Um postulante ligado ao governo teria, além
de sua equipe jurídica, o reforço do órgão federal para atuar contra campanhas
que, em seu entender, tragam desinformação sobre políticas públicas —um
conceito vago o bastante para englobar praticamente qualquer ação de uma
administração.
Ademais, pode-se criar um efeito cascata em
estados e municípios, cujas procuradorias teriam sinal verde para zelar pela
gestão de seus chefes. Em locais onde estruturas de campanha são mais modestas,
o desequilíbrio pode ser fator decisivo para o resultado do pleito.
A Justiça Eleitoral existe para resolver
disputas entre candidatos e partidos. Interesses difusos podem ser
considerados, mas a critério do Ministério
Público. Alargar suas competências, com decisões
que são tomadas em rito sumário, é temerário.
Toda eleição é em essência uma discussão
sobre políticas públicas, que, por óbvio, deve ser baseada em fatos. Seria
ingênuo, contudo, achar que seja sempre esse o caso.
É preciso combater a desinformação mas também estar atento ao risco de, a pretexto de restabelecer a verdade, interditar o debate público, fundamental em qualquer democracia liberal.
Um país em guerra contra seus jovens
O Estado de S. Paulo
‘Atlas da Violência’ reafirma o fracasso
brasileiro na proteção de crianças e jovens e mostra que é preciso mais
compromisso e ação onde hoje há indignação de alguns e indiferença de muitos
A nova edição do Atlas da Violência –
produzido anualmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em
parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – traz dados
estarrecedores que escancaram o fracasso brasileiro na proteção da vida de
crianças e jovens. Com dados referentes a 2022, descobre-se que praticamente
metade (49,2%) dos 46,4 mil homicídios registrados no Brasil teve como vítimas
pessoas entre 15 e 29 anos. Naquele ano, de cada cem mortes de jovens, um terço
(34) se deu por homicídio – e grande parte deles por arma de fogo. Visto de
outra forma, a cada dia, 62 jovens foram assassinados no País. Em dez anos,
foram mais de 321 mil vítimas de violência letal, a maioria homens negros.
O Atlas também mapeou a extensão
dos casos de violência sexual. Meninas até 14 anos são, proporcionalmente, as
maiores vítimas de agressão sexual, uma das formas mais comuns de violência
doméstica e familiar. Dito com outras palavras, quase metade (49,6%) da
violência contra meninas de 10 a 14 anos tem caráter sexual. Seis em cada dez
vítimas têm no máximo 13 anos. São números obtidos com base nos registros do
Sistema de Informação de Agravos de Notificação, criado pelo Ministério da
Saúde para notificar, compulsoriamente, qualquer caso suspeito ou confirmado de
diferentes formas de violência, como doméstica/intrafamiliar e sexual, e contra
mulheres e homens de todas as idades. Isso significa admitir que o levantamento
é composto apenas pelos casos oficialmente registrados – e não há razão para
duvidar que a realidade é ainda pior do que os números publicados.
Pouca gente há de questionar a premissa de
que o Brasil vem falhando na proteção de crianças e adolescentes, não só nos
efeitos da violência, mas também no cuidado da educação básica, sem o que é
impossível imaginar um futuro minimamente digno para eles. Com incômoda
frequência, no entanto, a divulgação de números e balanços, como esses expostos
no Atlas, ajuda a dar contornos ainda mais dramáticos a uma realidade
perturbadora – e que muitos acabam ignorando ou deixando em segundo plano
diante de outras mazelas. Há um círculo vicioso do qual precisamos escapar: a
falta de preparo do jovem leva-o ao desemprego e subemprego; a falta de
ocupação e perspectivas leva-o ao desespero; a falta de esperança leva-o à
droga e à captura pelo crime organizado. E assim se fecha um ciclo de miséria,
delinquência e violência que condena o presente e o futuro de boa parte do
País.
É como se o Brasil estivesse numa guerra,
situação em que jovens soldados são enviados para matar e morrer, mas a guerra
que vitima os jovens brasileiros é do País consigo mesmo. A título de
comparação, os EUA perderam 58 mil soldados em 20 anos de Guerra do Vietnã. Ou
seja, no Brasil ocorreram cinco guerras do Vietnã em uma década.
Ademais, como afirmou Samira Bueno, uma das
coordenadoras do Atlas, são os jovens a mão de obra preferencial do crime
organizado. Uma vez aliciados pelo mundo do crime, evadem da escola muito cedo
e não veem oportunidades senão na engenharia das organizações criminosas.
