Pretendo,
numa sequência de dois artigos, assentar três afirmações, na tentativa de
analisar o quadro esboçado após o primeiro turno das eleições municipais e de começar
a refletir sobre o cenário político que pode resultar desse quadro, ainda a ser
completado pelos embates do segundo turno.
As duas primeiras afirmações requererão relativamente menos palavras que a terceira e por isso podem ser acomodadas, juntas, neste primeiro texto. Elas acrescentarão menos elementos substantivos ao que, durante os dias subsequentes à eleição, e mesmo antes, foi fartamente abordado no noticiário, sendo submetido a análises especializadas e a nuances do debate político. São elas: 1. Os resultados das eleições não mostraram a extrema polarização que vinha sendo sugerida por embates nas redes sociais e por discursos políticos mais radicalizados; 2. A partir desses resultados municipais, o exercício de predição mais razoável que se pode arriscar fazer, a respeito de embates eleitorais futuros, é sobre as próximas eleições à Câmara dos Deputados e não sobre a disputa presidencial, que segue outra lógica.
A
terceira afirmação será mais controversa. Sustentará que os resultados
eleitorais reclamam rever, em profundidade, crenças correntes a respeito da descrição
e interpretação do que sejam e do que representam os principais campos da
geografia política do país e da avaliação das suas possibilidades de êxito nas
várias arenas de competição, num futuro imediato, até 2026. Diferentemente das
duas primeiras afirmações, a revisão em profundidade de crenças difusas sobre o
perfil e a atitude dos atores e sobre as respectivas fortunas de seus campos
políticos desafia o senso comum e certas convicções militantes, além de,
provavelmente, suscitar objeções, também, de pessoas e ambientes treinados na
análise política isenta. Por isso ficará
para o próximo artigo. Ao final dos dois, a reflexão deverá concluir pela
conveniência de se revisitar os temas da sucessão presidencial e da futura renovação
do Congresso, à luz desses antigos e novos elementos e argumentos.
Começo
pelo tema da polarização. Quem orientou suas expectativas pelo confronto nas redes
digitais ideologicamente radicalizadas e eleitoralmente interessadas precisa lidar
com a decepção vinda do fato de que o eleitorado brasileiro premiou, de modo
notório, partidos que não são polos na guerra entre distintas projeções retóricas
de ideias de bem e de mal em política. Apenas dois dos quinze embates de
segundo turno nas capitais dar-se-ão entre PL e PT. O PL está em mais sete
disputas, o PT em mais duas, porém, os pares competitivos nessas nove capitais
e nas outras quatro restantes (em que nem PL nem PT aparecem) não se repetem.
São 14 distintos pares de partidos em 15 disputas. E não se diga que em vários
deles os polos fizeram-se representar, no primeiro turno, por outras siglas. Na
grande maioria das capitais onde haverá segundo turno, PL e/ou PT tiveram
candidato próprio que ficou pelo caminho. As exceções são Porto Alegre e Porto
Velho - onde o PL indicou o candidato a vice em chapas classificadas a segundos
turnos - e São Paulo, onde o PT não lançou candidato, apoiando o PSOL Mas mesmo
ali, onde se pretendia replicar o duelo nacional, Pablo Marçal refratou a bipolaridade.
Observando
as onze capitais onde as eleições foram decididas no primeiro turno, vê-se que só
Maceió e Rio Branco elegeram prefeitos do PL e nenhuma alguém do PT. Das nove
outras capitais, cada um dos dois partidos teve candidato próprio derrotado em
sete. Integraram coligações vencedoras apenas em São Luiz e Salvador (no caso
do PL), no Rio de Janeiro e Recife, no caso do PT. Em nenhuma delas foram
forças decisivas e só no caso de Recife o PT teve relevância política
perceptível, embora discreta.
Na
distribuição do conjunto de prefeituras conquistadas no país, os números são
ainda mais eloquentes. Os partidos mal chamados de centrão elegeram cerca de 3.500
prefeitos, enquanto toda a esquerda somada não chegou a 800 e o PL, partido que
abriga no seu interior o coração e os músculos da direita radical e da extrema-direita
(sem, contudo, limitar-se a elas), um pouco mais de 500 prefeitos. Por todos os
ângulos que se queira analisar, as urnas municipais não dão argumentos a quem
considera a política brasileira polarizada, ideologicamente, entre esquerda e
direita, ou pragmaticamente, entre Lula e Bolsonaro. É um equívoco estender às
várias arenas de competição do sistema eleitoral brasileiro a característica
plebiscitária que persiste apenas na disputa presidencial.
