quinta-feira, 20 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Legislação sobre pesquisa eleitoral é um equívoco

O Globo

Falta lastro científico e sobra oportunismo à proposta que tramita no Senado

O Projeto de Lei do novo Código Eleitoral que tramita no Senado prevê a divulgação de pesquisas de intenção de voto acompanhadas de um insólito “indicador de confiabilidade”, elaborado pela Justiça Eleitoral. Trata-se da mais nova versão da “taxa de acerto” sugerida por parlamentares às vésperas da última eleição, em 2022. Como naquela época, a proposta atual também é descabida.

Pesquisas eleitorais não são prognósticos. São retratos de um momento e devem ser analisadas levando em conta as leis estatísticas que regem levantamentos por amostragem. Dentro de condições ideais de coleta da amostra, elas garantem que o resultado reflete a realidade de certa população com determinada probabilidade, dentro de uma margem de erro. Por definição, não têm como “acertar” ou “errar” o que acontecerá no dia da eleição. Intenção de voto é uma coisa. Outra, bem diferente, é o comportamento na urna.

Num mundo de informação veloz e abundante, a decisão do eleitor tem sido volátil no planeta inteiro. Muitos mudam de ideia a caminho do local de votação. Contingente nada desprezível desiste de votar, e estimar a abstenção é um desafio para os institutos. A divergência com o resultado na urna não significa que as pesquisas estejam “erradas”. Nem que não tenham o papel relevante de informar o eleitorado sobre o quadro eleitoral daquele momento. Por vezes, é o resultado de uma pesquisa que estimula o eleitor para que vote e tente reverter a situação.

A iniciativa no Congresso reflete apenas o oportunismo de políticos que se julgam prejudicados por elas. Na versão original aprovada na Câmara, o projeto previa a divulgação de uma “taxa de acerto” das pesquisas nos cinco pleitos anteriores. No Senado, o relator Marcelo Castro (MDB-PI) trocou a expressão por “indicador de confiabilidade”. Ele defende que os institutos também informem os resultados das últimas três pesquisas estimuladas do candidato eleito no pleito anterior. É uma exigência sem lastro no conhecimento científico. Desconhece-se país que imponha requisito semelhante, diz Natallia Lima, consultora da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep). Isso tem razão de ser. Além de inócua, a regra confundiria o eleitor com informações inúteis, nomes que nada têm a ver com a eleição.

Nada disso significa que pesquisas eleitorais sejam imunes a problemas. Mas o Legislativo pouco tem a contribuir para aperfeiçoá-las. O esforço deve ser resultado de estudos sérios que detectem suas deficiências diante da realidade, não de noções sem lastro na ciência. A maioria dos institutos admite que precisa estimar melhor a abstenção, calibrar as amostras para que sejam mais fidedignas (sem superestimar o voto em segmentos de preferências definidas) e filtrar o “voto envergonhado” de quem resiste a responder.

Os próprios institutos têm se encarregado de promover mudanças para dar conta dessas limitações. Quanto melhor for o levantamento, mais relevante será. A situação, porém, está longe de preocupante. Apesar da gritaria no Congresso, todos os candidatos a cargo majoritário no Brasil costumam contratar pesquisas para definir estratégias de campanha. Não poderia haver sinal mais eloquente de que, no fundo, acreditam nessa ferramenta imprescindível para medir os humores do eleitorado.

Não faz sentido demora para pagar indenizações pela tragédia de Mariana

O Globo

Nove anos depois de rompimento da barragem, empresas ainda protelam acordo com autoridades

Passados nove anos do rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco em Mariana (MG)Vale e BHP, controladoras da empresa, continuam a retardar um acordo final de indenização pelo maior acidente ambiental do país. O rompimento da barragem do Fundão arrasou distritos inteiros, como Paracatu de Baixo, Bento Rodrigues ou Gesteira, matou 19 pessoas e contaminou o Rio Doce até a foz no Espírito Santo. A tragédia afetou toda a população de cidades ribeirinhas. Para evitar a contaminação por metais, foi preciso evitar consumir os peixes e a água do rio. Mas isso é praticamente impossível de controlar por tanto tempo. As sequelas, portanto, persistem até hoje.