Se há cooptação sobre os jovens meninos, há
muito mais do que coação sobre as meninas. Os números do Atlas são
confirmados por outras pesquisas, como o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, publicado também pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, segundo o
qual houve 75 mil estupros em 2023. O perfil demográfico das vítimas diz muito
sobre nossas iniquidades e sobre nossa miséria moral e institucional: 88,7% são
mulheres, 61,4% são menores de 14 anos e 10,4% têm menos de quatro anos de
idade. Na maioria dos casos seus algozes são familiares.
Por vezes os números não dão conta da
dramaticidade do mundo real e de suas histórias. Mas são fundamentais para dar
a dimensão do problema e produzir gritos de alerta, de modo que o País reaja
com o devido vigor. Não está escrito nas estrelas, porém, que tais números se
manterão assim, como se não houvesse caminho alternativo para dar algum alento
à grande maioria das crianças e dos jovens brasileiros. Mas mudá-los vai
requerer muito mais compromisso e ação do que a indignação de alguns e a
indiferença de muitos.
A prioridade que fica só no discurso
O Estado de S. Paulo
Lula assegura que a educação fará o Brasil
ser um país rico. Há muito tempo, porém, a educação é citada como prioridade
nacional sem que isso se converta em boas práticas generalizadas
É com educação que o Brasil será um país de
Primeiro Mundo, disse, entusiasmado, o presidente Lula da Silva. Ao anunciar na
semana passada o que mais gosta – obras e vagas no ensino superior, de
preferência empacotando, com verniz de novidade, recursos e projetos já
previstos anteriormente –, Lula ecoou o que se ouve há muito tempo: em
palavras, poucos países ostentam clamor e indignação tão veementes em favor da
educação como o nosso; na prática, porém, as palavras são outras. Ano após ano,
eleição após eleição, governo após governo, a história se repete, e o que
deveria resultar em prioridade nacional e em boas práticas generalizadas não
medra no terreno infecundo da demagogia, restando festejar os poucos casos de
sucesso que são só ilhas de excelência num mar de incompetência. Se essa
obsessão educacional se convertesse em prática, teríamos uma educação de país
desenvolvido.
Quem, afinal, ainda precisaria ser convencido
de que a educação é a base de tudo, de que sem um ensino básico de qualidade
jamais alcançaremos nossos objetivos de acelerar o desenvolvimento
socioeconômico, ampliar a cidadania e reduzir as desigualdades? Quem ainda tem
dúvida de que as deficiências na formação de capital humano prejudicam
enormemente nossas perspectivas no complexo e competitivo jogo internacional?
De Rui Barbosa a Manoel Bonfim, na República Velha, às qualificadas
organizações da sociedade civil dedicadas atualmente ao tema, passando por
Hélio Jaguaribe, Mario Henrique Simonsen e muitos outros especialistas
acadêmicos do pós-guerra até hoje, é longa e ideologicamente variada a lista de
entusiastas. Ainda assim, não embarcamos no mesmo bonde no qual seguiram países
como Finlândia, Coreia e Cingapura – para citar alguns com patamar semelhante
ao do Brasil décadas atrás.
Das promessas do passado ao gogó presidencial
do presente, parece haver um enorme abismo que separa o falar e o fazer. Essa
constatação não significa dizer que a educação brasileira é uma espécie de
terra arrasada. Longe disso. O Brasil passou por uma sequência de políticas de
base lideradas pelo Ministério da Educação (MEC) a partir do ministro Paulo
Renato (governos FHC) até o ministro Mendonça Filho (governo Michel Temer), com
o devido destaque à gestão de Fernando Haddad (governos Lula 1 e 2). Precisou lidar
com gestões erráticas e diversionistas entre 2019 e 2022, mas desde o início de
2023 tem um ministro (Camilo Santana) com reconhecida experiência e bons
resultados – na rede municipal de Sobral e na rede estadual do Ceará. Graças
aos pisos constitucionais e ao empenho de alguns gestores, o País ainda viu
avançar seus patamares de investimento, inclusive na educação básica, que ainda
padece ante a escolha nacional de dar, proporcionalmente, mais recursos para o
ensino superior. Há boas experiências que se espalham pelo Brasil, entre
exemplos no ensino integral, gestão escolar, qualidade da aprendizagem ou
articulação entre Estados e municípios.