Feitas
essas afirmações sobre a polarização (as quais suponho serem capazes de expressar
certo consenso, ao menos fora das usinas políticas e sociais que a produzem e de
áreas contaminadas por ela própria), acrescento um aspecto do viés
despolarizador das eleições municipais que é, de costume, menos enfatizado. O
ponto é que os eleitores - não necessariamente de modo deliberado, mas efetivo,
afinal -, além de fortalecerem partidos situados ao largo dos polos esquerda e
direita, reelegeram, em muitos municípios, prefeitos e prefeitas cujas gestões eles
avaliavam positivamente já bem antes das eleições. Este aspecto mostra racionalidade
do eleitor quando julga a política da sua cidade, atributo que não se deve
perder de vista nas análises. Em muitas situações foram premiados políticos e
gestores cujos focos, não importando o partido ao qual pertençam, estão
distantes das pautas da polarização.
É
uma tentação atribuir os altos índices de reeleição a algum fator excepcional
como, por exemplo, a força eleitoral das emendas ao orçamento, ou a efeitos
conservadores da “descrença geral” no jogo político da democracia
representativa e da “escassa politização” dos eleitores, em particular. Essas explicações desprezam a relevância da
interação entre atores ordinários, expressivos de um comportamento eleitoral
continuado e novas realidades criadas por mudanças estruturais e
culturais.
Xingada
nos palanques e penalizada nas urnas de 2016 (um ponto conjuntural fora da curva,
na política municipal brasileira), a dita “velha” política, sempre acesa na disputa
de redutos eleitorais e morna em termos ideológicos, voltou, desde 2020, a ter
abrigo confortável no regaço dos contextos municipais.
Na
vitrine federal e, até certo ponto, na política de estados subnacionais, a
gramática político-eleitoral exasperada de 2016 moldou, em agitação
politicamente tosca e oca, as eleições de 2018 e seguiu determinante em 2022.
Já os pleitos municipais voltaram, em 2020, momento de insólita conjunção da
pandemia com um governo de subversão bolsonarista, a mostrar uma gradativa
assimilação, pela política tradicional, de novas demandas dirigidas à gestão de
municípios de todas as regiões do país. Variando
conforme diferenças de tamanho e/ou de proximidade a eixos dinâmicos da
economia e da vida social, pautas contemporâneas, como a ambiental, a da qualidade
de serviços públicos, a da inclusão digital e a do empreendedorismo individual
abrem passagem, em movimento lento, discreto, mas contínuo. Cada vez mais elas
contam para legitimar, perante eleitores que vão ficando um pouco mais
exigentes, gestores de insuspeitos partidos e orientações políticas, inclusive
quem não as tem.
Em
arenas municipais de tradição clientelística ou populista conservam-se essas
tradições, atualiza-se e aperfeiçoa-se esses idiomas longevos, mas em interação
com novos imperativos. Processo subterrâneo, cuja visibilidade é embaçada pelo
alarido de redes digitais e pelo “marketing” espúrio da radicalização
ideológica. Enquanto em torno da sede central do poder político transcorre um
embate por identidades míticas, o sertão vira mar e traça uma diagonal secular perante
essa “nova” política incivil. Dela descolam-se os sertões metropolitanos que,
assim como os rincões interioranos, adotam a, de fato, nova gramática da vida
real, que a polarização guiada pelo conflito ideológico ignora, nubla e
perturba.
A
atitude politicamente cética do eleitorado frente a essa onda aparenta alienação,
por ficar mais ou menos nas margens do renhido conflito plebiscitário nacional.
Mas emerge e mostra-se melhor em eleições municipais. A autocomplacência do
governismo federal e de núcleos radicalizados da oposição contenta seus artífices
e arautos com a presunção de que redutos de partidos do centro e da direita
tradicionais proporcionam a esses dois campos papel coadjuvante, senão residual.
Seriam refratários nostálgicos às novas sociabilidades e, por isso, incapazes
de disputar o poder central num país tomado por uma divisão que é, ademais, uma
tendência internacional. O que ocorre em urnas municipais seria apenas um
comportamento anacrônico que tende a ser anulado pela realidade. É assim que se
costuma analisar a persistente afinidade entre o eleitorado brasileiro e atores
vocacionados para a pequena política sediada, de modo primordial, no
Legislativo. A cegueira desse olhar sobranceiro é não ver que aquele comportamento
eleitoral assume ares de atitude política, ou seja, de disposição permanente.
A
autocomplacência torna-se um autoengano se confrontada com o segundo ponto
dessa discussão, isto é, com a afinidade entre as inclinações do voto municipal
e as daquele voto que, dois anos após, produz maiorias legislativas nacionais,
especialmente as que se formam na Câmara dos Deputados. Nas novas condições da
relação entre os poderes, quem faz maioria legislativa não conquista papel
coadjuvante. No mínimo postula parceria numa efetiva divisão de poderes e/ou,
no limite, um protagonismo político.