É inconcebível que, passados nove anos de um desastre ambiental de tal dimensão, sem que haja nenhuma dúvida sobre os responsáveis, continue difícil concluir o pagamento de todas as indenizações. Parece não haver interesse num acordo final.

Na negociação com autoridades federais, estaduais e com o Ministério Público, as empresas acabam de oferecer R$ 140 bilhões, incluindo R$ 37 bilhões já gastos e R$ 21 bilhões reservados para a recuperação da Bacia do Rio Doce. São R$ 82 bilhões em dinheiro novo, ainda assim bem menos que os R$ 109 bilhões reivindicados pelo poder público. Essa diferença já foi maior. No final do ano passado, as empresas acenaram com apenas R$ 42 bilhões, enquanto o poder público pedia R$ 126 bilhões.

Em princípio, um acordo em torno desses valores é melhor que a judicialização. Afinal, nunca se sabe quando um processo com tantos interesses envolvidos chegará ao fim. Numa ação julgada em primeira instância na Justiça Federal, Vale, BHP e Samarco foram condenadas a pagar R$ 47,6 bilhões por danos morais coletivos. Mas só depois da decisão da última instância, que poderá vir do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, se estiverem em questão princípios constitucionais. As empresas sabem disso e jogam com o tempo para adiar qualquer pagamento.

Haverá quem considere tudo normal, parte de qualquer divergência que justifique uma disputa judicial. A questão é que se trata de desastre ambiental com responsabilidades bem definidas e grande impacto na renda e na saúde de toda uma população. Na melhor das hipóteses, se houver acordo em breve e as indenizações restantes forem pagas em até 12 anos, como se prevê, tudo estará encerrado apenas duas décadas depois da tragédia. Mas os efeitos no organismo de quem foi contaminado pelos metais da lama de minério de ferro que desceu o Rio Doce até o Atlântico podem durar para sempre.

Milei tem vitórias na economia e patina na negociação política

Valor Econômico

Milei precisará de apoio firme no Congresso e fora dele, porque não é possível manter o ferrolho de emergência nos gastos por muito tempo

O presidente Javier Milei fez da Argentina uma economia de guerra para debelar uma inflação de 290%. Desde que assumiu, em 10 de dezembro de 2023, eliminou drasticamente subsídios, reduziu o funcionalismo público, interrompeu investimentos estatais e cortou as transferências para as províncias. A receita radical fez o governo obter superávit primário de 0,2% do PIB, pequeno, mas o primeiro em 16 anos. Milei chegou à Casa Rosada com uma inflação mensal de 25% e em maio ela foi de 4,2%. Apesar disso, em seus seis primeiros meses de governo, não conseguiu concluir nenhum de seus projetos. Com concessões, no entanto, está prestes a obter aval do Congresso para ter as mãos livres para agir em matérias econômicas, financeiras, administrativas e de energia, e também para seu pacote de leis de reformas - falta a votação final na Câmara, após dura batalha para vencer a oposição no Senado.

Os bons números exibidos até agora têm seu exato contraponto na redução dos salários, do crescimento e do padrão de vida dos argentinos. Apesar de uma recessão forte, a maior vitória de Javier Milei tem sido a manutenção de sua popularidade, entre 47% e 50%, pouco menor do que tinha quando tomou posse. Os protestos crescentes da oposição peronista e dos sindicatos não foram suficientes ainda para abalar seu prestígio, ancorado em parte na esperança dos argentinos de que a disparada da inflação será refreada e dias melhores aguardam a economia do país.

