segunda-feira, 10 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Deficiência técnica e critérios frouxos emperram INSS

O Globo

Autarquia falha ao processar demandas, enquanto população é incentivada a buscar novos benefícios

Perto de chegar a R$ 1 trilhão de despesas anuais com aposentadorias, pensões e outros benefícios, o INSS se mostra impossível de administrar, tantas as falhas no processamento dos milhões de pedidos. Apenas em abril, 1.397.408 demandas de segurados estavam à espera de resposta da autarquia, ao lado de 1.403.479 recursos administrativos para revisão de aposentadorias e pensões. Responsável por 40% dos gastos primários da União, o INSS não conta com as condições técnicas necessárias para atender a população como deveria e, ao mesmo tempo, tem afrouxado os controles na concessão dos benefícios, um incentivo para mais gente buscá-los.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, O GLOBO mostrou como faz falta um sistema eficiente para digerir a montanha de dados que o INSS recebe diuturnamente. A população envelhece, e a cada dia mais gente preenche os requisitos para pedir aposentadoria. Mas os sistemas e processos da autarquia não evoluem na medida da necessidade. Neste ano, o governo tentou cumprir a promessa de reduzir a extensa fila de pedidos. Houve uma redução pequena (3,4%) nos pedidos iniciais, mas o tempo médio de resposta ainda está em 39 dias. A enorme quantidade de recursos em aberto no mês de abril mostra que a análise deixa a desejar.

O mais grave nessa situação são as falhas no processamento de dados. De janeiro do ano passado a meados de abril, houve 164 interrupções nos sistemas usados pelo INSS. Ao todo, foram 13 dias, 13 horas e 36 minutos em que funcionários da Previdência não puderam trabalhar porque o sistema estava fora do ar. Se algo semelhante ocorresse num setor como bancos ou seguradoras, a gritaria seria imensa. Da burocracia estatal, porém, pouco se espera.

Nesse quase meio mês de paralisação forçada, novos pedidos de benefícios e de revisão de aposentadorias e pensões já concedidas continuaram a chegar. As panes entre 2023 e os meses iniciais deste ano prejudicaram a análise de 3,4 milhões de processos, ou 13,4% dos 25,4 milhões de pedidos analisados. Na média, cada pane nesse período durou dez horas e 53 minutos. Mais que um dia de expediente do servidor do INSS. O Sirc, serviço que concede salário-maternidade, aparece como campeão de defeitos. Ficou 20 dias com problemas no período de quase 16 meses.

Paradoxalmente, houve no ano passado uma onda de concessão de novos benefícios. O crescimento dos aposentados pelo INSS vindos da iniciativa privada foi de 3,4%, maior índice dos últimos dez anos. Durante o ano, o INSS concedeu 5,95 milhões de benefícios, 17,7% acima da média de 2016 a 2022 e 14,4% acima de 2022. Esse salto é atribuído à maior facilidade no trâmite para concessão, dispensando assistentes sociais para avaliar candidatos ao Benefício de Prestação Continuada e adotando um pedido-padrão para auxílio-doença, sem obrigatoriedade de perícia médica ou com perícia remota.

É possível que a tentativa de facilitar a vida do usuário tenha criado brechas para abusos e incentivado a demanda, sem que os sistemas responsáveis pelos gargalos tenham sido modernizados. Os princípios da boa gestão recomendam o contrário: dispor de sistemas de ponta, capazes de processar com agilidade toda sorte de demanda, mas sem dar margem a abusos e distorções. Só assim é possível, ao mesmo tempo, reduzir o desperdício de recursos públicos e dar alguma tranquilidade à população que depende dos benefícios.

É preciso dar mais apoio a mulheres com filhos no mercado de trabalho

O Globo

Brasil não pode desperdiçar potencial das que, contra a vontade, deixam de trabalhar depois da maternidade

Em 2022, 11,1 milhões de mulheres foram obrigadas a deixar o mercado de trabalho para cuidar de filhos recém-nascidos, embora desejassem permanecer ativas, revelou estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP. Se essas mulheres tivessem tido a oportunidade de continuar trabalhando, a força de trabalho teria aumentado em 10%. Num momento em que a população envelhece rapidamente, o Brasil não pode desperdiçar o potencial dessas mulheres que desejam equilibrar a maternidade e a carreira.