Recentes
reações serenas do presidente Lula diante da óbvia derrota eleitoral talvez
signifiquem que o faro do animal político registrou, afinal, um recado reiterado
que já dura o tempo transcorrido de seu mandato. Várias vezes, de 2022 para cá,
quem aventou a hipótese de que o realismo político prevaleceria no entorno do
presidente deu com os burros n’agua. Na esquina seguinte, o voluntarismo do ego
redentor revalida a hipótese oposta. Mas a esperança é teimosa e em seu nome
podemos chamar de ambiguidade o que pode ser apenas desorientação e
inconformidade com a perda de protagonismo.
Em contraste, uma percepção quase
consensual é a de que, do outro lado da Esplanada o realismo político, ancorado
no corporativismo parlamentar, reinaria compacto e soberano. O impacto das
eleições municipais relativiza essa certeza também, ao revelar fissuras onde se
via estabilidade. Nesse sentido, o curso mais recente da sucessão de Artur Lira
na presidência da Câmara é emblemático. A noção de que poder acumulado
previamente é passaporte para um presidente fazer seu sucessor é, mais uma vez,
posta em dúvida. A pluralidade mundana do Legislativo não chancela impérios
perenes. Se podemos trazer um grande poeta para esse chão de mundanidade
pragmática, sem ofensa à sua obra e à sua memória, podemos dizer que o amor dos
pares não é imortal, posto que é chama. No máximo será infinito enquanto dure. Sem
ilusões quanto à virtù ou à fortuna de quem venha a ser o sucessor, que assim
seja e siga sendo, pela arte racional (ops!) da política, chama permanente da
democracia.
Já
estamos plenamente no segundo tema de hoje, a conexão entre eleições municipais
e o estado da arte no legislativo nacional. A correlação positiva entre eleições
para a Câmara e as municipais é fato há muito flagrado pela ciência política
brasileira e pelo jornalismo político mais qualificado. A novidade é a significativa influência que arranjos
eleitorais feitos no vértice dessas duas competições passaram a ter sobre o
efetivo exercício do poder político no país. Eleger bancadas de peso no
Congresso vai aos poucos deixando de ser uma opção de determinados partidos
para ser um imperativo imposto a todos.
Nos
tempos relativamente longínquos do presidencialismo de
coalizão, pequenos partidos e mesmo legendas minúsculas viviam de recursos residuais
de poder e de alianças eleitorais ad hoc, uns e outras patrocinados por
chefes de governo. Hoje, o status das emendas parlamentares ao orçamento
(aqui não confundir prerrogativas exercidas pelo Congresso desde 2016, que são avanços
institucionais reais, com orçamento secreto e outras práticas espúrias
convertidas em reais) e o fim das coligações em eleições proporcionais fazem a
sobrevivência dessas legendas depender do tamanho de suas bancadas.
No
andar de cima - a outra ponta, primeira página da tabela do campeonato
partidário - é também relevante a mudança, não de qualidade, mas de intensidade
da competição. Durante a vigência do presidencialismo de coalizão, o partido do
presidente da República podia ter, sem maiores problemas, peso parlamentar mediano.
Sua desvantagem comparativa perante partidos que, solteiros ou temporariamente
associados, o superavam no Legislativo era neutralizada pela intervenção do
presidente, o detentor dos poderes substantivos de agenda, de cooptação e de
chantagem eleitoral. A ação desequilibradora podia dar-se pela veiculação de
consensos eleitoralmente decisivos (como a estabilidade monetária trazida pelo Plano
Real ou o compromisso com o social), pela condução inclusiva da “pequena
política” de amplíssimas coalizões, ou ainda pelo poder dissuasivo de excluir infiéis
da coalizão. Fosse zagueiro, armador ou artilheiro, o presidente, como dono da
bola, tinha, merecesse ou não, a prerrogativa de jogar como se fosse o craque
do time.
Assim,
como mostrava, por exemplo, o cientista político Carlos Ranulfo Melo, em sua
reflexão sobre “jogos aninhados”, partidos como os antigos PFL e PMDB podiam especializar-se
em eleições para o Congresso ou em pleitos regionais, enquanto PSDB e PT
disputavam plebiscitos nacionais.