Como resultado das políticas de Milei, a economia terá uma recessão mais profunda do que a projetada, de - 3,5%, ante -2,75% anteriormente. Entre dezembro e março, os salários recuaram 17% e foram os mais baixos desde 2019. Os empregos no setor privado não param de cair e voltaram ao mesmo nível de 2015. Em contraste, o superávit primário prometido nas negociações com o FMI supera as expectativas, mesmo que a meta seja considerada extravagante: um ajuste de 5 pontos percentuais do PIB (US$ 31 bilhões). A maior parte do ajuste recaiu sobre redução dos subsídios, zeragem dos repasses para as províncias e dos investimentos estatais, pelo lado das despesas. Pelo lado das receitas, contribuíram o imposto sobre importações e o avanço das exportações agrícolas, que foi vigoroso após uma das maiores secas da história do país.

O governo estancou o financiamento monetário das despesas do Estado pelo Banco Central, uma das principais fontes da inflação. Uma virada de US$ 15 bilhões entre dezembro e abril na balança comercial tornou as reservas internacionais líquidas, as de fato disponíveis de imediato de negativas (- US$ 11 bilhões) em positivas (US$ 300 milhões). As reservas brutas subiram de US$ 21,1 bilhões em dezembro para US$ 29,2 bilhões.

O pacote fiscal que tortuosamente está passando pelo crivo do Congresso coloca ênfase no ajuste do Imposto de Renda, que foi vetado. Mas foi aprovada a repatriação sem imposto de dinheiro não declarado de até US$ 100 mil, com taxação acima desse limite, medida com a qual se espera angariar 0,3% do PIB. Impostos sobre dividendos devem render mais 0,2% do PIB e cortes de subsídios, 0,7%. O governo argentino prometeu ao FMI mais impostos e tarifas se seu pacote fiscal for insuficiente em relação às expectativas iniciais.

Na oitava revisão do acordo, o FMI louvou as conquistas de Milei, mas advertiu que o governo tem pela frente uma “difícil rota de ajuste”. Para contornar os obstáculos, o Fundo recomendou buscar mais apoio político e social para as reformas que estão sendo feitas, assim como aumentar a assistência social aos mais pobres. O Fundo constata que a demora em conseguir aprovação legislativa para as reformas aumentou os riscos de insucesso.

O cenário externo pode se tornar menos favorável e a recessão, acabar se prolongado, alimentando tensões sociais e dificultando a execução das políticas desejadas. Para o FMI, a demora de aprovação das medidas necessárias pode fazer naufragar os esforços de estabilização e requerer duras medidas adicionais. “O caminho para a estabilização macroeconômica continua altamente incerto”, diz o relatório do FMI sobre o país.

Os maiores problemas de Milei são sua incapacidade de negociação política e sua agressividade em relação aos partidos de oposição, que são maioria, enquanto os governistas de sua legenda são ínfima minoria. Seu governo está aprendendo aos trancos e barrancos a arte da conciliação, reforçada agora pela ascensão à chefia de gabinete do presidente do veterano Guillermo Francos, com largo trânsito entre todas as forças políticas, inclusive o peronismo.

Milei precisará de apoio firme no Congresso e fora dele, porque não é possível manter o ferrolho de emergência nos gastos por muito tempo. Se não houver a normalização da economia, e uma perspectiva de crescimento, seu capital político se esvairá e, junto com ele, seu programa de reformas. Seu populismo direitista não é visto ainda como uma ameaça às instituições democráticas e entrará no rol das excentricidades se ele conseguir retirar a Argentina de sua enorme e duradoura crise. É o que esperam dele os argentinos.

Deputados dão de ombros para as leis

Folha de S. Paulo

Arthur Lira desengaveta PEC da Anistia, que concede perdão a inúmeras irregularidades praticadas por partidos políticos

Como se o país não tivesse problemas importantes a tratar; como se não houvesse restrições orçamentárias; como se parlamentares pudessem ignorar a sociedade; como se eles fossem imunes às leis, os deputados federais movimentam-se em prol da chamada PEC da Anistia, que vem a ser uma imoralidade do começo ao fim.

Não há maneira melhor de definir a proposta de emenda à Constituição 9/2023, desengavetada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), após reunião com líderes partidários. O que se pretende é conceder o maior perdão da história a irregularidades cometidas por agremiações políticas.