As estatísticas revelam disparidade alarmante, com 6,8 milhões (42,1%) das mulheres negras e 4,3 milhões (34,4%) das brancas afastadas da força produtiva devido à maternidade. Em contraste, apenas 5% dos homens enfrentam essa situação. A alocação eficiente da mão de obra feminina é fundamental para impulsionar o crescimento econômico.

Nos Estados Unidos, um estudo calculou em 20% da expansão do PIB americano entre 1970 e 2010 a contribuição dada pela entrada da mulher no mercado de trabalho. “Igualdade de gênero pode gerar ganhos para a economia. A alocação melhor dessa mão de obra potencializa o crescimento e a produtividade, que têm patinado nos últimos anos”, diz a economista Janaína Feijó, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre).

Diversas medidas concretas poderiam apoiar as mulheres que desejam conciliar maternidade e carreira. Um edital da Faperj oferece auxílio a mães cientistas com filhos de até 12 anos de idade. É o tipo de iniciativa que pode ter impacto positivo na retenção e no avanço das mulheres no mercado de trabalho. A implementação de mais creches em tempo integral, a concessão de licença-paternidade e o apoio das empresas também são passos essenciais.

Tem havido, é verdade, avanços notáveis na inclusão da mão de obra feminina. De acordo com dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI), houve desde 2008 crescimento de 57,5% nas mulheres atuando em setores de tecnologia e engenharia. Cargos antes tidos como província quase exclusivamente masculina hoje já reúnem 397 mil mulheres. No entanto ainda há desperdício notável de talento e potencial feminino, especialmente porque as profissionais muitas vezes se veem obrigadas a interromper a carreira depois da maternidade. Nos Estados Unidos, um estudo constatou que 43% das cientistas que haviam acabado de ser mães estavam em trabalhos temporários ou saíram do mercado. No Brasil, não faz sentido pesquisadoras dedicarem anos de trabalho e investimento na própria formação, com bolsas de estudos pagas pelo Estado, para ficarem inativas ao ter filhos.

É preciso criar um ambiente mais inclusivo e favorável às mulheres no mercado de trabalho. A necessidade de apoio, especialmente àquelas que são mães, merece atenção e ação imediata.

Reservas em dólar dão fôlego maior ao país

Folha de S. Paulo

Saldo comercial forte e divisas em caixa evitam crises como as do passado, mas governo não deveria adiar reformas

A eternizada frase de Mário Henrique Simonsen —segundo a qual a inflação aleija, mas o câmbio mata— por muito tempo descreveu um dos grandes fatores impeditivos ao crescimento brasileiro.

Mas o empecilho foi superado na década de 2000, com a acumulação de reservas internacionais (hoje em torno de US$ 351 bilhões), que levou o governo federal a uma posição credora em moeda forte.

Os elevados saldos comerciais tiveram papel essencial naquele momento, com a disparada dos preços de matérias-primas exportadas.

Nos últimos anos, a situação voltou a ser tão ou mais positiva, notadamente nos setores de agropecuária e de extração mineral.

Com isso, o Brasil obteve em 2023 um saldo comercial de US$ 80 bilhões, em ritmo forte que se manteve até maio deste ano. Até aqui, as exportações atingiram US$ 138,8 bilhões, 2,4% acima de 2023, e superaram as importações em US$ 35,9 bilhões, com sólido crescimento do volume enviado ao exterior.

Diante de uma quebra de safra em relação ao ano passado, as vendas do setor agrícola caíram 9,4%, para US$ 31,1 bilhões —o que representa 15,7% dos embarques, ante os 19,6% de 2023. Apenas a soja foi responsável por US$ 21,8 bilhões.