Tudo isso é passado e embora nada proíba que
volte a ser presente, não há sinal visível no horizonte, nem de restauração de
um presidencialismo forte - no sentido de presidentes formalmente empoderados,
mesmo que presidindo governos politicamente frágeis – nem de partidos
especializados. Hoje a competição interpartidária dá-se em chave única e o
troféu é o Congresso. As reações de Dilma Rousseff às ações da Câmara não
tinham como evitar sua queda, mas fizeram um barulho capaz de mostrar uma
divisão do país. A queda de braço paralisava o governo e a paralisia não se
resolvia na rotina, porque o Executivo e aquela banda do Legislativo eram
tigres de papel. Ambos rugiam, mas não podiam governar sem o outro e, por isso,
o processo foi resolvido no Senado e no STF. Sob Temer e Rodrigo Maia, um
armistício permitiu a volta da rotina. Mas
a ascensão de Bolsonaro trouxe uma veleidade nova. O chefe carismático não
pretendeu restaurar um presidencialismo forte e sim fundar a lógica despótica do
homem forte. Do vácuo criado por essa imprudência resultou que o Congresso – Câmara
e Senado – com a cobertura do STF, de governadores e da burocracia do Estado,
fixou, pela via da política que o ex-presidente desprezava, bases de uma governabilidade
emergencial à revelia do Executivo e de um novo padrão na relação futura entre
os dois poderes, cujo desenho ainda não é nítido. Lula não é Bolsonaro e restaurou
o poder governativo presidencial, mas não o presidencialismo de seus tempos
dourados. Se teimasse, paralisaria seu governo, mas o Legislativo, já não mais.
Impeachment seria ocioso, o Congresso já dispensa isso para agir. As
mudanças não foram conjunturais.
A
legitimação política desse novo status do Legislativo nada tem a ver com
o que a sociedade civil e a opinião pública politizada, ou corporativamente
organizada, pensa sobre deputados e senadores. Esses atores individuais,
partidariamente organizados, estão em sintonia com os indivíduos que compõem um
ente distinto, que é o eleitorado. Eleitores brasileiros podem não valorizar a
instituição legislativa, ou os partidos, mas não abrem mão de votar massivamente
em pessoas para compor a primeira e, assim, passam a ser governados por um
sistema institucional cujo pluralismo é assegurado pelos partidos, que nele
cumprem papel cada vez mais relevante, à medida em que o do Legislativo é
reforçado. Mais do que isso: eleitores não parecem ter ilusões sobre virtudes e
pecados de políticos. Nessa relação não há chama, posto que não é amor, mas
interesse e valores também, na medida imperfeita da vida real.
Eis
o lado positivo da realidade democrática que a cada eleição o eleitor escancara.
Momentos únicos de sua soberania, neles desafiam crenças sociológicas ou
ideológicas sobre sua suposta indiferença para com a democracia representativa.
Políticos e partidos no Congresso recebem e traduzem a seu modo os sinais
eleitorais municipais (de eleitores, de prefeitos e de vereadores) porque
sabem, tanto ou mais que cientistas políticos, que ali está o mapa da mina das
reeleições dos primeiros e do empoderamento institucional dos segundos. Sabem
que nas eleições municipais joga-se um jogo paralelo e não mais necessariamente
aninhado com o jogo plebiscitário da eleição presidencial. Enquanto ódio,
intolerância e baixaria ocupam vitrines espetaculares, profissionais não param
de trabalhar nas rotinas da política
Nas
eleições municipais de 2020 o eleitor deu, como agora, um recado pela moderação
política. É engano pensar que toda a elite política o ignorou. As eleições à Câmara
dos Deputados de 2022 premiaram quem prestou atenção no dever de casa. Eleições
municipais são hora de escrever scripts num cardápio eleitoral
construído com movimentos centrífugos. Eleições para o Congresso são hora de saber
como os eleitores usaram o cardápio dois anos antes e de balizar, nos estados,
a estratégia política para as eleições legislativas nacionais com uma lógica
centrípeta, para gerar uma força idem, colada no sentido geral daquelas
escolhas. Assim, partidos fortalecidos em 2020, que a preguiça analítica chama
de fisiológicos (como se esse adjetivo distinguisse, quando nivela), tiveram
influência autônoma e decisiva nas municipais de 2024. Tudo indica que seguirão
lendo bem os resultados e reforçarão seu poder no Congresso a ser eleito em
2026. Quem quiser ter voz ativa em um sistema político cada vez mais
compartilhado entre dois poderes institucionais, vai ter que ler e escrever com
idêntica perícia.
Para
se situar nessa teia, penso ser preciso reformular, ou abandonar, o “conceito”
de “centrão”; dimensionar com realismo a força da direita radical e suas
versões extremistas; e compreender em profundidade a crise da esquerda e da
centro-esquerda, que está longe de ser só uma crise eleitoral. As três
proposições desdobram e detalham a terceira das afirmações iniciais. Fica para
a próxima semana.
* Cientista político e professor da UFBa
Nenhum comentário:
Postar um comentário