É difícil aquilatar com exatidão o impacto financeiro da medida porque seus termos estão em debate. Muito mudou entre o texto original, de março do ano passado, e a versão informal que passou a circular nos bastidores do Congresso.

O espírito da iniciativa, de todo modo, manteve-se inalterado. Se depender dos deputados, ficarão impunes todas as ilegalidades praticadas por partidos políticos em relação às cotas eleitorais para negros e mulheres —cotas que, vale ressaltar, foram aprovadas pelos próprios parlamentares.

Além disso, se a PEC prosperar, as siglas serão beneficiadas com um generoso refinanciamento de dívidas e uma magnânima imunidade tributária, capaz de alcançar até juros, multas e condenações em processos administrativos ou judiciais do presente ou do passado.

Para imaginar o tamanho das cifras que poderão ser abonadas, basta ter em mente que os partidos desfrutam de fundos que somaram R$ 6 bilhões apenas em 2022. Mesmo ano, aliás, em que dirigentes do Pros, hoje incorporado ao Solidariedade, teriam desviado R$ 36 milhões, de acordo com investigações da Polícia Federal.

Causa ainda mais consternação saber que o mesmo Lira patrocina a votação de um projeto destinado a esterilizar as delações premiadas, uma ferramenta jurídica que, embora tenha servido a abusos condenáveis, provou seu valor para destrinchar a atuação de sofisticadas organizações criminosas.

Por que a Câmara demonstra tamanha inclinação a favorecer desmandos? E por que tolera o descumprimento em série de regras eleitorais? Seriam todos esses exemplos de abjeta legislação em causa própria?

Seja qual for a resposta, a Câmara adicionou pusilanimidade ao quadro, pois parece disposta a se acertar antes com o Senado, evitando o desgaste de votar matéria que seria derrubada depois.

Que os senadores respondam, então, se defendem os interesses da sociedade ou os dos fora da lei —pois os deputados já indicaram de que lado estão.

Consulta perigosa

Folha de S. Paulo

Se AGU atuar como fiscal de campanha, pode vir a desequilibrar as eleições

A Advocacia-Geral da União (AGU) enviou ao Tribunal Superior Eleitoral uma consulta, questionando se é competência da Justiça Eleitoral julgar ações que visem a restringir ou remover propagandas de candidatos ou partidos com desinformação "sobre política pública federal, de interesse da União".

Embora o intuito possa ter sido apenas dirimir uma dúvida jurídica, o palavreado usado sugere que o órgão esteja atrás do aval da corte para atuar contra as chamadas fake news em eleições. E isso seria preocupante por mais de uma razão.

A AGU, apesar de ter missão de Estado, é próxima demais ao governo de turno. Seu chefe tem status similar ao de ministro, sendo demissível pelo presidente —a exoneração do procurador-geral da República, por exemplo, depende de permissão do Senado.

Autorizar a AGU a atuar como fiscal de propaganda eleitoral, portanto, tende a criar disparidade de forças entre candidaturas.

Um postulante ligado ao governo teria, além de sua equipe jurídica, o reforço do órgão federal para atuar contra campanhas que, em seu entender, tragam desinformação sobre políticas públicas —um conceito vago o bastante para englobar praticamente qualquer ação de uma administração.

Ademais, pode-se criar um efeito cascata em estados e municípios, cujas procuradorias teriam sinal verde para zelar pela gestão de seus chefes. Em locais onde estruturas de campanha são mais modestas, o desequilíbrio pode ser fator decisivo para o resultado do pleito.

A Justiça Eleitoral existe para resolver disputas entre candidatos e partidos. Interesses difusos podem ser considerados, mas a critério do Ministério Público. Alargar suas competências, com decisões que são tomadas em rito sumário, é temerário.

Toda eleição é em essência uma discussão sobre políticas públicas, que, por óbvio, deve ser baseada em fatos. Seria ingênuo, contudo, achar que seja sempre esse o caso.

É preciso combater a desinformação mas também estar atento ao risco de, a pretexto de restabelecer a verdade, interditar o debate público, fundamental em qualquer democracia liberal.