Houve, todavia, aumento na exportação de minério de ferro e petróleo, de 9,3% e 14,3%, respectivamente. Juntos, totalizam 24,2% das receitas no período.

Contudo, mesmo com as vendas liquidas de produtos em alta, o país continua deficitário nas contas de serviços, que incluem remessas de lucros e dividendos, remuneração de propriedade intelectual, transportes e aluguel de equipamentos.

Todos esses itens têm crescido nos últimos anos, de modo que o país continua a ter resultado negativo nas contas agregadas, de US$ 30 bilhões (1,4% do PIB) no ano passado e talvez mais neste ano. O patamar é pequeno, no entanto qualquer virada nos preços de matérias-primas poderá ampliá-lo.

Não se trata de adotar uma visão mercantilista, em que saldos positivos sempre representam sinal de força. Há contextos em que tal relação não se verifica. O problema é que o Brasil segue dependente de poucos produtos e mercados, notadamente a China.

Ainda continua firme a atração de investimentos diretos, mas a insegurança com os rumos da política econômica petista pode ser o fator principal para a saída líquida de US$ 13 bilhões acumulada no ano nas contas de investimentos em carteira e ações.

Com a má gestão local, reservas altas não são garantia de desenvolvimento. É preciso aproveitar a situação de relativo conforto nas contas externas para realizar os ajustes necessários, em especial no Orçamento público.

A cartada da imigração

Folha de S. Paulo

Com controverso decreto que bloqueia fronteira, Biden busca vitória contra Trump

O democrata Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, assinou há poucos dias um decreto para bloquear temporariamente a concessão de refúgio a imigrantes ilegais vindos da fronteira com o México. A medida contradiz a cartilha de seu partido e sua promessa, no primeiro dia na Casa Branca, de garantir cidadania aos indocumentados.

Está em jogo, nesse caso, a eleição presidencial em novembro. Para derrotar Donald Trump, Biden mostra-se disposto a sacrificar suas convicções sobre o tema da imigração e sua coerência política.

O mesmo instrumento do decreto fora usado por Trump ao adotar medidas draconianas em 2017, quando famílias de imigrantes foram separadas, com adultos enjaulados em instalações improvisadas e crianças espalhadas em instituições pelo país.

Em discurso, Biden prometeu que isso não se repetirá. "Eu nunca vou demonizar os imigrantes", afirmou.

Fato é que, na contramão de compromissos internacionais assumidos pelos EUA, negará a estrangeiros o direito de solicitar refúgio ou asilo político.

O decreto prevê o bloqueio da fronteira sul à imigração quando o ingresso de indocumentados superar a média diária de 2.500 pessoas no período de uma semana, e sua suspensão quando a mesma média cair para 1.500. Não há, porém, expectativa de redução do fluxo para tal nível. A medida tende a tornar-se permanente.

Biden contrariou as alas mais liberais de seu partido, mas deve ter considerado que não perderá votos desse eleitorado diante da ameaça de Trump retornar à Casa Branca mesmo na condição de condenado recentemente pela Justiça.

De outro lado, o decreto deve agradar a eleitores independentes incomodados com o fluxo migratório. Atrair esse estrato nos estados onde nem democratas nem republicanos cantam vitória neste momento, como Arizona e Nevada, pode ser crucial para a reeleição.

Não deixa de espantar, de todo modo, o cálculo que reduz o complexo quadro de imigração nos EUA a mera munição eleitoral. Uma jogada que pode ajudar a vitória de Biden nas urnas, mas também macular sua trajetória política.

A política da aversão

O Estado de S. Paulo

Pesquisa revela que o ódio se tornou um dos grandes motivadores para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias. Nessa ambição de eliminar o contraditório, todos perecerão

É lamentável constatar que o ódio tenha se tornado uma grande motivação para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias no País. Uma pesquisa conduzida por cientistas políticos da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade de São Paulo (USP), publicada pelo Estadão no dia 1.º passado, revelou que, entre os filiados a partidos políticos no Brasil, cerca de 70%, nada menos, consideram que a aversão e o ódio a seus adversários políticos, em algum grau, foram fatores relevantes para sua decisão de ingressar numa determinada legenda.

