Folha de S. Paulo
Com algumas exceções, o bolsonarismo da
destruição criativa deu lugar a uma direita centrada no status quo local
Glosa de um deputado baiano, décadas atrás:
entre a Encíclica Mater et Magistra (do Papa João 23, com o
ponto de vista da igreja sobre a questão social) e "O Capital", de Karl
Marx, o PSD ficava com o Diário Oficial. Uma boutade até hoje
pertinente a essa sigla. O PSD de
Gilberto Kassab autodefine-se como nem de esquerda, nem de
direita, nem de centro. De nada, em suma, mas próximo de uma oficialíssima
emenda Pix.
É viável, no entanto, presumir a entrada na política de uma cultura "centrã", menos polarizante ou raivosa. O termo evoca um português quinhentista, algo fora de época. Mas o "nada", vitorioso nas eleições em 878 prefeituras, é tudo de que Kassab precisa para inscrever o seu PSD na campanha presidencial.
Pode-se dizer que os 156 milhões de votantes deram algo a pensar à política
nacional. O cômputo geral comparece na imprensa como um "passeio" da
direita. Mas com exceção de alguns extremistas, o bolsonarismo da
"destruição criativa" deu lugar a uma direita centrada no status quo
local, em grande parte, por emendas com dinheiro direto no caixa das
prefeituras. Vale frisar que o centro é o berço da direita.
O fato é que da vida local partem demandas
cada vez mais fortes, obscurecidas na cena parlamentar. Já em meados do século
passado circulava nos EUA o adágio "toda política é local" ("all
politics is local", difundido pelo antigo parlamentar democrata Ted
O´Neill). Entre nós, Ulisses
Guimarães disse mais ou menos o mesmo, trocando local por
município.
Mas localismo difere de municipalismo, isto
é, da divisão política, administrativa e territorial sob a égide do Estado, que
é política concebida de cima para baixo, sem contemplar economias vernaculares
(cooperativas, camponesas) e solidárias. Não se trata do poujadismo francês
(movimento de defesa de comerciantes e artesãos na década de 1950 passada), e
sim da mobilização de lugares concretos capazes de se oporem à abstração dos
partidos nacionais no sistema parlamentar. Isso poderia sugerir uma "endogeopolítica"
à base de espaços autônomos, articulados em rede para as disputas no centro
estatal.
O localismo como passo para a recomposição
política implica rearranjo dos circuitos comunitários da comunicação, onde
fermentam formas novas de sentir, alheias aos agenciamentos tradicionais.
Implica linguagem de povo. A direita conseguiu captar uma parte do fenômeno, a
esquerda permaneceu no bunker de verdades intelectuais.
Uma praxis progressista, na
contramão do trânsito ultradireitista num país já estruturalmente conservador,
requer uma nova concertação de frentes amplas capazes de mobilizar a realidade
civil. Uma realidade que se faz mais evidente nos espaços de falência do modelo
federativo e que está além das meras aparências de civilismo. Ou seja, a
mobilização depende de outra linguagem política.
A perspectiva progressista é de que o
localismo não favoreça a estagnação no centro enquanto umbigo, que fica no meio
e não serve para nada. Impõe-se politizar o desenho de lugares alternativos,
desde o comunitário até o virtual. Isso ainda não aconteceu. Mas as eleições
municipais deram um recado ligeiro de moderação, de arrefecimento do ódio.
Disso é simbólico, mesmo em meio a divergências e acusações no debate, o abraço
inesperado de Boulos (PSOL) e Nunes (MDB).
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