Um país em guerra contra seus jovens

O Estado de S. Paulo

‘Atlas da Violência’ reafirma o fracasso brasileiro na proteção de crianças e jovens e mostra que é preciso mais compromisso e ação onde hoje há indignação de alguns e indiferença de muitos

A nova edição do Atlas da Violência – produzido anualmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – traz dados estarrecedores que escancaram o fracasso brasileiro na proteção da vida de crianças e jovens. Com dados referentes a 2022, descobre-se que praticamente metade (49,2%) dos 46,4 mil homicídios registrados no Brasil teve como vítimas pessoas entre 15 e 29 anos. Naquele ano, de cada cem mortes de jovens, um terço (34) se deu por homicídio – e grande parte deles por arma de fogo. Visto de outra forma, a cada dia, 62 jovens foram assassinados no País. Em dez anos, foram mais de 321 mil vítimas de violência letal, a maioria homens negros.

O Atlas também mapeou a extensão dos casos de violência sexual. Meninas até 14 anos são, proporcionalmente, as maiores vítimas de agressão sexual, uma das formas mais comuns de violência doméstica e familiar. Dito com outras palavras, quase metade (49,6%) da violência contra meninas de 10 a 14 anos tem caráter sexual. Seis em cada dez vítimas têm no máximo 13 anos. São números obtidos com base nos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, criado pelo Ministério da Saúde para notificar, compulsoriamente, qualquer caso suspeito ou confirmado de diferentes formas de violência, como doméstica/intrafamiliar e sexual, e contra mulheres e homens de todas as idades. Isso significa admitir que o levantamento é composto apenas pelos casos oficialmente registrados – e não há razão para duvidar que a realidade é ainda pior do que os números publicados.

Pouca gente há de questionar a premissa de que o Brasil vem falhando na proteção de crianças e adolescentes, não só nos efeitos da violência, mas também no cuidado da educação básica, sem o que é impossível imaginar um futuro minimamente digno para eles. Com incômoda frequência, no entanto, a divulgação de números e balanços, como esses expostos no Atlas, ajuda a dar contornos ainda mais dramáticos a uma realidade perturbadora – e que muitos acabam ignorando ou deixando em segundo plano diante de outras mazelas. Há um círculo vicioso do qual precisamos escapar: a falta de preparo do jovem leva-o ao desemprego e subemprego; a falta de ocupação e perspectivas leva-o ao desespero; a falta de esperança leva-o à droga e à captura pelo crime organizado. E assim se fecha um ciclo de miséria, delinquência e violência que condena o presente e o futuro de boa parte do País.

É como se o Brasil estivesse numa guerra, situação em que jovens soldados são enviados para matar e morrer, mas a guerra que vitima os jovens brasileiros é do País consigo mesmo. A título de comparação, os EUA perderam 58 mil soldados em 20 anos de Guerra do Vietnã. Ou seja, no Brasil ocorreram cinco guerras do Vietnã em uma década.

Ademais, como afirmou Samira Bueno, uma das coordenadoras do Atlas, são os jovens a mão de obra preferencial do crime organizado. Uma vez aliciados pelo mundo do crime, evadem da escola muito cedo e não veem oportunidades senão na engenharia das organizações criminosas.

Se há cooptação sobre os jovens meninos, há muito mais do que coação sobre as meninas. Os números do Atlas são confirmados por outras pesquisas, como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado também pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, segundo o qual houve 75 mil estupros em 2023. O perfil demográfico das vítimas diz muito sobre nossas iniquidades e sobre nossa miséria moral e institucional: 88,7% são mulheres, 61,4% são menores de 14 anos e 10,4% têm menos de quatro anos de idade. Na maioria dos casos seus algozes são familiares.

Por vezes os números não dão conta da dramaticidade do mundo real e de suas histórias. Mas são fundamentais para dar a dimensão do problema e produzir gritos de alerta, de modo que o País reaja com o devido vigor. Não está escrito nas estrelas, porém, que tais números se manterão assim, como se não houvesse caminho alternativo para dar algum alento à grande maioria das crianças e dos jovens brasileiros. Mas mudá-los vai requerer muito mais compromisso e ação do que a indignação de alguns e a indiferença de muitos.