São, porém, uma soma de exceções, e não deixa
de ser um espanto se resumirem a exceções, e não à regra, num país cujas
lideranças políticas não hesitam em dizer, como fez o presidente Lula, que a
educação é o passaporte mais confiável para o Brasil conquistar um lugar no
futuro. O País continua ocupando algumas das piores posições em rankings
globais de aprendizagem, a despeito de boas iniciativas entre os anos 1990,
2000 e 2010, e da preocupação da atual gestão do MEC com áreas como educação
integral e alfabetização.
Agora se constata que, mesmo após mais de cem
dias de atraso, o novo Plano Nacional de Educação (PNE) ainda precisa do aval
da Casa Civil e do Ministério do Planejamento, atraso que faz com que ganhe
força no Congresso a prorrogação das atuais metas até o fim de 2025. O atual
PNE foi aprovado em 2014 depois de quatro anos de debates e vence no próximo
dia 24 de junho. É composto por uma série de metas desde a educação básica até
a pós-graduação, entre as quais universalizar a pré-escola e garantir pelo menos
25% das matrículas da educação básica em tempo integral. Das suas 20 metas,
porém, apenas 4 foram parcialmente cumpridas. É muito pouco para um país que,
no discurso de muitos, tem a educação como prioridade nacional. E um paradoxo
que só alimenta o mesmo clamor e a mesma indignação que se repetem ao longo da
história.
Aliança de delinquentes
O Estado de S. Paulo
Aproximação de Rússia e Coreia do Norte
amplia incertezas e insegurança global
Após a visita do ditador Kim Jong-un à Rússia
em 2023, Vladimir Putin retribuiu a gentileza e viajou, pela primeira vez em 24
anos, à Coreia do Norte. Os frutos imediatos são mais munição para Moscou em
troca de um arremedo de legitimidade para o tirano mais isolado do mundo. Há
mais coisas no escambo. Os dois anunciaram uma “parceria estratégica ampla”,
cujos detalhes são desconhecidos. Mas, apesar das declarações de Putin sobre os
laços históricos dos dois países e das juras de Kim por um “relacionamento inquebrantável
de companheiros de armas”, a profundidade dessa parceria tem limites, e China e
Coreia do Sul não deixarão de enfatizá-los.
Uma das poucas coisas que Pyongyang tem em
abundância são granadas e mísseis a granel para municiar a guerra de atrito da
Rússia na Ucrânia. Moscou expandiu as exportações de combustíveis e alimentos à
Coreia do Norte, que ademais serve a Putin como laboratório para testar
mecanismos para burlar sanções e sabotar instituições multilaterais. O risco
maior e mais opaco é a transferência de tecnologias militares russas ligadas a
satélites, submarinos, foguetes hipersônicos e, sobretudo, arsenais nucleares.
No minueto coreografado dos párias, não
poderiam faltar elucubrações sobre a “luta sagrada”, como Kim gosta de dizer,
contra o “imperialismo” ocidental. Putin publicou um ensaio no jornal estatal
norte-coreano culpando as nações ocidentais pela guerra e invocando uma
arquitetura de segurança para a Eurásia.
Mas essa arquitetura deve ficar em boa parte
no papel, e seus fundamentos não são tão sólidos quanto os dois querem fazer
crer. O Kremlin não tem interesse em fortalecer as capacidades nucleares da
Coreia do Norte. A ameaça de transferência de tecnologias parece ser só isso,
uma ameaça, desenhada para dissuadir a Coreia do Sul de enviar armas à Ucrânia
e conquistar de Kim as armas que Moscou precisa enquanto recompõe sua produção
doméstica. A Coreia do Sul sempre será um parceiro econômico mais atrativo e pode
responder fogo com fogo, ameaçando com mais apoio à Ucrânia.
E há, claro, os interesses ambivalentes da
China. Numa cúpula recente com Coreia do Sul e Japão, Pequim endossou uma
proposta de desnuclearização da península coreana. O pacto entre Putin e Kim
vem num momento tenso entre as duas Coreias, após ambas abandonarem um acordo
de 2018 desenhado para reduzir hostilidades. A propósito desse pacto, como
disse Fyodor Tertiskiy, da Universidade Kookmin, “não é uma relação bilateral –
o grande irmão em Pequim está sempre de olho”.
À China interessa o prolongamento da guerra
na Europa, mas não sua escalada; interessa a sustentação do regime de Kim, mas
não seu empoderamento; interessa o confronto com o Ocidente, mas não a
percepção de que ela compõe um “bloco” ou “eixo” com Rússia e Coreia do Norte.