O resultado da pesquisa – de abrangência nacional, realizada com filiados e dirigentes de 32 partidos nos anos de 2020, 2022 e 2023 – partiu de uma arguta curiosidade de seus autores. Eles pretendiam compreender por que, afinal, o número de filiações vem crescendo no País à medida que também cresce um sentimento de descrença em relação não só à política, mas aos políticos em geral. “Descobrimos que o ódio e a rejeição do adversário motivam não só a filiação, mas também são fatores que tornam os filiados ainda mais engajados”, disse ao Estadão o pesquisador Pedro Paulo de Assis, da USP.

Do total de respondentes, 36% disseram que se tornam “altamente engajados” nas atividades de seu partido quando se veem diante da possibilidade de vitória da legenda que mais rejeitam e odeiam. Os pesquisadores classificaram esse comportamento como “engajamento pelo ódio”, que vem à frente de comportamentos políticos tidos como tradicionais, como, por exemplo, a ação motivada pelo desejo de influenciar o processo decisório interno das legendas (32%). Ao menos por enquanto, o “engajamento pelo ódio” só fica atrás do empenho dos filiados pelo triunfo eleitoral de suas próprias siglas (41%).

Isso só acontece porque, há um bom tempo, se estimula no Brasil, mas não só, uma nefasta transfiguração da política. De meio civilizado para a concertação de interesses sociais divergentes, a política passou a ser tratada como uma guerra existencial. Ou, dito de outra forma, um processo de vinculação emocional entre membros de uma tribo, para não dizer seita, que passam a enxergar sua sobrevivência – seja no debate público, seja nas vias de acesso às esferas institucionais de poder – a partir da eliminação política e moral, quando não física, de seus adversários.

Nessa disputa de vida ou morte, os que não comungam das mesmas ideias, aspirações e valores são tratados como inimigos a serem abatidos num campo de batalha. Hoje, felizmente, essa guerra campal é travada no campo simbólico. Sabe-se lá até quando. Ora, isso não é outra coisa senão o fim da política – e, consequentemente, da própria democracia representativa tal como a conhecemos, como o pacto social materializado na Constituição de 1988. Não há, evidentemente, como isso possa dar em bom lugar.

Qualquer sociedade civilizada abraça e encoraja as divergências entre os cidadãos, não as repele, muito menos as desestimula. A política, nesse sentido, exerce um papel central na vida nacional, pois, malgrado a miríade de dissensões que há entre eles, os indivíduos se reconhecem como concidadãos e, nessa condição, buscam alcançar objetivos minimamente comuns. Os partidos sempre foram vistos como os principais organizadores desses interesses em negociação. Agora, ao que parece, tornaram-se grandes usinas de um ódio que, no limite, pode levar à sua extinção como um dos principais mediadores do debate público.

Eis uma grande armadilha. No curtíssimo prazo, essa ação política movida a bile pode até favorecer as legendas por fomentar a filiação partidária, gerar engajamento e, consequentemente, contribuir para um eventual aumento de bancadas federais – o que está diretamente relacionado com o tamanho do quinhão do Orçamento público que os partidos vão receber. Adiante, porém, esse estado de guerra existencial não tem outro destino a não ser o ocaso da política desenvolvida e, a reboque, do valor dos próprios partidos.

Um governo que se recusa a ouvir

O Estado de S. Paulo

Ao decidir importar arroz sem ouvir os produtores, governo cria uma solução equivocada para um problema inexistente, perde dinheiro e expõe natureza centralizadora e populista de suas ações

Sem sucesso, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apelou ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a importação de arroz pelo governo federal. Na ação, a entidade tentava impedir a realização dos leilões públicos para aquisição do produto no exterior e cobrava explicações do Executivo sobre a iniciativa que – supostamente – visava a evitar um desabastecimento em razão das cheias que atingem o Rio Grande do Sul há mais de um mês.