A prioridade que fica só no discurso

O Estado de S. Paulo

Lula assegura que a educação fará o Brasil ser um país rico. Há muito tempo, porém, a educação é citada como prioridade nacional sem que isso se converta em boas práticas generalizadas

É com educação que o Brasil será um país de Primeiro Mundo, disse, entusiasmado, o presidente Lula da Silva. Ao anunciar na semana passada o que mais gosta – obras e vagas no ensino superior, de preferência empacotando, com verniz de novidade, recursos e projetos já previstos anteriormente –, Lula ecoou o que se ouve há muito tempo: em palavras, poucos países ostentam clamor e indignação tão veementes em favor da educação como o nosso; na prática, porém, as palavras são outras. Ano após ano, eleição após eleição, governo após governo, a história se repete, e o que deveria resultar em prioridade nacional e em boas práticas generalizadas não medra no terreno infecundo da demagogia, restando festejar os poucos casos de sucesso que são só ilhas de excelência num mar de incompetência. Se essa obsessão educacional se convertesse em prática, teríamos uma educação de país desenvolvido.

Quem, afinal, ainda precisaria ser convencido de que a educação é a base de tudo, de que sem um ensino básico de qualidade jamais alcançaremos nossos objetivos de acelerar o desenvolvimento socioeconômico, ampliar a cidadania e reduzir as desigualdades? Quem ainda tem dúvida de que as deficiências na formação de capital humano prejudicam enormemente nossas perspectivas no complexo e competitivo jogo internacional? De Rui Barbosa a Manoel Bonfim, na República Velha, às qualificadas organizações da sociedade civil dedicadas atualmente ao tema, passando por Hélio Jaguaribe, Mario Henrique Simonsen e muitos outros especialistas acadêmicos do pós-guerra até hoje, é longa e ideologicamente variada a lista de entusiastas. Ainda assim, não embarcamos no mesmo bonde no qual seguiram países como Finlândia, Coreia e Cingapura – para citar alguns com patamar semelhante ao do Brasil décadas atrás.

Das promessas do passado ao gogó presidencial do presente, parece haver um enorme abismo que separa o falar e o fazer. Essa constatação não significa dizer que a educação brasileira é uma espécie de terra arrasada. Longe disso. O Brasil passou por uma sequência de políticas de base lideradas pelo Ministério da Educação (MEC) a partir do ministro Paulo Renato (governos FHC) até o ministro Mendonça Filho (governo Michel Temer), com o devido destaque à gestão de Fernando Haddad (governos Lula 1 e 2). Precisou lidar com gestões erráticas e diversionistas entre 2019 e 2022, mas desde o início de 2023 tem um ministro (Camilo Santana) com reconhecida experiência e bons resultados – na rede municipal de Sobral e na rede estadual do Ceará. Graças aos pisos constitucionais e ao empenho de alguns gestores, o País ainda viu avançar seus patamares de investimento, inclusive na educação básica, que ainda padece ante a escolha nacional de dar, proporcionalmente, mais recursos para o ensino superior. Há boas experiências que se espalham pelo Brasil, entre exemplos no ensino integral, gestão escolar, qualidade da aprendizagem ou articulação entre Estados e municípios.

São, porém, uma soma de exceções, e não deixa de ser um espanto se resumirem a exceções, e não à regra, num país cujas lideranças políticas não hesitam em dizer, como fez o presidente Lula, que a educação é o passaporte mais confiável para o Brasil conquistar um lugar no futuro. O País continua ocupando algumas das piores posições em rankings globais de aprendizagem, a despeito de boas iniciativas entre os anos 1990, 2000 e 2010, e da preocupação da atual gestão do MEC com áreas como educação integral e alfabetização.