Nem por isso o Ocidente pode negligenciar a necessidade de fortalecer parcerias no Pacífico e explorar as dissensões entre os “amigos” autocratas. Os dois parecem cada vez mais desesperados, isolados e acuados. Mas tudo isso os torna mais, não menos perigosos.
Técnicas e arte dos povos originários
Correio Braziliense
Os saberes dos antepassados, somados aos dos
atuais grandes líderes, poderiam orientar mudanças no comportamento dos brancos
no relacionamento com o patrimônio natural, uma riqueza brasileira invejada por
muitas nações
As tensões entre os povos indígenas e os
colonizadores existem desde o início do século 16. Os primeiros a chegar foram
os portugueses, seguidos de holandeses, alemães e italianos. Passados mais de
500 anos, os embates não deixam de existir, não só no Brasil, como em vários
outros países latino-americanos. “A disputa pelo território está na base desse
conflito”, garante o ambientalista e escritor Ailton Krenak. Os colonizadores
olharam os povos originários sem considerar a capacidade deles de viver em meio
a biomas tão diversos com conhecimento e tecnologia. Ganharam terreno e, agora,
mais do que nunca, se veem diante de uma crise climática que tensiona a
necessidade de estabelecer uma relação mais harmoniosa com o meio ambiente,
como faziam os “selvagens”.
Krenak atribuiu os embates ao fato de o
Brasil e outros países não terem criado um mecanismo de “integração entre os
povos”, na entrevista à jornalista Samanta Sallum (Brasília não acolhe os povos
indígenas, Correio Braziliense, edição de 16/6, pág.6). Ele é o primeiro
indígena a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL) e a conquistar a
cadeira nº 5, antes ocupada pelo historiador José Murilo de Carvalho, morto em
2023, pela escritora Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na ABL,
em 1977, e pelo médico Oswaldo Cruz. Em meio a renomados escritores, juristas e
artistas, pretende inserir no acervo dos imortais a literatura e a oralidade
dos povos indígenas, por meio das histórias contadas há mais de 2 mil anos pelos
povos originários.
Igualmente aos descendentes dos
colonizadores, os povos da floresta têm histórias para contar e, com elas,
ensinar suas tecnologias e técnicas, conquistadas na relação cotidiana e
respeitosa com o meio ambiente e longe de serem um usufruto predador da natureza.
Os saberes dos antepassados, somados aos dos atuais grandes líderes, poderiam
orientar mudanças no comportamento dos brancos no relacionamento com o
patrimônio natural, uma riqueza brasileira invejada por muitas nações.
Muitos grupos foram dizimados pelos
adversários ao longo de vários períodos da história do Brasil. A resistência
dos povos originários não cedeu. As estratégias de luta mudaram. Hoje, na
maioria das aldeias indígenas, há homens e mulheres com formação universitária,
em diferentes níveis e profissões. Conseguiram vencer as barreiras ao aprender
como lidar com a miscigenada sociedade brasileira e, assim, construíram
mecanismos de defesa e reação às agressões.
No Brasil, reconhecido como um dos maiores
produtores de grãos do mundo, os indígenas foram os primeiros a implantar o
sistema agrofloresta na Amazônia, uma tecnologia que assegura o cultivo de
alimentos, sem agredir as espécies nativas dos ecossistemas. No campo da
cultura e da arte, deram importantes contribuições por meio de muitos
instrumentos de sopro, como as flautas nativas e apitos, os chocalhos e
diferentes ritmos percussivos, como os tambores. A arte plumária e a cerâmica
dos indígenas, pelas suas técnicas e beleza, têm reconhecimento internacional.
Mas há muitas barreiras e desinteresse dos grandes grupos econômicos e dos sucessivos governos em reconhecer que os povos originários têm sabedoria para repassar aos grupos hegemônicos da sociedade. Os racismos étnico-racial e ambiental contribuem para essa discriminação e depreciação dos grupos indígenas. Ninguém indaga como esses povos sobrevivem a ataques constantes há mais de cinco séculos. A maioria deles sem acesso aos avanços da medicina, da ciência e da tecnologia revolucionária que permite o encontro de pessoas numa pequena telinha do telefone ainda que estejam em diferentes continentes. Uma integração de saberes entre os povos originários, tradicionais e os descendentes de várias outras etnias que aqui chegaram, poderia somar boas “Ideias para adiar o fim do mundo”
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