Como se sabe, o ministro André Mendonça não acatou o pedido, e o primeiro leilão ocorreu na última quinta-feira. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) comprou 263 mil toneladas de arroz e, para isso, desembolsou o valor de R$ 1,316 bilhão. O produto deverá ser entregue ao País até 8 de setembro.

Embora não tenha entendido que havia urgência no pedido da CNA, o ministro requereu do governo informações sobre o caso. Era o mínimo. Afinal, ao contrário do que o governo alegava, os sindicatos locais, a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e a própria CNA não viam qualquer risco de desabastecimento que justificasse a compra. A safra gaúcha rendeu 7,1 milhões de toneladas de arroz neste ano, praticamente o mesmo volume colhido no ano anterior, e 84% da produção já havia sido colhida e armazenada antes do início das chuvas.

Nada disso impediu que o Executivo editasse três medidas provisórias, duas portarias interministeriais e uma resolução para autorizar a Conab a adquirir milhões de toneladas de arroz sem Imposto de Importação e vender o produto diretamente nos supermercados, a preços tabelados, subsidiados e em embalagem própria a enaltecer a iniciativa do governo.

Seria o caso de perguntar de onde saiu uma ideia tão equivocada para lidar com uma crise inexistente. Afinal, a União poderá gastar até R$ 7,2 bilhões para viabilizar uma política pública populista, cara e desnecessária, que deve ampliar as perdas dos produtores gaúchos e desestimular o plantio da próxima safra.

A CNA listou uma série de inconstitucionalidades para justificar a suspensão das medidas pelo STF, mas a petição é reveladora sobre a maneira como se deram as decisões do governo. “Os produtores rurais, especialmente os produtores de arroz do Rio Grande do Sul, nunca foram ouvidos no processo de formulação dessa política de importação do cereal”, diz a ação. Ouvir quem entende do assunto e sabe exatamente a dimensão do problema, para o governo, era dispensável.

Antes fosse um problema isolado. O governo adotou conduta semelhante ao endurecer as regras para conteúdo local para bens e serviços na área de petróleo e gás. Embora essa mesma política tenha afastado investidores estrangeiros no passado recente e se mostrado inexequível até mesmo para a Petrobras, o setor soube da decisão por meio de resolução publicada no Diário Oficial.

No setor financeiro, o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) mantém sua marcha inconsequente pelo corte forçado das taxas de juros – tudo isso a despeito dos reiterados alertas dos bancos sobre a elevação do custo de captação dos recursos e dos indícios de redução da oferta de crédito consignado aos aposentados.

Evidências pululam, mas não importam. O governo Lula da Silva tem a convicção de que só ele sabe o que é melhor para o Brasil e de que não precisa discutir suas propostas com os setores diretamente envolvidos e afetados por suas ações. E quando se digna a recebê-los, o governo costumeiramente ignora suas sugestões. Dialogar não é isso.

Subjaz a essas ações uma crença de que o setor privado atua contra os interesses do País, e de que cabe ao governo defender a população dos desalmados capitalistas. Acredita quem quer. Ao Estadão/Broadcast, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse que o leilão foi um “sucesso” e cumpriu o objetivo de combater a “especulação”.

Eis a medida do sucesso, em números: a Conab pagou R$ 25 por pacote de 5 kg para revendê-lo nos supermercados a R$ 20. O contribuinte que arque com a diferença. É por essas e outras que zerar o déficit primário é realmente uma tarefa impossível.

A fé que move tributos

O Estado de S. Paulo

Decisão de Tarcísio de Freitas mostra que aperto fiscal em SP é para todos, menos para as igrejas

É curiosamente sincrético o credo de Tarcísio de Freitas. Ao mesmo tempo que sabe recitar de cor o catecismo liberal, o governador paulista flerta com a fé populista, que é a perfeita negação do liberalismo. Somente esse melê doutrinário explica por que razão Tarcísio decidiu permitir que as igrejas deixem de pagar ICMS na importação de produtos ditos “religiosos” – e justamente no momento em que promete promover um duro plano de ajuste fiscal no Estado, anunciado há poucos dias.