Agora se constata que, mesmo após mais de cem dias de atraso, o novo Plano Nacional de Educação (PNE) ainda precisa do aval da Casa Civil e do Ministério do Planejamento, atraso que faz com que ganhe força no Congresso a prorrogação das atuais metas até o fim de 2025. O atual PNE foi aprovado em 2014 depois de quatro anos de debates e vence no próximo dia 24 de junho. É composto por uma série de metas desde a educação básica até a pós-graduação, entre as quais universalizar a pré-escola e garantir pelo menos 25% das matrículas da educação básica em tempo integral. Das suas 20 metas, porém, apenas 4 foram parcialmente cumpridas. É muito pouco para um país que, no discurso de muitos, tem a educação como prioridade nacional. E um paradoxo que só alimenta o mesmo clamor e a mesma indignação que se repetem ao longo da história.

Aliança de delinquentes

O Estado de S. Paulo

Aproximação de Rússia e Coreia do Norte amplia incertezas e insegurança global

Após a visita do ditador Kim Jong-un à Rússia em 2023, Vladimir Putin retribuiu a gentileza e viajou, pela primeira vez em 24 anos, à Coreia do Norte. Os frutos imediatos são mais munição para Moscou em troca de um arremedo de legitimidade para o tirano mais isolado do mundo. Há mais coisas no escambo. Os dois anunciaram uma “parceria estratégica ampla”, cujos detalhes são desconhecidos. Mas, apesar das declarações de Putin sobre os laços históricos dos dois países e das juras de Kim por um “relacionamento inquebrantável de companheiros de armas”, a profundidade dessa parceria tem limites, e China e Coreia do Sul não deixarão de enfatizá-los.

Uma das poucas coisas que Pyongyang tem em abundância são granadas e mísseis a granel para municiar a guerra de atrito da Rússia na Ucrânia. Moscou expandiu as exportações de combustíveis e alimentos à Coreia do Norte, que ademais serve a Putin como laboratório para testar mecanismos para burlar sanções e sabotar instituições multilaterais. O risco maior e mais opaco é a transferência de tecnologias militares russas ligadas a satélites, submarinos, foguetes hipersônicos e, sobretudo, arsenais nucleares.

No minueto coreografado dos párias, não poderiam faltar elucubrações sobre a “luta sagrada”, como Kim gosta de dizer, contra o “imperialismo” ocidental. Putin publicou um ensaio no jornal estatal norte-coreano culpando as nações ocidentais pela guerra e invocando uma arquitetura de segurança para a Eurásia.

Mas essa arquitetura deve ficar em boa parte no papel, e seus fundamentos não são tão sólidos quanto os dois querem fazer crer. O Kremlin não tem interesse em fortalecer as capacidades nucleares da Coreia do Norte. A ameaça de transferência de tecnologias parece ser só isso, uma ameaça, desenhada para dissuadir a Coreia do Sul de enviar armas à Ucrânia e conquistar de Kim as armas que Moscou precisa enquanto recompõe sua produção doméstica. A Coreia do Sul sempre será um parceiro econômico mais atrativo e pode responder fogo com fogo, ameaçando com mais apoio à Ucrânia.

E há, claro, os interesses ambivalentes da China. Numa cúpula recente com Coreia do Sul e Japão, Pequim endossou uma proposta de desnuclearização da península coreana. O pacto entre Putin e Kim vem num momento tenso entre as duas Coreias, após ambas abandonarem um acordo de 2018 desenhado para reduzir hostilidades. A propósito desse pacto, como disse Fyodor Tertiskiy, da Universidade Kookmin, “não é uma relação bilateral – o grande irmão em Pequim está sempre de olho”.

À China interessa o prolongamento da guerra na Europa, mas não sua escalada; interessa a sustentação do regime de Kim, mas não seu empoderamento; interessa o confronto com o Ocidente, mas não a percepção de que ela compõe um “bloco” ou “eixo” com Rússia e Coreia do Norte.

Nem por isso o Ocidente pode negligenciar a necessidade de fortalecer parcerias no Pacífico e explorar as dissensões entre os “amigos” autocratas. Os dois parecem cada vez mais desesperados, isolados e acuados. Mas tudo isso os torna mais, não menos perigosos.

Técnicas e arte dos povos originários

Correio Braziliense

Os saberes dos antepassados, somados aos dos atuais grandes líderes, poderiam orientar mudanças no comportamento dos brancos no relacionamento com o patrimônio natural, uma riqueza brasileira invejada por muitas nações

As tensões entre os povos indígenas e os colonizadores existem desde o início do século 16. Os primeiros a chegar foram os portugueses, seguidos de holandeses, alemães e italianos. Passados mais de 500 anos, os embates não deixam de existir, não só no Brasil, como em vários outros países latino-americanos. “A disputa pelo território está na base desse conflito”, garante o ambientalista e escritor Ailton Krenak. Os colonizadores olharam os povos originários sem considerar a capacidade deles de viver em meio a biomas tão diversos com conhecimento e tecnologia. Ganharam terreno e, agora, mais do que nunca, se veem diante de uma crise climática que tensiona a necessidade de estabelecer uma relação mais harmoniosa com o meio ambiente, como faziam os “selvagens”.

Krenak atribuiu os embates ao fato de o Brasil e outros países não terem criado um mecanismo de “integração entre os povos”, na entrevista à jornalista Samanta Sallum (Brasília não acolhe os povos indígenas, Correio Braziliense, edição de 16/6, pág.6). Ele é o primeiro indígena a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL) e a conquistar a cadeira nº 5, antes ocupada pelo historiador José Murilo de Carvalho, morto em 2023, pela escritora Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na ABL, em 1977, e pelo médico Oswaldo Cruz. Em meio a renomados escritores, juristas e artistas, pretende inserir no acervo dos imortais a literatura e a oralidade dos povos indígenas, por meio das histórias contadas há mais de 2 mil anos pelos povos originários.

Igualmente aos descendentes dos colonizadores, os povos da floresta têm histórias para contar e, com elas, ensinar suas tecnologias e técnicas, conquistadas na relação cotidiana e respeitosa com o meio ambiente e longe de serem um usufruto predador da natureza. Os saberes dos antepassados, somados aos dos atuais grandes líderes, poderiam orientar mudanças no comportamento dos brancos no relacionamento com o patrimônio natural, uma riqueza brasileira invejada por muitas nações.

Muitos grupos foram dizimados pelos adversários ao longo de vários períodos da história do Brasil. A resistência dos povos originários não cedeu. As estratégias de luta mudaram. Hoje, na maioria das aldeias indígenas, há homens e mulheres com formação universitária, em diferentes níveis e profissões. Conseguiram vencer as barreiras ao aprender como lidar com a miscigenada sociedade brasileira e, assim, construíram mecanismos de defesa e reação às agressões.

No Brasil, reconhecido como um dos maiores produtores de grãos do mundo, os indígenas foram os primeiros a implantar o sistema agrofloresta na Amazônia, uma tecnologia que assegura o cultivo de alimentos, sem agredir as espécies nativas dos ecossistemas. No campo da cultura e da arte, deram importantes contribuições por meio de muitos instrumentos de sopro, como as flautas nativas e apitos, os chocalhos e diferentes ritmos percussivos, como os tambores. A arte plumária e a cerâmica dos indígenas, pelas suas técnicas e beleza, têm reconhecimento internacional.

Mas há muitas barreiras e desinteresse dos grandes grupos econômicos e dos sucessivos governos em reconhecer que os povos originários têm sabedoria para repassar aos grupos hegemônicos da sociedade. Os racismos étnico-racial e ambiental contribuem para essa discriminação e depreciação dos grupos indígenas. Ninguém indaga como esses povos sobrevivem a ataques constantes há mais de cinco séculos. A maioria deles sem acesso aos avanços da medicina, da ciência e da tecnologia revolucionária que permite o encontro de pessoas numa pequena telinha do telefone ainda que estejam em diferentes continentes. Uma integração de saberes entre os povos originários, tradicionais e os descendentes de várias outras etnias que aqui chegaram, poderia somar boas “Ideias para adiar o fim do mundo”

 

 

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