Ora, as igrejas já desfrutam de diversas isenções tributárias, a título de garantir a liberdade religiosa. Por isso, salvo por inconfessáveis objetivos eleitoreiros, não há nenhuma necessidade de ampliar esses benefícios, sobretudo por meio de resoluções que dão margem a interpretações generosas em favor dos donos das igrejas, como é o caso da recente medida do governo de São Paulo. Lá se diz que a administração tributária deixará de cobrar o imposto de “quaisquer entidades religiosas, desde que referidos bens se destinem à finalidade essencial dessas entidades e sem prejuízo da fiscalização”.

Está no terreno do mistério a definição de “finalidade essencial” que abre a brecha para a isenção do ICMS, mas já é possível antever o milagre da multiplicação dos produtos importados “essenciais” à disposição dos donos de igrejas. Para o mundo laico, a alíquota do imposto em São Paulo é de 18%; para os empreendimentos religiosos, será o paraíso da isenção.

Ainda que beneficie instituições de todos os credos, pouca gente tem dúvida de que a intenção de Tarcísio é agradar às igrejas evangélicas, que integram uma parcela relevante das preferências eleitorais do bolsonarismo, do qual o governador busca ser herdeiro. Há tempos a bancada evangélica do Congresso busca ampliar as isenções fiscais, seja por negociação de apoio político, seja por projetos legislativos, como a chamada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Igrejas, que tramita na Câmara.

Com a medida anunciada, portanto, o governador pode até ganhar um lugar no Céu, mas o objetivo é obter dividendos eleitorais mundanos, mesmo que isso contradiga flagrantemente as diretrizes do plano fiscal do Estado.

Convém saber do governador qual a justificativa para tirar das entidades religiosas o mesmo compromisso que exige do mundo laico. Tarcísio é reconhecido por sua formação técnica e um autodeclarado gestor que se baseia em premissas impessoais de administração. Mas, na hora de agradar ao evangelho bolsonarista, aparentemente escolheu a genuflexão.

A medida do governador confirma, ademais, que a religião pode ser um bom negócio no Brasil. Afinal, tanto o Congresso quanto diferentes governos têm estendido uma mão providencial às igrejas, sobretudo evangélicas. Em 2015, no mandato de Dilma Rousseff, uma lei isentou religiosos do tributo sobre a chamada “prebenda”, nome dado ao pagamento que ministros de ordens religiosas recebem. Em 2020, o então presidente Jair Bolsonaro perdoou todas as autuações feitas antes daquela data. Às voltas com dissabores com o eleitorado evangélico, o presidente Lula da Silva busca caminhos para apoiar a PEC das Igrejas.

Ou seja, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um dono de igreja evangélica ser tratado como os outros cidadãos pagadores de impostos.

Questão fiscal é desafio para a primeira presidente do México

Valor Econômico

Seguir com a cartilha de gastos adotada por Obrador no último ano de mandato pode gerar algum conforto para os mexicanos no curto prazo, mas trará problemas econômicos profundos para o país no futuro

Claudia Sheinbaum assumirá a presidência do México em 1º de outubro após uma vitória avassaladora nas eleições realizadas no último domingo, graças ao amplo apoio popular de seu mentor, Andrés Manuel López Obrador, que durante seus seis anos de mandato implementou uma série de políticas sociais que o fizeram cair nas graças dos mexicanos. O legado, porém, carrega alertas. Para manter a promessa de dar sequência às políticas de seu antecessor - e que também deram ao partido de ambos o controle do Congresso -, a primeira mulher a presidir o país terá de lidar com o maior déficit orçamentário desde 1980 e com os graves problemas internos de segurança.

López Obrador iniciou o governo contrariando expectativas, adotando uma política de relativa austeridade que despertou críticas pela falta de apoio à população durante os anos da pandemia, na contramão do que outros países fizeram no período. A disciplina fiscal foi facilitada em parte pela valorização do peso - que atingiu o maior nível contra o dólar em quase uma década -, pelo recorde de remessas enviadas pelos mexicanos no exterior e pelo aumento do comércio com os EUA em meio a disputas dos norte-americanos com a China.

No último ano de mandato, porém, López Obrador abriu os cofres para apoiar a eleição da aliada e dos correligionários do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), uma manobra questionada eleitoralmente pela oposição. A austeridade deu lugar a um aumento significativo nos gastos sociais, com elevação dos benefícios pagos a estudantes e aposentados. Só para o exercício de 2024, o governo reservou US$ 43 bilhões para as políticas sociais. Houve também uma retomada dos investimentos em infraestrutura, entre eles a construção de um trem turístico de US$ 30 bilhões que cruza os Estados do sul do país e uma refinaria de petróleo de cerca de US$ 20 bilhões em Tabasco.

Com o amplo aumento dos gastos na reta final do governo, o déficit orçamentário mexicano passou de 2,3% do PIB em 2019, primeiro ano de mandato de López Obrador, para 4,3% em 2023. Para este ano, a estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMIO) das Finanças é de um forte incremento, para 5,9%. Com isso, a dívida pública deve fechar 2024 em 55,6% do PIB, de acordo com previsão do FMI, a segunda maior entre as economias latino-americanas, atrás apenas do Brasil.

Economistas indicam que Sheinbaum terá que mudar o curso do endividamento para não provocar uma crise nos próximos anos, apesar de ter prometido durante a campanha aumentar os gastos em saúde, educação e bem-estar da população.

A crença de que ela seguirá os passos do mentor e o controle do Congresso, até então um obstáculo para reformas constitucionais controversas propostas por López Obrador - de substituir os membros da Suprema Corte por juízes eleitos e eliminar agências reguladoras independentes -, agitaram negativamente os mercados, por mais que a vitória do Morena fosse esperada. O peso mexicano chegou a cair 4% em relação ao dólar e o S&P/BVM, índice de referência da Bolsa de Valores do país, recuou 6,1%, a queda mais acentuada desde o início da pandemia. Reconquistar a confiança dos investidores será um de seus grandes desafios.

Para tentar conter a onda de pessimismo pós-eleitoral, Sheinbaum confirmou que manterá no cargo o ministro das Finanças, Rogelio Ramírez de la O, respeitado pelos mercados. A promessa do novo governo é cortar o déficit pela metade em 2025 e buscar um aumento das receitas por meio do combate à evasão, sem elevar impostos. Analistas consideram a tarefa difícil sem que a economia mexicana, que cresceu em média menos de 1% nos seis anos de mandato de López Obrador, seja afetada. Para 2024, a previsão é de crescimento de 2,2%, ante expansão de 3,2% no ano passado.

Em um relatório divulgado pós-eleição, a consultoria Oxford Economics avaliou ser “improvável” que Sheinbaum abandone as políticas de austeridade adotadas por López Obrador no início do mandato e, à espera de medidas que serão anunciadas pela presidente eleita, ainda prevê que o novo governo seja capaz de cortar o déficit no próximo ano.

Outro problema é a Pemex. Antes uma fonte de recursos para o governo, a estatal petrolífera mexicana é hoje a empresa mais endividada do mundo (um saldo negativo de mais de US$ 100 bilhões) e produz atualmente a metade do que produzia há 20 anos, apesar do apoio de quase US$ 70 bilhões dado pelo governo de López Obrador nos últimos cinco anos. Formada em física e doutora em engenharia ambiental, Sheinbaum quer acelerar a transição energética no México, mas ainda não deixou claro o que pretende fazer com a companhia.

A retomada da rota da austeridade diante de uma economia que dá sinais de desaceleração parece ser a melhor escolha para Sheinbaum, que ainda terá que enfrentar uma grave crise de segurança e as incertezas geradas pelas eleições dos EUA em novembro. Seguir com a cartilha típica de líderes de esquerda adotada por Obrador no último ano de mandato pode gerar algum conforto para os mexicanos no curto prazo, mas trará problemas econômicos profundos para o país no futuro.

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